Este é mais um episódio da série "A Menina da chácara".
A FESTA DE SÃO JOÃO
O crepitar das chamas e o aroma de madeira queimada anunciava o início da festa de São João. A vitrola ligada e a música alegre invadia os espaços da casa até onde se podia ouvir, contagiando a todos com animação. As músicas do sanfoneiro Luiz Gonzaga, eram cantadas alegremente por jovens e idosos. O cheiro bom de gengibre, canela, cravo e erva doce, espalhava-se no ar. Siá Doninha preparava com muito gosto, os quitutes juninos, chamou pra junto dela a neta sapeca, queria ouvir de perto, as canções na voz da garota. Menina, não se fez de difícil, cantar era muito bom. Sem saber, a garota estava conquistando a simpatia da avó. Siá Doninha estava mais contente do que costumava ser, até permitiu que Menina a ajudasse na arrumação da mesa de doces e bolos. Os convidados e os vizinhos das outras chácaras começaram a chegar. Segundo a análise da pequena, os vizinhos se vestiam de caipiras sempre, nem precisavam amarrar panos de prato no pescoço, pra fingir que eram gravatas. Entre os primeiros a chegar estava “seu” João, o caçador. Veio sem a mulher, dona “Verruga”. Siá Doninha, ao vê-lo chegar só com os dois garotos, perguntou:
_Cadê a comadre, compadre João? Por que ela não veio? E onde estão minhas afilhadas? O que aconteceu?
O caçador tirou o surrado chapéu de feltro da cabeça e se inclinou respeitosamente pra Siá Doninha:
_”Basnoite, cumade! A muié ficô tratando das minina. Elas tão cum um febrão de dá gosto. Acho que a cachumba vai pegá elas, as duas tá cum os pé das oreia cumeçando a levantá...”
_Que pena, meu compadre. A comadre quase nunca sai de casa e no dia de festa como esta, a coitada nem pôde vir. O senhor não saia sem falar comigo. Vou mandar uns bolos e doces pra ela e pras afilhadas.
_”Muito agradicido, cumade! Eu num vô si isquecê.”
Atenta, Menina seguia a conversa da avó e ficou imaginando o que estava se passando na casa do caçador. Ela já fora algumas vezes lá, acompanhando a irmã Liviva. Dona “Verruga”, como Menina chamava secretamente, a mulher do caçador, era uma boa pessoa; um pouco gorda e oleosa, mas era uma boa pessoa. Falava aos filhos com muita meiguice. Menina gostava dos modos da mulher. Ela e as filhas tinham milhares de verrugas espalhadas pelo corpo. Todas as vezes que a garota via a família do caçador, ficava a imaginar o que poderia fazer para livrá-las das verrugas. Um dia ela consegueria raspar as bolinhas da pele das três. Mas logo a atenção da garota desviou-se para o tio que acendia os lampiões a querosene. Menina ficou encantada com a profusão de luzes, estava tudo bonito.
Rapazes e moças iniciaram as danças. Crianças corriam por entre os casais de dançarinos, tudo na maior alegria. Ninguém se importava com elas. Tudo era festa, e festa caipira. Latide e Liviva, de tempo em tempo, olhavam pra árvore no centro da fogueira, aguardavam ansiosas à hora da queda, por causa das prendas amarradas nas pontas dos galhos. Foram elas que colocaram as prendas nos saquinhos de pano. Pra Menina, só interessavam os pirulitos e caramelos que estavam nos saquinhos. Suas irmãs, ao contrário, queriam as pequeninas bonecas “mirim”, feitas de matéria plástica cor de rosa.
Num ponto mais afastado da fogueira, algumas moças faziam “simpatias” juninas. Menina, viu a tia Regina entre elas. Aproximou-se para ver o que faziam. Todas estavam em volta de uma enorme bacia de alumínio, quase cheia de água. Curiosa, chegou perguntando:
_Você vão tomar banho ai? Pra que esta bacia? O que vocês estão fazendo?
Sem desviar os olhos da bacia, Regina respondeu:
_ Nós estamos tentando ver os rostos dos nossos futuros maridos, é isso!
_ Mas dentro da água? - insistiu.
_ Sim, a gente faz uma oração e olha dentro desta água, aí o rosto da pessoa aparece.
Menina pensou na resposta da tia. Olhou nos rostos das outras moças e sentenciou:
_ Sabem? Dentro da água vocês só vão ver o rosto do “Negro D’água”. Vocês vão casar com ele?
As moças ficaram revoltadas com o atrevimento de Menina. Regina achou por bem mandar a sobrinha ir brincar em outra parte. A garota obedeceu e se afastou do local, mas ainda achando uma grande idiotice o que as moças faziam. Quando retornava para junto da fogueira, viu as irmãs em companhia de algumas colegas de escola, perto das bananeiras. Estavam entretidas e conversavam animadamente. Menina encaminhou-se para junto delas. Cada uma das garotas tinha uma faca de mesa na mão. Curiosa, indagou:
_ O que vocês estão fazendo com essas facas? São as facas novas da vovó? Vocês vão cortar o quê?
Apanhadas de surpresa, Latide e Liviva se voltaram pra irmã caçula. Liviva fez sinal de silêncio levando o dedo aos lábios. Latide não sabia onde meter as mãos de tão encabulada. As outras garotas ficaram mudas e olhavam assustadas pra Menina, que se aproveitou do momento para insistir:
_ Isso que vocês estão fazendo é coisa errada! Tô vendo na cara de vocês. Se não me contarem logo, eu vou dizer pra vovó que vocês pegaram as facas de mesa e...
_Não! Não precisa falar com a vovó! - apressou-se Liviva - nós só estamos brincando de ver nomes. Se você ficar calada eu conto. Mas você deve prometer que não vai contar pra ela, tá bom?
Menina pressentiu o medo das garotas e disse:
_ Então se é segredo é porque é coisa errada... Conta logo, vai!
Liviva olhou para as outras garotas, todas mais velhas do que ela e disse:
_A vovó não pode saber por que nós estamos vendo os nomes de nossos namorados, é por isso.
_ “Vendo”, como? - quis saber Menina, começando a pensar que ia divertir-se ali.
_ Primeiro, a gente enfia as facas na bananeira. Depois, amanhã bem cedo, a gente tira a faca do tronco e aí vai ter a letra. É a letra inicial dos nomes dos nossos futuros namorados. Vai ficar gravado nos lados das facas. A vovó não pode saber por que nós somos ainda pequenas pra namorar. Não conte pra ninguém, tá bom?
Menina olhou bem pras garotas e calma disse:
_ Vocês são bobas! Bobas tanto quanto àquelas moças que estão lá com a Regina. Elas também querem ver os noivos na bacia de água. Quem foi que disse essas bobagens pra vocês? Coitada da bananeira! Vai levar cinco facadas sem razão...
A garota mais velha, que devia ter cerca de quatorze anos, adiantou-se e falou com muita convicção:
_ Você é que é pequena demais e não entende as coisas. Essa simpatia é de verdade. Minha mãe disse que foi assim que ela descobriu que o meu pai ia ser o marido dela. Pela letra do nome. Foi sim. Vamos logo enfiar as facas no tronco.
Menina viu as facas desaparecerem até o cabo, nos troncos das indefesas bananeiras. Liviva foi a última a fazê-lo. A seguir, ignorando totalmente a presença de Menina, as garotas correram pra mesa de doces. Encheram os aventais de suas vestes caipiras com pés de moleque e outras guloseimas. Foram sentar-se próximas à fogueira, pra comer.
Sem perder tempo, Menina aproximou-se das bananeiras e retirou cada uma das facas, deixando-as no chão. Satisfeita, saiu tranqüila dali e foi procurar o irmão Zico. O garoto estava entretido vendo os casais que dançavam. Menina aproximou-se e perguntou-lhe:
_ Zico, você quer dançar?
O garoto olhou-a surpreso e respondeu:
_ Dançar é só pra gente grande. Eu sou pequeno, né moço?
_ Não, Zico! Dançar qualquer um pode. Eu não sei, mas eu queria dançar. É dança caipira, a gente não é da roça? Então? É só a gente se sacudir todo no meio do salão. Vamos lá, vamos.
_ A vovó vai brigar com a gente... Ponderou o garoto.
_ Você é muito bobo, Zico! A vovó não pode brigar hoje, tem muita gente aqui. Vai! Ela está ocupada falando com as comadres. É só imitar como as pessoas fazem, tá?
Menina puxou o irmão para o meio da dança e desengonçada procurou seguir a música. Zico, encabulado, olhava para os próprios pés, como se tivesse medo de perdê-los. Animada, Menina começou a soltar-se na dança, o irmão a seguia, já com alguma empolgação. De repente, os dois perceberam que as pessoas não dançavam mais. Estavam todas em volta, a vê-los dançar. Suas irmãs estavam paradas a observá-los. Zico parou imediatamente e justificou-se para os pais:
_Eu não queria dançar! Foi o moço que me chamou. A gente vai apanhar?
O disco na vitrola havia acabado, e a resposta que eles ouviram, foi uma longa salva de palmas e gritos de “viva São João”. Antônio aproximou-se dos sobrinhos e sorrindo disse:
_ Esta é a primeira vez que eu vejo uma “Lagarta de fogo” dançando com um “Gafanhoto”. Parabéns! Quem ensinou vocês?
_ Nós só olhamos as pessoas grandes. Olhamos pra o senhor também, foi fácil... - respondeu Menina.
Menina percebeu logo que não havia nenhum castigo a espera deles e aproveitou-se para provocar as irmãs que, ainda em companhia das colegas, olhavam para os pequenos.
_ Será que os nomes dos noivos de vocês já apareceram nas facas? Aposto que não.
As garotas cochicharam entre si e correram na direção das bananeiras. De lá voltaram quase em seguida e com as facas nas mãos, foram queixar-se com Siá Doninha. Menina seguiu todos os movimentos delas e temeu pela reação da avó. Siá Doninha, entretanto, ouviu-as e apenas recomendou que elas levassem as facas de volta para a cozinha. Revoltada, Latide voltou-se para a irmã e disse:
_ Por sua causa a gente não vai saber nunca os nomes “deles”. Você é muito intrometida, é por isso que ninguém gosta de você.
A colega mais velha olhou com desdém para Menina e fez um gesto com os dedos querendo dizer que lhe daria uns beliscões. Menina viu as facas que estavam com Latide e a tal colega e percebeu algumas manchas escuras nas lâminas. Para atiçar ainda mais a raiva das garotas disse:
_ Eu sei os nomes dos namorados de vocês. Estão vendo esses rabiscos nas facas? Parecem minhocas, não é? Todos vão se chamar “Pedro Minhoca”, ”João Minhoca”, “Carlos Minhoca”, é só escolher um nome e põe minhoca de sobrenome, não é bonito?
Menina não esperou pra saber o que fariam as garotas, mas teve tempo de ver a raiva em seus rostos. Saiu correndo de perto delas e foi refugiar-se perto do tio Antônio. O rapaz observava os casais que dançavam. Ele não se deixava impressionar por nenhuma das moças, em especial. Ainda assim, os rapazes puxavam suas garotas pra perto deles, com receio de perdê-las. Menina ficou algum tempo acompanhando as piscadas de olhos, os sorrisos, a dança de rostos colados e até algumas cenas de ciúmes. O sono por fim chegou. O tronco da árvore das prendas ardia em brasas, mas continuava de pé. Antes de adormecer, recostada nos braços de Antônio, ela viu que Zico dormia deitado no banco com a cabeça no colo da avó.
No dia seguinte, na hora do café, dom Mozart deu um saquinho de prendas para os dois pequenos. O café daquela manhã foi fartíssimo. Os bolos e os biscoitos feitos pela avó foram comidos com maior prazer. Os comentários sobre a festa foram inevitáveis, cada um tinha um caso engraçado pra contar. O único fato destoante da festa aconteceu justamente com a quieta Latide e um seu companheiro de escola. Os dois estavam vendo alguns homens que pisavam descalços, sobre as brasas, para provarem que tinham fé. Em dado momento, o garoto afirmou que ele também podia caminhar sobre as brasas e encaminhou-se pra perto do que restara da fogueira. Depois de algum tempo, vendo que ele não ia cumprir o prometido, Latide o empurrou em direção do braseiro. O garoto tropeçou em alguma coisa e caiu, sua mão direita foi em cima da cinza quente que rodeava as brasas. Foi um Deus-nos-acuda. A pobre Latide, sempre tão comportada, apanhou do pai. Pra sorte do garoto, as queimaduras foram leves. Fora esse incidente, tudo foi comentado com muito humor.
Após o café, Menina e o irmão saíram pra ver o pai e os tios que limpavam o pátio das sobras da festa. Pouco mais de duas horas depois, as estacas das bandeirolas e lampiões foram retiradas. A árvore das prendas teve os galhos cortados e o que restou do tronco foi arrastado para junto do chiqueiro dos porcos. Depois de tudo varrido só restou a marca da fogueira no chão. Menina sentiu uma ponta de tristeza por ver que a festa acabara. Zico, ao seu lado, também olhava melancólico para a mancha no chão e comentou com a irmã:
_ É chato acabar assim, não é moço? Quando é que vai ter outra festa?
_ Não sei, Zico! Só gente grande pode marcar os dias de festas. Meninos só podem vê-las, quando não dormem cedo, como nós.