Foi em novembro que tudo aconteceu. Apesar de minha memória andar um pouco precária por conta dos meus noventa e cinco anos, eu, sem medo de errar, afirmo que tudo ocorreu no mês de novembro.
Nós éramos nove pessoas vivendo naquele casarão colonial. Estávamos já nos preparando para o Natal. Cada um teria a sua tarefa: Emília, minha irmã mais velha, leria um trecho da Bíblia e faria a decoração da grande árvore que papai e mamãe, tradicionalmente, armavam, bem no centro da sala de visitas, muito mais um salão do que qualquer outra coisa, tal era a sua extensão em metros quadrados. Eu, como o mais velho dos homens, traria a lenha para a fogueira que meus pais gostavam de fazer no pátio interno, que era também muito amplo, e, fora aquilo, ajudaria Emília na decoração, pois os menores trocavam os enfeites e faziam uma bagunça que, principalmente mamãe, detestava.
Mirian, na máquina de costura, emendaria a grasnde toalha vermelha e verde e, também, faria os consertos naqueles enfeites que estivessem precisando de cuidados.
Os dois mais novos: João e Marta, ficariam para as pequenas tarefas sem muito importância, como passar os enfeites para Emília e para mim, para evitar que nós ficássemos e desce e a subir nas escadas. Eram tarefas pequenas para nós, porém, para eles, representavam missões de suma importância e, pelo jeito que eles as encaravam, havia uma solene e essencial responsabilidade em suas fisionomias infantis.
As outras pessoas do casarão eram, obviamente, meu pai e minha mãe, além das duas empregadas, Benedita e Raimunda, duas irmãs ignorantes e trabalhdoras como elas mesmas.
Então, retomando a narrativa, chegara o mês de novembro e estávamos todos agitados para os preparativos da imensa árvore de Natal. Sim, porque mamãe sempre queria que ela estivesse pronta no último dia de novembro, pois deveríamos entrar o mês de dezembro já com tudo pronto, inclusive a lapinha, que era montada pela tia Benigna, irmã de minha avó materna, que caprichosamente, cada ano, preparava uma lapinha mais bonita que a do ano findo.
Dava gosto ver o movimento dos personagens, o espelho d água, a manjedoura, os burricos, as vaquinhas, os anjos, os reis magos e, lá no centro, o menino Deus acompanhado da Virgem Maria e de São José.
Voltando ao mês de novembro daquele ano, que eu não lembro exatamente qual(paciência, minha memória não é mais a mesma, afinal, são muitos anos de desgaste.
Como eu já disse e repeti, estávamos nos preparando para montar a árvore e deixar a casa preparada para o Natal. Naquela noite, mamãe e papai foram fazer uma visitas a um parente que estava doente e, ao sair, fizeram, a mim e à Emília, mil recomendações: cuidem das duas crianças, fechem bem as portas(nem porque razão, pois não havia ladrões perigosos naquele tempo, quando muito, um ladrãozinho de galinha ou um furtozinho de roupas que hhaviam permenecido esquecidas no varal, mais nada). O que é fato é que nos recomendaram.
Ficamos um pouco a vontade, lendo historinhas para entreter os dois menores. As domésticas, depois de terminarem suas tarefas, recolheram-se aos seus aposentos.
A luz do lampião de gás estava fraca, talvez o pavio não fosse de boas qualidade. Quem primeiro notou a sombra foi a Marta. Ela ficou estarrecida, olhando fixamente para o local. Aí, Emília também a descobriu e arregalou os olhos. Eu fui o terceiro e, logo, logo, todos nós olhávamos para aquela figura estranha e enigmática, que foi crescendo, crescendo e logo depois se iluminando, até que virou uma espécie de anjo, mas sem as asas, bonitinho, a carinha rechoncuda, os olhos muito vivos e os braços estendidos para nós. Marta e João correram na direção daquela visão. O anjinho como que os abraçou, mas não disse nada. Nós, os maiores, ficamos parados, perplexos, sem querer acreditar naquilo que os nossos olhos viam.
Mirian estava pálida, muito pálida e fria, porque peguei na sua mão direita e ela estava gelada.
No dia 30 de novembro, repentinamente, Mirian adoeceu e morreu sem que o médico da família soubesse diagnosticar o motivo da sua morte.
Papai e mamãe decidiram que não haveria festa de natal naquele ano, porque havia luto na família pela morte de Mirian.
Marta e João, depois, entraram para a vida religiosa.
Ficamos, no laicato, Emília e eu. Ela casou-se com o Ribeiro, teve três filhos homens e eu casei-me com a Raquel, que me deu três filhas.
Mas, aquele novembro ficou retido na minha memória, por toda minha longa vida ...eu nunca cinsegui decifrar a mensagem daquele anjo sem asas.