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Contos-->"O PAPAGAIO PORTA-VOZ" -- 14/10/2005 - 12:03 (Hull de la Fuente) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Este episódio integra a série a "Menina da Chácara".


O PAPAGAIO PORTA VOZ


Como já estava se tornando um costume, quase todas as manhãs Menina e Zico acompanhavam o pai e o tio, até à porteira. O caminho, coberto pela vegetação nativa, amanhecia com uma espessa camada de orvalho. A luz do sol batia nas gotas depositadas nas folhas, que refletiam como pequenos diamantes. O perfume das flores silvestres espalhava-se no ar e atraia os colibris e as abelhas. Os rumores da manhã eram festivos. De mãos dadas com o tio, Menina aspirava profundamente o aroma matinal. Para provocá-la, o rapaz disse:
_Você está cheirando rapé, “Lagartinha”?

_ Estou cheirando o mundo – respondeu - É melhor do que assustar gente pequena. Inventar monstro que não existe, é muito feio, não é?

Menina se referia ao episódio ocorrido dias antes, quando um mascarado misterioso, coberto com longa capa preta, aparecera no momento em que seu pai contava histórias de fantasmas, em volta da fogueira. O rapaz entendeu a insinuação e fitando-a, disse:

_ Eu não inventei monstro nenhum. Acho que aquele cara é um maluco que anda por aí, sem ter o que fazer. Mas me responda, o mundo tem cheiro de que?

_ O senhor não está vendo? Tem cheiro de coisa macia... Eu acho que era a mamãe. Ela gosta de assustar a gente... - Afirmou pensativa.

_ Você está errada - falou Antônio pensando também no assunto e concluindo - Cheiro a gente sente. E o cheiro que você está sentindo não é “macio”, é suave. Entendeu, “Lagartinha”?

_ Entendi, sim. Tio? Quando o senhor vê essas flores pela estrada, o senhor também lambe o mel?

_ Você está me achando com cara de beija-flor, é?

_ Uê! Eu e o Zico não somos beija-flores e quando estamos voltando pra casa, nós lambemos o mel das flores. É muito doce só que é pouco e...

_Ah! Quer dizer que são vocês? Interrompeu-a o rapaz.

_Somos nós o quê?

Antônio olhou significativamente para D. Mozart que conversava com o filho. O homem percebeu que o cunhado queria dizer algo e interrompeu a conversa. O rapaz olhou novamente pra Menina e prosseguiu:

_São vocês dois que estão ameaçando a sobrevivência dos beija-flores dessa mata, não é mesmo? Pois fiquem sabendo que outro dia, um grupo de aves, de várias espécies, estava esperando por nós aqui na porteira e...

_Como é que o senhor sabe que elas estavam esperando o senhor e o papai? Adiantou-se Zico, muito interessado.

_Porque o representante delas falou comigo e com o seu pai. Ele disse que, em nome de todas as aves, pedia aos humanos que não bebessem o mel das flores, para evitar que os beija-flores abandonassem esta região.

À medida que o tio falava Menina estudava cada expressão das faces dele e também da do pai. Queria descobrir se estavam mentindo. E como não gostava de ser enganada, interrompeu o discurso de Antônio.

_Tio! Passarinho não fala. Como é que o senhor sabe que eles pediram pra gente não beber o mel?

Sem perder a pose que assumira desde que começou a falar, o rapaz respondeu:

_Você tem razão. Nem todos os pássaros falam. Quem falou em nome dos outros foi um papagaio.

_Um papagaio?

_Sim! Um papagaio muito sabido e educado. Não foi mesmo, Mozart?

Dom Mozart, que se mantivera calado ouvindo o cunhado, balançou a cabeça em sinal de afirmação. Ao se aproximarem da porteira feita de troncos, Zico soltou-se da mão do pai, correu até a mesma e subindo pelos troncos, gritou lá de cima.

_ Papai! Titio! Era aqui que os passarinhos estavam? Era papai?

_ Era aí mesmo, filho. Agora voltem pra casa e não se esqueçam; o mel das flores é o alimento dos beija-flores e também das abelhas. Vocês não iam gostar se alguém comesse a comida de vocês, não é mesmo?

Os dois abriram a porteira e Zico, ainda trepado nela, se divertiu com o movimento. Para contentá-lo, Antônio abriu-a toda e depois a fechou vagarosamente. Ao se afastarem das crianças, o rapaz gritou de longe:

_Voltem pra casa e não se esqueçam do pedido do papagaio.

Menina ficou algum tempo quieta, como se estivesse organizando em sua cabeça tudo o que acabara de ouvir do tio. Seu silêncio só foi interrompido pela fala do irmão, que descia da porteira.

_Moço! Por que o tio Antônio não pegou aquele papagaio pra gente?

_Ora, você ouviu o tio. Ele disse que aquele era um papagaio sabido. Um papagaio sabido assim não deixa ninguém pegar ele.

_Deixa sim! Era só o tio falar “me dá o pé meu louro”, como a vovó faz, com o papagaio lá de casa.

_Você não entendeu ainda. Aquele papagaio lá de casa é muito bobo. Você não vê que ele tem medo de cavalos, tem medo da cabra Beth, tem medo até do gato Paizinho. E ele só sabe imitar a gente, só fala bobagens. Ele não presta pra ser representante dos passarinhos. É por isso que ele dá o pé pra todo mundo. Esse outro não. É o prefeito dos passarinhos, até sabe discursar...

Zico ouviu a irmã procurando entendê-la e prosseguiu:

_ Ah! Mas eu queria aquele papagaio. Se ele fosse nosso, a gente podia ter um bocado de passarinhos e...- pensativo, falou - prefeito é como aquele homem magro que vem aqui em casa pra pegar o que o papai escreve?

Menina surpreendeu-se com a observação do irmão, mas respondeu à pergunta:

_ É sim! Aquele é o prefeito. Ele não presta pra ser prefeito, ele só sabe dar injeção e fazer licor de pequi, mas isso a vovó também sabe... Depois, pra que você quer os passarinhos? Eu não quero nenhum. Eles são mais bonitos no mato mesmo. A gente pode brincar com outras coisas...

Zico não se conformava assim fácil e insistiu:

_ Ah, moço! Eu quero muito aquele papagaio. Chama ele pra mim, chama!

_ Zico, eu não posso. Aquele é um papagaio encantado. Ele até discursa. Como é que eu vou fazer?

Com a cara amuada, sem querer ele sugeriu uma saída para a esperta garota:

_ Você sabe, sim! Por que você não fala com o gato Paizinho? Ele pode ajudar... Você vive dizendo que ele fala com os bichos, que ele sabe tudo o que tem na floresta, então?

_ Tá bom, Zico. Eu vou falar com o Paizinho. Tomara que ele ajude a gente, você sabe, gato também é bicho e bicho não gosta de fazer mal pra outro... Você sabe como ele é.

_ É, mas o seu gato vive pegando passarinho. E eu não vou fazer mal para o “meu” papagaio, eu não vou comer ele.

Menina não gostou do que o irmão disse e protestou:

_ Se você fala porque o meu gato come passarinho, então por que quer a ajuda dele? - Depois, pensativa, continuou - O Paizinho nunca quis comer o Louro lá de casa. Ele me falou que o Louro tem cheiro de coco e gato não come coco...

Zico olhou para a irmã e vendo que ela podia se aborrecer mudou o tom de voz.

_ Tá bom, moço! Eu não falo mais que ele come passarinho. Mas fala com ele, fala!

Menina não sabia dizer não para o caçula e concordou.

_ Agora vamos voltar pra casa. A Maria vai ensinar fazer bandeirinhas pra festa de São João, eu quero ajudar, você não quer?

_ Não sei, ela não deixa a gente cortar papel, não deixa pegar a tesoura...

_ Mas a gente pode colar as bandeirolas no barbante.

_ Ah, é? Então, eu vou ajudar.

Uma lufada de vento passou por eles, trazendo junto o perfume das flores. Zico encolheu os braços junto ao corpo. Os dois vestiam pijamas de flanela com estampa de bichinhos. O garoto queixou-se de frio. Para animá-lo, Menina propôs uma corrida até o casarão.

_ Vamos ver quem chega primeiro lá em casa?

_ E nós não vamos beber o mel?

_ Eu não. Você ouviu o que o tio Antônio disse. Aquele papagaio pode estar por aí, depois conta pra ele. E você, se quiser aquele louro, não pode esquecer o que ele pediu.

Zico ouviu a irmã sem protestar. Coincidentemente, naquele momento, um bando de papagaios passou voando em direção ao buritizal. Os garotos se entreolharam silenciosamente. Menina encostou a boca na orelha do irmão e sussurrou:

_ Tá vendo? Eles estão vigiando a gente. Vamos sair daqui.

Os garotos chegaram em casa no momento exato em que Maria expulsava o gato Paizinho de dentro do quarto dela. Numa das mãos ela segurava uma perdiz morta. A moça já não sabia o que fazer com a insistência do animal em deixar o produto de suas caçadas, sob a cama dela.

_”Diacho de gato ruim! Num dianta eu batê nele. Toda veiz ele traiz os bichu mortu pa drento de onde eu drumo.”

_ Ora, Maria, ele quer que você cozinhe a caça pra ele, não é, Zico? - disse Menina, se divertindo com a raiva da empregada.

_”Oceis acha que eu tô aqui pra cunzinhá cumida que gato panha no mato? Lá de dondi ele vei, ele cumia era tudo cru. Só fartava isso! Cunzinhá pa gato... Eu vô é jogá essa porquera no munturo, ele que vá cumê lá.”

Menina ficou observando Maria jogar a ave morta no lixo, lá no fundo do quintal. Quando ela voltou, em seu rosto já não havia nenhum vestígio da raiva de minutos atrás. Zico aproveitou para perguntar quando iriam fazer as bandeirolas para a festa junina. Sorrindo, ela respondeu:

_”Oceis dois devi de isperá. Primero vô ponhá fejão no fogo, dispois nós faiz as bandera.”

Os dois garotos concordaram e em silêncio foram à procura do gato Paizinho. A gata do Zico dormia sobre um pedaço de tronco cortado, que servia de banqueta para Maria, quando ela quebrava cocos babaçus. Paizinho, sentado sobre o banco da varanda, lambia a pata dianteira esquerda e ao ver os garotos se aproximarem, parou de lambê-la. Nos olhos do gato podia-se ver a satisfação pela aproximação das crianças. Como de costume, a garota pegou o bichano nos braços e esfregou o rosto no rosto do animal. Em seguida o deitou de novo no banco e ajoelhou-se diante dele. Curioso Zico seguia os movimentos da irmã. Sem perda de tempo, ela foi direto ao assunto:

_ Paizinho, nós queremos saber se você conhece um papagaio falante que encontrou o tio Antônio na porteira. Você conhece?

O gato conhecia aquele tom de voz. Sua dona estava aprontando. Inquietou-se no banco e miou preocupado. Menina aproveitou-se dos miados e começou a encenar um monólogo:

_ Ele mora no buritizal? Foi ele que falou? Como é o nome dele? Por que nós nunca o encontramos? Ah é?

Zico, diante de tantas perguntas que a garota fazia ao gato, queria saber o que o bichano respondia:

_ Moço! Pára de perguntar! Fala o que ele respondeu, diz logo, vai!

Menina sentia-se poderosa todas as vezes que “conversava” com o gato e que o irmão não entendia as respostas. Como naquele momento. Calmamente, voltou-se para o garoto, dizendo:

_ Ah! Zico, não vai dar! Eu já sabia...

_ Não vai dar o quê? Fala, moço!

_Aquele papagaio, não pode ser de ninguém. O Paizinho disse que ele é um monte de coisas na mata. Ele é delegado, é juiz de paz, é ele que faz os casamentos dos bichos. Ele faz batizado também. Todos os bichos pedem as coisas pra ele. É muito ocupado aquele louro...

Zico acompanhava cada palavra e cada gesto da irmã, que exagerava, qualificando o papagaio. Como que suspeitando, ele a interrompeu:

_ Moço, o Paizinho só miou três vezes...

_ Ora! Não importa os miados, você sabe muito bem que ele fala mais quando fala pelos olhos. E o Paizinho não mente. Ele anda por toda a mata aqui, ele conhece todos os bichos. Eu só disse o que ele me falou. Aquele papagaio não pode ser de ninguém. Ele me falou que se alguém prendê-lo um dia, vai ter uma guerra de bichos. É sim! Os bichos vão atacar quem pegar aquele louro.

Menina enfatizou a última frase e Zico pareceu aceitar a argumentação dela. Quando a garota já ia se afastando ele perguntou:

_ Moço! Como é o nome daquele papagaio? O Paizinho disse? Eu ouvi você perguntando pra ele... Como é?

Menina não esperava aquela pergunta, mas foi rápida na resposta:

_ O Paizinho chamou-o de “delegado Luiz das Olivas”. Foi assim que ele falou.

_ Uê! Ele tem nome de gente? O que é “oliva”? Um papagaio com nome de gente... Deve ser mesmo muito importante. Mesmo assim eu queria encontrar aquele papagaio, um dia. O que é “Oliva”?

_ Oliva é como azeitona verde. É da cor do papagaio – Respondeu ela do alto de sua sabedoria.

Menina suspirou aliviada e pensou consigo: “Ufa!! Ainda bem que ele acreditou. Tomara que não tenha gente grande com esse nome. Gente grande é muito complicada, vai ficar com raiva porque é um nome muito bonito para se gastar com um papagaio. Mas o "meu" papagaio é muito sabido, ele pode ter este nome."

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