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Contos-->Minhas Primeiras Traiçôes -- 09/01/2001 - 13:12 (Felipe de Oliveira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


Uma amigo partia definitivamente, mas um, dos inùmeros que nos ùltimos anos abandona essa cidade e vai tentar a vida em qualquer outro lugar, abraço-o com sinceridade e digo que sentirei sua falta, suas ùltimas palavras foram: “Sucesso para você nesta cidade maldita e até a vista.” Estava inquieto, nâo pela partida do amigo, ultimamente as pessoas partiam sucessivamente da minha vida, algumas mudavam de cidade, outras de paìses e todo este batalhâo de viajantes fatalmente tombaria no esquecimento. Restava sempre uma sensaçâo de que os encontraria algum dia, em algum local deste planeta ou num futuro distante, custa-me acreditar que todos eles vâo desaparecer para sempre da minha existência.

Depois de algumas horas sonolento entre os lençòis, finalmente crio coragem para enfrentar o dia, mas um dia, impregnado de dùvidas ou de sùbitas alegrias. Certas manhâs enquanto faço maquinalmente a barba, sinto vontade, como Van Gogh, de decepar a minha orelha. Nâo necessito de motivos. Sei apenas que preciso cortà-la e mostrar triunfante a alguém este meu gesto, porém, nâo tenho coragem. Nâo tenho coragem nem sequer de me olhar no espelho, e por vezes, choro, choro por nâo ser Van Gogh e por nâo està plenamente consciente do meu medo e da minha loucura. Choro deste avalanche de sentimentos contraditòrios que brotam todas as manhâs e eu nâo tenho coragem de enfrentà-los.

Como desejaria um dia completo de paz, algo que me fizesse superior, nem que fosse somente por 24 horas, um dia, um ùnico dia onde eu pudesse me encontrar e sentir que algo verdadeiro e belo brotaria do meu mais ìntimo ser. Antigamente se fosse convidado para fazer uma expediçâo ao Polo Norte, visitar a lua, viajar através do tempo ou até mesmo amar uma mulher que morreu a 300 anos, nâo hesitària um sò instante, eu seria o homem mais feliz sobre a face da terra. O cotidiano criava teias de aranhas, produzia um marasmo que feria sem piedade a minha alma, deixava-me morto. Isto foi a muito tempo, hoje, eu quero mesmo é ficar pequeno diante dos outros, todos os meus grandes e inusitados sonhos, sâo paulatinamente substituido por coisas pequenas e cotidianas: comprar um chapéu, sentar-me a beira do Sena e ficar admirando a paisagem, beijar uma ou outra mulher que encontro no metrô, degustar alguns doces que sâo vendidos na padaria do meu bairro e beber vagarosamente a plenitude da minha existência. Sâo na sua grande maioria sonhos simples, banais e até mesmo simplòrios, mas sâo meus sonhos. Um dia sai de casa, completamente triste, envergonhado de mim e da minha existência, caminhei sem destino pelas ruas de Paris, lembro-me que era o mês de março e caia uma chuva fina e persistente, de repente o milagre se produziu, uma felicidade estranha se apoderou de mim, eu estava feliz sem nenhuma razâo aparente, feliz somente por està alì, vivo, latejante, olhando as vitrines, feliz somente por existir.

Penetro no Louvre e vou direto admirar a estàtua de MiguelÂngelo. Nâo pude controlar essa sensaçâo suave de tê-la ao meu lado, embora soubesse que ela nâo existia mais, tudo estava reduzido a cinzas. Saì do museu e fui caminhar pelos jardins. A suavidade daquele simples dia me preencheu de uma alegria até entâo desconhecida. A alegria de existir, exatamente alì, naquele momento e nâo em qualquer outra parte, produziu em mim algo de benéfico. Fiquei admirando preguiçosamente o dia que escorria diante de mim. Foi um momento raro de prazer, pois no ìntimo, todos estamos condenados ao sofrimento. Nem bem encontramos este momento de prazer e nos invade estranhamente um medo, uma pequena ponta de receio, uma apreensâo no peito, do que poderà acontecer. Bastaria seguir adiante, sem muito refletir, sem nem sequer olhar de lado, mas nâo, trago essa sensaçâo de que tudo vai desmoronar num futuro breve.

Um tempo imenso de felicidade é algo extremamente perigoso, nâo assemelha-se a uma realidade, mas, a uma sensaçâo angustiante. Algo vivido de uma forma estranha. Nâo tenho mais ilusâo. O mal reside nesta certeza que devora todos os nossos sentimentos, deteriorando tudo ao nosso redor e nos deixando com a dura convicçâo de que nâo somos parte desta realidade. Tudo parece nâo passar de um simples sonho. A minha felicidade é algo contraditòrio, existe sempre algo de efêmero e impenetràvel dentro desta auréola de eternidade. Basta olhar de lado e vemos o mundo caindo aos pedaços, os homens traindo uns aos outros, o mal se espalhando por toda a parte que a vida parece se resumir a um pesadelo kafkaniano. Como agir? Todas as noites peço a essa força superior, se ela existe realmente, de nâo retornar a vida, desaparecer para sempre, esquecer completamente tudo que vivenciei e nunca mais respirar e sentir uma outra vez.

Durante a minha curta existência devo ter feito muita gente infeliz. Parece loucura se questionar sobre o horrìvel do nosso passado, mas como seguir adiante? Se vasculho cuidadosamente o meu passado, chego a conclusâo de que causei mais sofrimento do que alegria as pessoas pròximas a mim. Nâo fico triste por isto, talvez apenas chateado. Algumas vezes, ao fazer o mal, um alegria repentina e diabòlica se apresentava, algo contraditòrio, sentia uma certa paz num ato mesquinho e miseràvel. Uma paz de tirano.

Retornei aos lugares que frequentei no passado, uma espécie de volta suicida, na realidade, tentava buscar as lembranças das minhas primeiras traiçôes. O ato da traiçâo estava restrito agora no campo metafìsico. A minha decepçâo foi enorme. Nâo existia mais nada. Tudo havia sido destruido pelo tempo. Os lugares e as formas das coisas ainda existiam bestamente, mas a tonalidade e a mùsica eram outras. O perfume dos primeiros tempos tinha desaparecido, eu era apenas um simples estrangeiro, perdido no meio daquela paisagem. Tudo havia caido no esquecimento. Pela primeira vez senti verdadeiramente a inutilidade da minha vida, chorei como uma criança doente, nâo existia mais nada dentro de mim: nem mesmo o passado.

Visto-me e percorro as ruas sem um destino fixo, caminho ao léu, olhando vitrines, pessoas, monumentos. Antes de sair, automaticamente, coloquei algumas fotografias dentro do bolso do casaco. Nâo tinha o menor motivo para transportar essas fotos, tinha-as visto e revisto milhares de vezes, eram fotos de antigos amores, de amigos que haviam desaparecidos e de alguns lugares que tinha vivido. Chega-me uma vontade de jogar todas essas fotografias dentro do esgoto e começar tudo de novo, feito alguém que perde a memòria e a ùnica soluçâo é construir paulatinamente uma nova vida, deixando para tràs o passado.

O corpo dòi, nâo sinto fome, apenas uma vontade de andar sem rumo pela cidade, de fazer qualquer coisa de insensato. Sento-me num banco de jardim, sinto o volume das fotos no bolso, lembro-me de uma frase de um amigo: “Chega uma hora em que é necessàrio buscar o nosso destino com uma força de Hércules.” Choro baixinho. O frio faz a gente chorar mansinho, as làgrimas descem suaves sobre o meu rosto, algumas mulheres passam maquinalmente maquiadas para mais um dia de trabalho e olham discretamente na minha direçâo. Elas pensam que choro por causa do frio. Por vezes, também penso assim, mas hoje é diferente, sinto quase um prazer doloroso de chorar baixinho neste banco de jardim.
Lembro-me de um outro amigo que vive numa cidade distante de um paìs distante. O que serà que està realizando neste exato momento? Deve està trabalhando numa redaçâo de jornal qualquer, construindo um edifìcio de palavras, um edifìcio maior do que o Empire States-Building. Lembro-me de suas palavras: “O passado é uma presença constante em nossas vidas. Precisamos urgentemente domesticà-lo. O passado pode nos destruir. Vivemos sobre os nossos mortos. Esta é uma civilizaçâo de cadàveres, mas como evitar que essas lembranças venham à tona. O passado é um navio que naufragou e continua devolvendo seus mortos a superfìcie.”

Penso que o tempo me fugiu entre os dedos nestes ùltimos anos, como andam fugindo de mim as emoçôes e os sentimentos, sò Deus sabe como é horrìvel viver assim pela metade, como se eu fosse um criminoso a espera da execuçâo final. Durante estes anos todos abateu-se sobre mim um certo desinteresse e displicentemente fui deixando escapar o meu passado. Tudo era inùtil. Nâo conseguia captà-lo, por mais esforço que fizesse, em toda sua essência e totalidade. Passava noites inteiras na busca de algo importante que tivesse ocorrido no meu passado e encontrava apenas um abismo, um vazio, uma fortaleza abandonada.

Tentei relembrar algumas mulheres que habitaram o meu passado e encontrei somente um quarto vazio. Algumas tardes, vinham-me surpreendentemente pedaços de gestos, palavras soltas, formas de algumas mulheres, semblantes alegres e tristes, mas nada me pertencia realmente. Era como se alguém me tivesse confiado essas lembranças e a noite eu seria obrigado a devolvê-las. Todas as minhas recordaçôes estavam ficando estranhas a mim mesmo.

Trecho do livro ‘Nem Tudo Serà Perdoado’, nas livrarias Sìntese, Saraìva e Nossa Livraria, do Recife.
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