Aquela propaganda ridícula que ficava passando na televisão, na hora do jornal, aquela propaganda ridícula e horrorosa de cigarro ainda por cima tinha um de seus figurantes, diziam os outros vagabundos, parecido comigo. Parecido o caralho, eu ficava com muita raiva, eu sou assim, se eu não gosto eu estouro e não tem quem seja capaz de juntar os pedaços.
Mas com aquela brincadeira sem graça, eu perdia a pose. Foi assim por umas boas semanas, enquanto a propaganda insistia em passar, na minha cara, na cara de milhões de imbecis com suas televisões ligadas.
Engraçado que a última vez que eu vi aquela propaganda cretina coincidiu com o começo desse rolo todo em que eu me meti e que me fez estar aqui agora, escrevendo. Eu nunca escrevi nada na minha vida que não fosse em caderno de colégio, e depois caderno de universidade. Depois que eu vi computador, eu nunca mais parei de digitar e até da minha letra eu tinha esquecido, mas agora tudo o que me sobrou foram essas folhas de papel, uma caixa de caneta bic e essa nenê chorona toda cagada nos meus braços. Eu sou um perdedor.
Quero escrever até onde não der mais, pode ser que fique tudo incompleto, que ninguém entenda nada, mas pelo menos assim a minha agonia passa, é engraçado ver que cada palavra rabiscada aqui, com os meus garranchos pequenos, parece uma injeção de morfina. É como fazer cachorros loucos calarem a boca dentro de você, mesmo sabendo que eles só vão parar de latir quando rasgar e devorar alguma coisa sangrenta.
Mas a propaganda estava passando, dessa última vez que eu falei, justamente na hora em que eu e os vagabundos acertávamos com os bolivianos o preço da mercadoria. Era um caminhão inteiro cheio de eletroeletrônico, câmera digital da Sony, DVD, televisão wide screen, só coisa boa. A gente descolava os caminhões interceptados e repassava para os clientes, eu tirava um puta dinheiro desse lance sem nem sair de casa, na boa, dividindo com os outros. Ganhava muito mais em uma hora do que ganharia em um mês trabalhando com meu diplominha de contador. Mas a propaganda estava passando justamente na hora em que fechávamos o negócio e começaram a gozar da minha cara. Resumindo, fiquei com raiva, virei mesa, briguei com todo mundo e quase que rola tiro dentro do meu apartamento. Se um dos vagabundos, o gentleman, não tivesse me segurado na marra e me aquietado, porque pelo menos ele me respeitava, eu teria passado fogo nos outros dois e nos três bolivianos que ficaram rindo também, bando de desgraçado, puta que pariu, que ódio. Puta que pariu.
Então começou assim, meio que estranho, meio que ao acaso. O gentleman me empurrou para o quarto e falou, deixa que eu assumo os negócios e despacho os caras, toma um comprimido e deita, fica frio. Custou para que eu aceitasse porque eu só ia sossegar se visse um pouco de sangue, mas foi o jeito e ele voltou para a sala consertar a bagunça. Daí eu me deitei, xingando deus, o diabo e a humanidade. Então eu ouvi.
Primeiro achei que estivesse só tocando a música na minha mente, eu fazia isso o tempo todo, ficava tocando um monte de música dentro da minha cabeça. Mas não era, estava bem baixinho mas estava tocando sim, nas imediações, em algum apartamento, em algum canto. Joy Division, Isolation, inconfundível a voz do Ian Curtis. Tinha alguém no meu prédio ouvindo Joy Division. Só de ouvir aquilo, minha raiva caiu pela metade; daí eu fiquei lá, deitado, quieto, concentrado no som, esperando os bolivianos irem embora.
Não lembro bem se cochilei, ou se apaguei mesmo, mas quando voltei a mim, o gentleman estava me cutucando e reclamando, poxa, você não pode esquentar desse jeito com os caras, quase que a gente se ferra com os clientes. Eles compraram só metade do negócio e não iam comprar nada se eu não tivesse ajeitado. Eu falei, mas os vagabundos ficam com merda para cima de mim, você sabe que eu sou esquentado, daí ele me interrompeu e falou que eles não iam mais falar besteira na frente dos outros e que estava tudo bem. Beleza. Voltei para a sala, estavam os outros dois com cara de bunda, desculparam etc etc, tomamos uns tragos, fumamos uns baseados e foi cada um para a sua casa satisfeito. Eu fiquei lá, largado, pensando no som do Joy Division. Eu sou esquentado mas a raiva costuma passar logo, por isso eu tenho que ser rápido e explodir meu desprezo em cima de alguém, senão engasgo e o negócio acaba. Na boa.
* * *
A nenê está enchendo o meu saco, se eu fosse um monstro mesmo, já tinha jogado ela daqui de cima, na boa. Eu dou a mamadeira, faço do jeito certo, do jeito que me ensinaram, agrado, até música eu canto, mas ela parece que sabe como me irritar. Ela tem os olhos azuis e cai no sono, coloco enroladinha sobre as cobertas no chão, vou no banheiro chorar um pouco e volto a escrever isso.
Eu parei de falar na parte em que achei que tudo tinha começado a acontecer de verdade na minha vida, quer dizer, até então eu tinha a impressão de que vivia o mesmo dia, o tempo todo. Só sacanagem, mercadoria roubada, seqüestrada, negociações e explosões de raiva. Dinheiro fácil. Todo dia, a mesma coisa, eu sou um desgraçado tão agoniado que eu passo o imã do calendário para o dia seguinte antes das nove horas da noite. Sou cheio de expectativas que não conheço, tenho a esperança de que alguma coisa vai acontecer em algum momento, mas nunca acontece e quando acontece, como me ocorreu dessa vez que eu quero contar aqui, é para me jogar lá para baixo. Eu vivo perdendo, vivo para perder.
Antes de voltar a contar como foi o rolo, eu preciso falar sobre o que tinha se passado comigo há uns bons anos atrás, antes mesmo de conhecer os vagabundos e quando eu ainda morava com os meus pais e com meu irmão menor doente. Pode parecer loucura, mas é que tudo teve a ver no final das contas. Eu também quero falar de outra coisa, que já me engasgava antes, não necessariamente na mesma época, mas que também se liga com tudo que está acontecendo. As lembranças ficam insistindo, martelando dentro de mim, mas eu não sei mais se fico com raiva ou se corro de novo para o banheiro chorar, é tudo o que eu tenho conseguido fazer nesses últimos momentos de desespero.
A coisa é meio complicada de ficar contando, assim, no papel, mas na prática é tudo bem simples. Primeiro apareceu uma mulher no meu caminho, com vinte e sete anos, da minha idade, que me conheceu pela internet, logo depois que eu sai de casa e vim morar nessa cidade imensa. Estava começando a lidar de negócios com os vagabundos, eu e o gentleman já tínhamos descolado um monte de contatos, sabíamos das rotas dos caminhões, coisa vindo do Paraguai, coisa vindo até de Miami, ou saindo das fábricas. A gente sabia de tudo, eu fiquei deslumbrado com as possibilidades do dinheiro fácil, muito melhor do que ficar com a calculadora na mão fazendo conta para os conhecidos do meu pai, ganhando uma porcaria. Sem condições aquilo. A maluca, eu falava dela assim para quem perguntasse, a maluca me cutucou numa dessas salas de bate-papo e depois de muita conversa veio atrás de mim. Eu sempre fui desconfiado com mulher, até aí tudo bem. Ela queria tomar um cafezinho comigo e me ver ao vivo, na boa, e eu aceitei, pensando que era para ser o contrário, que era para eu ter chamado ao invés dela me chamar. Eu sou estourado, mas sou muito fechado, muito cismado. Isso foi há uns dois anos atrás.
Quando a gente se encontrou eu vi que ela era bem bonita, fiquei pensando, puta que pariu, que sorte a minha, uma mulher de internet que me chama para sair e que é bonita ainda por cima, é muita sorte, tem que ter algo de errado. Mas eu fiquei na minha, ela não parava de falar, não parava de falar a respeito dela, das coisas que ela gostava, de cinema, de besteira, de frescuras e enfeites de natal, de Feng Shui, do emprego dela em uma locadora de filmes e do quinto período em biologia. Ela não parava de mexer com as mãos e de arrumar o cabelo, não tomou café, tomou uma pepsi com canudinho, eu lembro por causa da marca de batom que ficava olhando para mim na ponta do negócio. Eu até que gostei dela, mas não rolava.
Ela era bem persistente, ficava ligando, ligando, eu as vezes pensava nela e ligava de volta, mas não rolava, toda vez que eu cogitava beija-la ou tomar qualquer atitude descarada eu me lembrava da merda que tinha acontecido comigo antes de chegar na cidade. Lembrava perfeitamente, de como tinha acontecido, de todos os momentos, com detalhes vívidos, e passava mal. Me dava náuseas e o coração acelerava. Era disso que eu queria falar também, que eu acho que tem a ver com a maluca, mesmo tendo acontecido antes de conhece-la, e também tem a ver com o rolo.
Eu nunca contei isso para ninguém.
Quer dizer, eu estava com uns dezenove, quase vinte anos, e os meus poucos amigos tiravam sarro da minha cara, até meu pai ficava sugestionando, eu me sentia ridículo, nem precisava ele falar nada abertamente. Eu era motivo para cair no ridículo, logo eu, que era estourado, que nunca pesei motivos para não meter a mão na cara de um estúpido qualquer. Por isso que eu também relaciono esse segredo com o lance da propaganda do cigarro, era uma coisa que me tirava do sério, mas me deixava sem defesas.
Daí o meu maior erro foi resolver o problema de uma forma impensada, tudo bem que eu sempre acabo me precipitando, mas aquilo ali foi foda, se eu tivesse noção de como ia repercutir na minha vida depois, de como ainda me dói, uma ferida aberta no meio de mais um monte que eu tenho na alma, eu jamais o teria feito. Pior mesmo foi ter que contar depois para os outros de uma maneira absolutamente maquiada, escondendo a verdade. E no final das contas, eu acabo misturando todas essas porcarias dentro de mim, esse erro, a maluca, a propaganda e o rolo com a gótica. Mais na frente eu vou falar dela.
Lembro bem, eu chegando no meio da roda de amigos e falando que finalmente estava igual com eles, me borrando todo por dentro. Foi por causa dessa merda que eu sai de casa assim que peguei no diploma, e fiquei sem dar notícias por um bom tempo. Simplesmente não dava para viver ali, onde eu tinha começado a me destruir. Pode parecer frescura ficar moendo tantos acontecimentos, mas não foi nada legal começar a minha vida sexual estuprando uma menina. Eu estava com dezenove e tudo o que eu sabia sobre sexo era uns beijinhos na boca de duas namoradas que eu tinha tido. A pressão era tanta, porque em um lugar desprezível como o que eu vivia todo mundo sabia da vida de todo mundo, que eu ia acabar enlouquecendo. Todo mundo cobrava uma transa. Só quero deixar claro que, depois de ter comido uma menina a força, fiquei com um nojo tremendo de sexo. Logo eu, o estourado, o que resolvia as coisas da maneira mais crua possível. Foi isso. Depois dessa, não agüentei morar naquele lugar, tanto por ter ficado absolutamente impune pelo silencio dela como por ter visto as possibilidades de dinheiro fácil que eu teria vindo para cá.
Voltando a falar da maluca, ela pegou no meu pé pra valer desde que me conheceu. Insistia de todas as formas e eu me sentia incapaz de ficar com ela, aliás, eu me sentia incapaz de qualquer relacionamento desde essa história do estupro. Nem de bronha eu queria saber, periodicamente acordava melado de manhã, mas era incapaz de ir atrás de sexo porque me fazia passar muito mal. Eu já tinha mandado um monte de idiotas para pronto-socorro, manjo bem de violência, de como ser violento, mas sexo me dava um asco. Por mais que eu pensasse, gostasse e desejasse mulher, não rolava porque eu lembrava logo da menina desesperada, sem defesas contra o meu peso em cima do seu corpo, a mão pesada empurrando a cabeça dela contra o chão, as pernas abertas a força com a calcinha rasgada. Lembrava da dificuldade ridícula em achar o local certo de enfiar, o pau doendo de tão duro, uma sensação horrorosa de mediocridade com maldade. Chega de lembrar.
A maluca era apaixonada por mim.
De qualquer forma, demorou muito mesmo para eu querer beija-la na boca porque eu sabia que depois que isso acontecesse, ela ia querer foder. Tinha umas coisas meio bizarras que eu fui descobrindo depois sobre ela. O computador dela era cheio de sacanagem, ela se amarrava, para o meu desespero, em putaria digital. Cumshots, fisting, golden showers, blowjobs, bondage, discipline, anal, oral, gang-bangs, SDM. Bukkake. Ela sabia tudo, tinha cds e mais cds de sacanagem, páginas na internet, coisas que eu nunca tinha imaginado, ela curtia de olhar. Falava no meu ouvido que as vezes sonhava que estava em cima de uma mesa rodeada por homens desconhecidos que iam comendo ela ao mesmo tempo, metendo o pau na boca dela, enrabando, gozando em cima dela. Depois traziam um cachorro e faziam ela foder com o bicho. Eu me sentia nauseado e ficava irritado só de ouvir ela falar, tentando me esquivar das investidas e das imagens. Abominei ter conhecido a maluca.
Eu e os vagabundos estávamos com altos negócios rolando, o dinheiro tinha começado a entrar beleza e eu pude comprar um apartamento razoável e recheá-lo, devagarzinho, com coisas legais. Tinha aparelho de som do melhor, home theatre, muitos cds de rock dos anos oitenta, equipamento de musculação. Revólveres, eu adoro revólvers, colt, magnum 765, 44, desert eagle, tudo ilegal pelas minhas gavetas. Vivia me esquivando da maluca, dava um jeito de não encontra-la mais que uma vez na semana e de ela não descobrir exatamente o que eu fazia, mas não tinha coragem de destrata-la ou de manda-la para o inferno. Agüentava os e-mails apaixonados dela e as propostas indecentes, tentava enrolar mas era complicado, como alguém poderia entender o meu problema sem saber o que tinha rolado? Só que não teve jeito e eu comecei a foder com ela, sem sentimento nenhum, sem vontade, sofrendo, passando mal. Não saia do trivial por mais que ela insistisse com bizarrices. Não sei como ela me agüentava, para falar a verdade.
Então, tempos depois de eu ter escutado o Joy Division tocando, ela veio com a história dos swingers. Mas antes eu tenho que falar da gótica.
* * *
A nenê acordou duas vezes antes de eu voltar a escrever. Já enchi um monte de folhas, rasguei algumas, esse lugar está fedendo a fumaça de cigarro. Eu também peguei o revólver e coloquei na cara da nenê, mas eu não tenho coragem de atirar, minha mão treme descontrolada e eu só consigo chorar, correr para o banheiro e chorar. Coloquei a arma na minha boca mas não dá. Ainda não dá.
Eu vi a gótica no prédio pela primeira vez alguns dias depois de ter escutado o Joy Division, isso vai fazer um ano nas próximas semanas. Nunca tinha esbarrado com ela porque o seu apartamento era no outro bloco, então ela pegava o elevador do outro lado. Que besteira isso, um desencontro tão banal. Eu estava pegando correspondência na portaria, coisa que eu fazia uma vez na semana com muita má vontade, e ela passou bem de longe para tomar o seu elevador, com meia arrastão preta e coturno, maquiagem pesada e uma camiseta escrito Bela Lugosi’s dead. Corri para tentar subir com ela, mas não deu tempo e a perdi. Voltei e perguntei para o porteiro qual era o apartamento dela e ele ficou rindo e falou que era o novecentos e três, eu falei, do que você está rindo seu filho da puta e segurei ele pela camisa, um fracote de merda que eu podia esmagar de olho fechado. Ele se borrou e se desculpou, calma senhor, pelo amor de deus etc. Deixei passar.
Foi outra novela até conseguir vê-la de novo, vários dias. E também nunca mais tinha ouvido de novo ela escutando Joy Division, quer dizer, só podia ser ela escutando naquele dia, uma menina de preto com aquela cara devia amar aquele som. Foi na frente do prédio, eu estava saindo com o carro e ela estava na calçada, andando, toda de preto, é claro, com o cabelo na cara. Ei, eu baixei o vidro e chamei, ei, vem cá, você gosta do Joy Division, não é? Ela demorou para olhar e mais ainda para parar de andar. Não me encarou, continuou com o cabelo na cara e balançou a cabeça positivamente sem sair do canto, a uns metros do carro. Eu desliguei o motor e continuei a mexer com ela, poxa, olha só, eu adoro o Joy Division, sou fã das letras do Ian Curtis, vamos trocar umas idéias, não sabia que tinha quem gostasse dessas coisas morando no prédio, escutei você ouvindo outro dia desses. Ela tirou o cabelo da cara, tinha um nariz pequenino, sobrancelhas feitas extremamente finas, olhos claros com o contorno realçado com lápis. Batom preto. Vestia uma camiseta toda rasgada com a alça do sutiã aparecendo, era até engraçado, e tinha uma coleira de cachorro no pescoço. Olhou para a minha cara bem desconfiada e deu um sorriso de desprezo, fazendo um tchauzinho com a mão. Fiquei meio puto, mas ainda falei, depois aparece lá no meu apartamento para ver os meus cds, eu tenho um monte, posso copiar para você, é o quinhentos e um. Achei que ela nem tivesse escutado, porque já tinha voltado a andar na direção oposta.
Foi bem estranho, principalmente porque faziam muitos anos que eu não me apaixonava.
* * *
Um dos vagabundos ligou agora a pouco para o meu celular falando que tinham pegado o gentleman e a namorada dele na estrada, com o carro cheio de droga e com defuntos no porta-malas. Bateram numa carreta tentando fugir e estavam arrebentados. Puta que pariu.
A nenê ainda está dormindo, por segurança estou com a arma aqui, no colo, carregada, enquanto escrevo. Não que eu esteja pensando em usa-la nesse momento, mas a coisa vai ser assim até eu decidir o que fazer. Pela primeira vez, sinto falta da minha casa e dos meus pais, mas é foda, não dá para voltar atrás, agora que eu sei que eles morreram sem falar comigo depois de eu ter saído de casa deixando tudo para trás. Eu queria muito saber onde meu irmão doente está, mas a situação tomou proporções tão absurdas que isso é impossível.
Eu pensei que a gótica fosse me procurar. Esperei um dia, dois, três, uma semana, porra nenhuma. Nada. Ela nem devia se lembrar da minha cara, devia estar se lixando para mim, pensando que eu era mais um vizinho engraçadinho.
Como eu era estourado mesmo, eu sou meio doido, quando eu quero uma coisa eu quero e pronto, fui até o apartamento dela com um monte de cds dentro de uma sacola. Novecentos e três, toquei a campainha umas cinco vezes e ninguém aparecia, quando ia voltar para o elevador disposto a chutar o que me aparecesse pela frente, me sentindo completamente desprezível, ela abriu a porta com uma cara esquisita, pois não, o que você quer? Eu estava no telefone, por isso não deu para abrir antes.
A minha raiva foi embora.
Eu falei, trouxe uns cds para você escutar, você nem me procurou.
Ela ficou me olhando desconfiada, de cima a baixo, com cara de inquietação. Não abriu a porta mais que uns poucos palmos, nem se mostrava de corpo inteiro. Fiquei me sentindo mais desprezível ainda. Hum, falou, deixa eu ver o que você tem aí. Tinha tudo do Joy Division. Tinha Bauhaus, Sisters of Mercy, Siouxie, Cure. Até Smiths e Bowie tinha. Ela remexia nos cds dentro da sacola sem acreditar, nossa, quanta coisa que você tem, ai, eu vou querer escutar sim, olha só, tem o Ziggy Stardust, eu amo o Ziggy, ela dizia.
Daí eu entrei, passei a tarde com ela ouvindo música e conversando.
Até aí tudo bem, conhecer aquela menina, saber em questão de algumas horas um monte de coisa que eu vinha sonhando em descobrir antes de termos um contato real. Saber que ela tinha dezoito e ia fazer dezenove no final do ano, que morava com uma prima publicitária que passava o dia fora, que o quarto dela era inteiro cor-de-rosa e preto, com um monte de pôsteres, um imenso do Robert Smith na porta e a capa do First and last and always no teto. Tinha caveirinhas, espinhos, giletes, coisas esquisitas e repulsivas para qualquer pai e mãe, mas também tinha bichinhos fofos de pelúcia, Hello Kitty, joaninhas, estrelas que brilhavam no escuro e mais um monte de coisa de menina. Ela não fazia nada da vida que não fosse matar aula no cursinho e tirar fotografias em cemitérios, vi uns dois álbuns disso só naquele dia.
Antes eu tinha achado que ela podia ter qualquer idade com aquela cara, mas vendo de perto ela tinha cara de criança ainda. Depois daquela tarde passamos a nos ver direto, quase todo dia, ela me ligava sempre depois do almoço e eu sempre dava um cd de presente quando a encontrava. Como meus horários eram bem estranhos por causa das reuniões com os vagabundos e com os clientes, às vezes desencontrávamos, mas dávamos um jeito de deixar recado. Na primeira e na segunda semana foi beleza, foi maravilhoso, mas depois começou a ficar uma merda porque comecei a achar que ela não gostava de mim, ou, muito pior, que ela me via como o irmãozinho mais velho. Irmão o caralho, aquilo me deixava desesperado e me fazia sofrer como um condenado, me colocou naquele velho clichê de paixão: o dia inteiro em expectativa, alternando tristeza e rejeição com euforia e desejo. Na boa.
O gentleman me viu com ela e ficou perguntando se eu estava dando de mamar, aquele filho da puta. No começo eu me irritava com essa brincadeira e dava uns murros nele, mas depois eu passei a aceitar. Ele servia como uma âncora para a razão, já que eu estava totalmente passional. Ele era meio alucinado por causa do pó que cheirava com aquela namorada pin-up dele, mas quando não estava chapado era uma criatura de muito bom senso.
Só que tinha a maluca, que ainda ficava me ligando e que ainda freqüentava minha casa, e ia foder comigo. Quer dizer, depois de conhecer a gótica, eu fodia com a maluca pensando nela e o asco por sexo nem era mais uma coisa tão horrível assim. Comecei a ficar mais hardcore e ela, a maluca, claro, começou a insistir comigo para participarmos de uma treta que ela estava armando. Eu estava ficando mais desesperado ainda porque tinha medo que as duas acabassem se esbarrando no prédio, que uma me visse com a outra, e que eu perdesse a gótica. Daí eu joguei para a maluca, é o seguinte, se eu fizer o que você quer, você deixa de vir aqui? Perguntei na cara dura mesmo, olhando feio. Ela me olhou meio desamparada, mas sem estar surpresa porque a situação tinha ficado insuportável. Eu não sei, ela falou, como assim deixar de vir aqui? Não posso nem ligar? Ligar pode, eu falei, mas vamos parar com isso, você vem aqui, transa comigo sem a gente ter nada, eu não gosto dessa situação nem quero caso com você, me desculpe mas eu tenho que falar. Ela ficou parada, gelada, fugindo do meu olhar. Se é o que você quer, ela respondeu com a voz tremendo, ela ia chorar se não falasse logo, se é o que você quer então eu deixo de vir aqui.
Então me fala o que você quer.
Ela contou a treta toda, que estava participando a um tempo de uma lista de swingers, que estava inscrita e tudo, trocando altas idéias com um monte de casais malucos que nem ela. Enrolou, enrolou e depois de eu ficar irritado e manda-la falar logo o que queria, ela me explicou que eu precisaria fingir que era casado com ela para participar de uma suruba que ia acontecer nos próximos dias. Puta que pariu.
Eu ia botar ela para a fora no tapa do meu apartamento, mas segurei a raiva e falei, vou pensar, agora vá embora que eu preciso trabalhar e depois falo com você. Na boa.
* * *
Então a coisa já estava bem complicada no ponto em que eu parei de contar. Fiquei enrolando a maluca por uns bons dias até dizer que topava ir para a suruba, para o meu desespero absoluto. Nesse meio tempo, duas merdas estavam acontecendo. A primeira era com a gótica, que as vezes dava uns sumiços, passava o dia sem me dar notícias, saía com as amizades esquisitas dela, uma molecada de preto, eu ficava achando que ela não gostava de mim e que ia se afastar de vez, e de repente me ligava ou aparecia no apartamento, como se nada tivesse acontecido. E nada de rolar algo de verdade. A outra era que os vagabundos estavam ficando com medo da polícia federal, que andava tentando fazer cerco no nosso negócio. Tinham prendido cinco caras que paravam caminhões nas interestaduais e que nos forneciam alguma carga.
Para não me alongar escrevendo, eu resolvi o seguinte: perguntei para a maluca quando é que era o negócio e ela ficou de ver; dei uma câmera digital para a gótica, uma Cannon do caralho que tinha vindo em um dos caminhões e dei também um celular para saber por onde ela andava, um para ela e um para a prima dela, que sempre olhava para a minha cara com um ar de desconfiança; e me reuni com os vagabundos e com alguns de nossos fornecedores para tentar tirar o nosso da reta e despistar a polícia antes que alguém contasse algo.
Dessas três decisões, acho que nenhuma adiantou de muita coisa. A maluca no outro dia me mandou um e-mail, já que tinha parado de me ligar, falando que a suruba ia ser no final do mês na casa de um casal da lista. A gótica amou a câmera e o celular, mas continuava imprevisível e misteriosa. Paciência. A reunião deu em briga, fiquei puto com uns e outros, tiveram que apartar, mas no outro dia mandamos quebrar uns caras que estavam ameaçando abrir o bico. Eu fui junto, atirei nos joelhos de um e arranquei os dentes de outro no murro, foi bom, foi ótimo, me deixou mais leve e menos estressado. O problema mesmo era ficar pensando na gótica o dia todo.
Faz quase um dia inteiro que vim para cá com a nenê. Eu não tinha falado antes, mas estou escondido em um apartamento vazio que fica no primeiro andar do meu prédio, por isso que não tem nada aqui dentro, nem comida, nem nada. A pouca comida que eu trouxe está praticamente no fim e as mamadeiras também. A pressão está ficando insuportável, comecei a escrever essas coisas todas a poucas horas, aliviou, mas eu não sei até que ponto vou conseguir me controlar. Meu celular tocou agora a pouco mas eu não atendi porque era um número que eu não conhecia.
A maluca me deu uma trégua de verdade antes do dia da suruba, o que foi beleza para que eu investisse melhor na gótica e tentasse equilibrar os negócios. Eu ficava esperando ela chegar no meu apartamento, sempre de preto, sempre maquiada, com a câmera digital que eu tinha dado. Tirávamos um monte de fotos, teve uma que eu adorei, que ela tirou de mim deitado na cama, sem camisa, rindo, enquanto ela pisava descalça, bem de leve, no meu peito. Seria uma foto boba, se não fosse o ângulo, que era o que ela via olhando para baixo.
E nada de rolar. Nada de beijo.
Eu podia tentar agarra-la, sem violência, mas só em pensar naquilo eu me lembrava do estupro, da menina tentando gritar sem conseguir. Da vagina lubrificada com sangue, do ardor no meu pau quando eu fui mijar logo depois. Era, era não, é, é um pesadelo, uma coisa horrorosa que vem como uma lembrança que come tudo que tem por dentro. Eu consigo me lembrar dos idiotas que eu espanquei sem remorsos, mas sou incapaz de ficar indiferente com o que eu fiz.
O máximo que rolava entre eu e a gótica eram abraços e um cafuné que ela gostava de fazer, quando eu colocava a cabeça no colo dela. Eu ficava olhando para as pernas dela, com a meia arrastão, enquanto sentia seus dedos brincando com meu cabelo, as unhas roídas e pintadas de preto, cheia de anéis de latão. Vou te dar um anel bem bonito, eu falava, ela ficava rindo e me perguntava todo dia se a minha baixa estima estava alta, se estava mais alta que a dela, que estava sempre em níveis indescritíveis. Tirava sarro da minha cara por causa da propaganda, do cara da propaganda de cigarro que parecia comigo, mas eu nem ligava mais, ela eu deixava.
Eu me sentia incapaz de tentar algo de verdade, de abrir meu coração para ela porque sabia que podia perde-la e eu não ia suportar aquilo. Viver sem ela por perto depois de conhece-la, de ver como ela era doce, beleza negra e tristeza infinita, era algo que me deixava trêmulo. Eu a tocava com receio, tinha pavor de abraça-la com mais força ou de beija-la no rosto ou na testa de maneira indelicada. Escutávamos música juntos, The passion of lovers do Bauhaus, ela cantava Walk away do Sisters, eu gostava mais do Sisters do que do Joy Division e ela falava, morra, brincando. Eu morria mesmo, só de imaginar o gosto da saliva dela, a textura da língua com piercing, as suas lágrimas, a sua dor, parte de mim o tempo todo. Eu sou um perdedor desgraçado, um desprezível. Ela gostava de mim mas não me amava.
A coisa foi rolando assim, amando a gótica, despistando o faro da polícia, ganhando meu dinheiro brigando com os vagabundos e tentando me livrar da maluca depois da suruba, que foi adiada, ela me disse num e-mail, para o mês seguinte porque vinham uns casais de fora para participar também. Melhor ainda, eu pensei. Nessa brincadeira, eu já estava sem escutar a voz dela há um bom tempo, quem sabe não esquecesse daquela besteira e sumisse da minha vida de vez.
A nenê acordou. Depois escrevo mais.
* * *
Reli as últimas coisas que escrevi, risquei umas, adicionei novas anotações. Eu sempre penso, puxa, por que é tão difícil para mim encontrar alguém por quem eu possa realmente me apaixonar e amar, uma menina qualquer, nem precisa ser muito bonita, só nos meus olhos mesmo. Por que é tão difícil? Por que é mais difícil ainda encontrar alguém que me ame? Eu nunca encontrei. A maluca não conta, ela tinha paixão em foder, aquela desequilibrada imoral.
Chegou a véspera do dia da suruba e a maluca me ligou, eu estava com a gótica ouvindo música. Foi péssimo porque foi ela quem atendeu o telefone e quando me passou, a maluca foi logo perguntando quem era. Não é da sua conta. Ah, então é por isso, agora eu entendi tudo, seu merdinha. Você vai furar o nosso acordo, eu sei que vai. Fiquei puto, deixei a gótica ouvindo música, meio desconfiada, e fui falar com a maluca em outro canto do apartamento. Eu não vou furar porcaria nenhuma, eu vou honrar o compromisso e você vai me deixar em paz para sempre, está escutando? Está escutando? Ela deu uma soluçada, eu nem lembrava mais da voz dela, e falou, é amanhã a noite, venha aqui me pegar depois do jantar, eu te explico os detalhes porque não é tão simples, eles são meio desconfiados. Desliguei.
A gótica nem perguntou quem era, só perguntou se eu estava bravo, se era para ela ir embora. Eu fiquei com mais raiva ainda da maluca cretina, aquela vaca, ainda por cima tinha causado constrangimento no meu amor, que não tinha nada a ver com aquela sujeira. Não, eu falei, você fica aqui no meu apartamento o tempo que quiser, sabe que se quiser morar aqui é só vir. Ela não tinha feito aquilo ainda porque senão a prima ia contar para os pais dela, que moravam bem longe e se resumiam a financiar a morada e os estudos dela. Eu podia dar muito mais, só que não tinha sentido arrumar confusão com a família dela.
A gente conversava muito, ela tinha falado que nunca tinha namorado e que era virgem. Me contava essas coisas e descrevia a vida dela de um jeito que me deixava tremendo, o coração disparava, querendo rasgar tudo e sair pela boca, pela boca não, pelo peito, abrindo de dentro para fora, explodindo, um coração em pedaços. Dizia que a música era uma coisa que ela amava a várias gerações, a mãe dela era violinista e a avó, pianista. Ela perguntava de mim também, mas menos do que falava a respeito dela. Eu nem falava muito a meu respeito porque eu não gostava, já bastava estar mentindo sobre o que eu fazia, dizendo que tinha uns dinheiros de herança aplicados em um monte de coisa. Como eu era contador, dava para enganar bem, mesmo doendo dentro de mim. A minha vida repetitiva tinha entrado em um ciclo mais repetitivo ainda, cheio de dor, angústia e um desespero por saber o que me esperava. Só expectativas com coisas que nunca aconteciam. Ela encontrou uma vez uma ponta de baseado que eu tinha fumado com o gentleman e a namorada dele na noite anterior e perguntou se eu tinha mais, recusei no começo, não queria que ela entrasse naquela também, mas acabei cedendo e a gente passou a fumar junto. Na semana antes dessa ligação da maluca confirmando a suruba, eu lembro bem, a gótica ficou sem me dar notícias e com o celular desligado. Quase que eu morro, nem a prima sabia onde ela tinha ido parar. Quando ela deu as caras, fiquei sabendo que tinha visitado os pais e que tinha brigado com eles e queria morrer etc. Consolei, mas nada de beijo. Chegava perto, eu não tinha coragem, nada de beijo, ela passava a mão no meu rosto, apertava os meus braços, eu a tocava chorando por dentro.
* * *
Agora vou falar da suruba e do dia em que eu decidi ligar para meus pais, depois de muito tempo. Estava muito desesperado, quase como agora, em um daqueles dias que a gótica ficava sem dar notícias. Isso foi bem antes do dia da suruba acho, ou foi depois. Não tenho certeza, mas não tem importância quando foi. Liguei e demorou muito para atender, e quando alguém atendeu não era uma voz conhecida, era engano. Perguntei qual era o número que tinha ligado mas era mesmo o número dos meus pais.
Fui descobrindo que a minha família tinha se mudado sem deixar número, sem deixar rastro. Como a gente não tinha mais parentes, eu não tinha mais para quem ligar, nem amigos, nem vizinhos, nem nada. Tinha perdido todo e qualquer vínculo com eles.
Então teve a noite que eu tive que ir buscar a maluca para me livrar dela de vez, indo na maldita suruba. Ela me deixou com raiva logo na chegada, demorando para vir. Depois ficou moendo dentro do carro, reclamando, falando um monte de besteira, torrando a minha paciência. Fui curto e grosso, falei, você quer ir nesse negócio comigo, beleza, eu vou com você e fim de papo, não quero mais notícias suas. Eu sei, eu sei, ela disse, fingindo frieza, já combinei tudo, venho arrumando esse esquema a um tempão pela internet, já conheci alguns deles pessoalmente, até certidão de casamento falsa eu arrumei para convencer, se for necessário. Maluca. Ela continuou, coloca pelo menos esse anel no dedo, e puxou uma aliança do bolso da calça.
Eu não ia escrever sobre as coisas que aconteceram naquele lugar porque, de certa forma, contribuíram muito para que tudo desse errado. Mas, sendo breve, eu fui até lá com ela, uma dessas casas grandes cheia de frescuras, com mais uns dez ou doze casais, escutando música ruim, bebendo e comendo. A maluca se entrosou com aqueles pervertidos rapidinho e eu fiquei no canto, desconcertado, balançando a cabeça. Vieram várias vezes perguntar se era a primeira vez da gente e eu falava que sim, conforme tinha combinado com a maluca. Ficou um bom tempo nessa troca de cordialidades até os casais começarem a se chegar um no outro, para o meu nojo. Teve uma loira falsa que ficou no meu pé e não largou mais, só esperando a hora de ir para os quartos. Quando todo mundo foi sumindo, os casais trocados desaparecendo para o andar de cima, a gótica me ligou chorando.
Coincidiu de eu já estar passando mal de asco com a ansiedade por ouvir a voz dela trêmula, dizendo que precisava de mim e que se eu não fosse até ela naquela hora, ia fazer uma besteira. Não tem como raciocinar nessas horas, pensar que ela estava sofrendo, que talvez daquela vez fosse acontecer alguma coisa porque ela tinha se lembrado de mim para conforta-la de verdade em um momento de dor. Me deu um desespero tão grande que, se eu não saísse de lá naquela hora, se alguém me impedisse, eu poderia matar com as mãos.
Foi mais ou menos isso que eu fiz, sair daquele lugar horrível sem dar satisfações para ninguém, nem para a loira ridícula nem para a maluca, que já tinha subido foder com não-sei-quem. Beleza. Deixei uns idiotas falando só, que recuaram na hora em que viram a minha cara fechada. Fui voando até a gótica.
Eu toquei no apartamento dela e ela atendeu na hora, foi logo me abraçando, meio apavorada, pedindo para eu abraça-la, para não deixa-la só, que no final das contas eu era a única pessoa que gostava e que cuidava dela etc. Lembrar das coisas que ela falou me machuca demais, não é fácil conectar coisas tão doces e sentidas com o que veio depois. Eu falava, está tudo bem, chorando com ela, está tudo bem, me diz o que houve que eu juro que vou resolver para você, ninguém vai te machucar ou te magoar enquanto eu estiver por perto. Eu não vou te deixar sozinha nunca.
Ela perdeu o controle.
Ela perdeu o controle chorando, não falou mais nada e adormeceu nos meus braços, sem me beijar. Eu quase que a beijo enquanto dormia, mas não consegui, eu sou um perdedor. Levei ela para dormir na minha cama, no meu apartamento, junto comigo, e foi só isso. Não teve mais nada, nunca ia acontecer mais nada e não haveria absolutamente, irreversivelmente, mais nada.
A maluca ligou pouco tempo depois, eu tinha me esquecido completamente daquela cretina. Foi logo falando besteira e eu desliguei na cara dela. Desliguei o celular. Joguei no chão. O telefone fixo tocou e eu tirei do gancho, para o inferno com aquela infeliz desgraçada. Coloquei a gótica na minha cama e fiquei olhando ela dormir, engolindo o meu choro, engasgando com um negócio ruim que parecia crescer dentro de mim para avisar que a minha vida estava arruinada.
No outro dia de manhã eu acordei e a gótica estava encolhida na cama, com os olhos abertos, olhando para o teto, só de sutiã e calcinha, eu nunca tinha a visto daquele jeito. Eu perguntei se ela estava melhor, se podia me contar o que tinha acontecido e ela ameaçou chorar de novo, mas eu fui para perto dela e ficamos abraçados mais um tempão. Ela soluçou um pouco e eu disse, me fala. Me fala que eu sopro a tua tristeza para longe, me fala, eu posso fazer qualquer coisa por você e ninguém vai te magoar. Eu te amo, sabia? Eu falei isso sem notar, ela continuou calada e eu me senti ridículo e minúsculo.
Demorou uma eternidade para eu ouvir a sua voz novamente e, quando aconteceu, ela disse que estava grávida. Que fez aqueles testes no xixi três vezes seguidas e todos tinham dado positivo e que tinha ido no ginecologista com a prima e confirmado. Umas dez semanas. Como assim grávida, você é virgem, como assim, eu falei, não estava entendendo mais nada.
Ela contou que tinha ficado com alguém, não falou quem, e que tinham transado algumas vezes a pouco tempo atrás. Havia mais de dois meses que eu estava amando a gótica e ela tinha dado para algum desgraçado, simples assim. Chegou e deu. Eu sai de perto dela e fui me sentar do outro lado do quarto, no chão, sentindo o meu corpo formigar inteiro, a minha cabeça estourando de dor.
Me ajuda, por favor, ela pediu.
Quem é esse cara? Eu perguntei mas ela não dizia. Falei o nome de todos os meus amigos, conhecidos, até o gentleman eu citei, e ela negou um por um, enxugando as lágrimas com as costas da mão. Você não conhece, me falou. Você não conhece, ele está com AIDS, eu acho que ele passou para mim, e voltou a chorar desesperada novamente. Puta que pariu. Se eu não estivesse quebrado demais para odiar, eu teria saído naquela hora atrás dos amigos dela, acabar com um por um, devagar. Mas não fazia diferença saber ou não saber, detestar ou ignorar. Não faz diferença alguma.
Chega de lembrar por enquanto.
* * *
Agora a pouco eu subi escondido até o meu apartamento pegar umas coisas, ninguém me viu. É madrugada. Está tudo interditado lá dentro, tudo marcado pela polícia federal, se alguém sonhar que eu estou nesse prédio ainda, eu estou perdido. Deixei a nenê sozinha nesse meio tempo, mas ela não acordou, ela até que se acostumou comigo, só me irrita quando está com fome.
Não tem muita coisa importante para contar depois da gótica ter me dito aquilo. Eu morri mesmo naquele dia, acho, apesar de vir agonizando desde que tinha ouvido o Joy Division tocando no apartamento dela. É como uma queda grande que chega ao fim.
A maluca me procurou, armou confusão na frente do prédio, fez escândalo, coloquei ela para fora, mandei para o inferno, mandei me deixar em paz e cortei qualquer forma de contato com ela. Com pouco tempo, ela deve ter ido procurar a polícia federal para falar besteira e contar o pouco que devia saber sobre mim, se é que sabia alguma coisa mesmo. O que ferrou tudo é que eles já deveriam ter meu nome lá, foi só uma questão de tempo para as investigações fecharem o cerco em cima de mim e dos vagabundos. Não tenho mais o que falar dela.
Mas ainda tem essa lacuna de meses que eu disse não ter nada importante para contar. Não tem mesmo, porque eu não tive mais notícias da maluca depois dela cansar de insistir e de me ferrar para a polícia e fiquei sem notícias da gótica também, que fugiu de mim, com vergonha, ou com nojo, sei lá, eu sou tão desprezível que ela deve ter ficado com nojo do meu desespero em saber algo grotesco sobre ela. Eu me senti irrecuperavelmente traído e abandonado, tinha perdido qualquer esperança de salvação nessa humanidade podre e falsa.
Nesse meio tempo eu também descobrir que meus pais, os dois, tinham morrido, primeiro o meu pai morreu de infarto e depois minha mãe, de tristeza, e que meu irmão doente tinha ficado perdido no mundo, em algum manicômio sujo. Alguém havia conseguido meu telefone milagrosamente e me procurou para dizer que eu precisava ir até minha cidade resolver as questões legais e tentar achar meu irmão que devia estar sofrendo muito.
Eu não soube o que fazer e também não tive coragem de consertar mais essa merda. Complicou mais ainda para mim, que não sabia se chorava de raiva da gótica, ou de amor, ou por ela ter sumido. Ou se chorava pelos meus pais e pelo meu irmão.
Eu ainda fui duas vezes procurar a gótica no apartamento dela, mas a prima disse que ela tinha ido embora. Achei que fosse mentira, mas ela me deixou entrar, mostrou o quarto vazio e tudo, sem pôsteres e sem nada. Falou, sinto muito, eu queria que ela gostasse de você porque você é muito fofo. Que besteira.
A minha vida seguiu descendo sem parar até anteontem, quando a gótica me procurou depois de muito tempo. Apareceu com a nenê que está aqui comigo agora. Quando eu vi que era ela, fiquei constrangido e sem reação, não sabia o que fazer, queria abraça-la mas não tive coragem porque ia doer mais ainda. Ela falou, fica com a nenê enquanto eu vou falar com a minha prima e eu volto aqui porque quero conversar com você. Eu me resumi a pegar aquela coisinha pequena no colo e continuei parado, do jeito que estava, catatônico.
A gótica subiu até a cobertura e pulou lá de cima. Fiquei sabendo uns cinco minutos depois dela ter deixado a nenê comigo, foi uma gritaria infernal no prédio, o porteiro não tinha visto ela entrando, quanto mais pulando. Eu queria falar dela mais um pouco, mais umas linhas, para ver se minha agonia passa, mas não tem jeito, eu a amei muito, é impressionante, todo mundo vive falando que a gente não deve odiar, que tem que amar, mas o amor só tirou as coisas de mim. Só tirou, me tirou o pouco que eu tinha e me tirou a perspectiva de vir a ter um dia as coisas que eu sempre desejei. Eu sou um perdedor.
Fiquei com a nenê, o gentleman veio com a namorada e ela me ensinou a trocar e alimentar a pequenininha, mas estávamos todos ferrados. Coincidência ou não, ainda tinha sangue da gótica no chão do prédio quando a polícia apareceu para me prender, dois agentes com mandato na mão. Atiramos neles, foi a maior confusão, tiroteio e briga, como se não bastasse o suicídio, rolou mais essa aqui dentro. O gentleman fugiu com a namorada no meu carro, com os defuntos dos agentes no porta-malas, uma coisa bizarra. Na hora do alvoroço, enquanto não chegavam mais viaturas, eu sai correndo com a nenê no colo para esse apartamento vazio, foi o primeiro lugar que me veio na cabeça porque a janela daqui tem um cartaz escrito aluga-se que dá para ver da varanda do meu quarto. Ninguém me viu, acharam que fugi para longe. Não consigo pensar mais, serviu pelo menos para eu chegar até aqui, não esperava que fosse escrever tanto assim. Essas últimas horas eu pude escutar o barulho sem parar de carros de polícia, repórteres e o diabo aparecendo no prédio, expondo o rolo todo para o resto do mundo. Só nessa madrugada que a coisa pareceu sossegar.
A nenê deve acordar daqui a pouco, então eu já decidi o que fazer. Eu trouxe um botijão de gás do meu apartamento e vou deixar aberto comigo e com ela, trancados no banheiro. Não tenho coragem de atirar, assim pelo menos a gente morre junto, em silêncio, engolindo as lágrimas e o sofrimento. Eu queria me enforcar, que nem o Ian, ou então ter pulado com a gótica, de mãos dadas com ela. Mas agora é tarde demais porque nunca houve tempo para se recuperar o que já estava perdido, nem nunca vai haver tempo no mundo capaz de juntar os meus pedaços.
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obrigado pela leitura, se é que vc conseguiu chegar até aqui.
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