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Contos-->HORA DO ALMOÇO -- 11/01/2001 - 15:46 (Mario Jacoud) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


Hora do almoço, o homem descansava sentado no banco da praça, já esquecera o jornal deixado ao lado. Agora olhava as crianças que subiam nas árvores, ignorando os apelos das mães ou dos acompanhantes. Tinha 48 anos, nascera e morara toda sua vida naquele bairro da periferia, estudara ali tambem, primeiras letras e secundário. O som das crianças brincando lembrava o intervalo na escola municipal, construída em madeira, ainda, chamava Monteiro Lobato, a poucas quadras dali. Aprendera a escrever com caneta de madeira e pena, encharcada no tinteiro “Tinta Goyana”, mata-borrão sempre a mão, depois caneta parker que ganhara do pai, depois esferográfica. A escola fora derrubada, em seu lugar agora havia uma igreja de uma religião que ele nem lembrava o nome, não gostava dessas igrejas evangélicas que tomaram conta da cidade.

A cidade não cuidara da sua paisagem. Lembrava da lagoa onde pescava e nadava, ali onde existe um shopping. Talvez por isso detestava shopping. Cada um deles que inaugurava na cidade, ocupando grandes áreas, era como se tirassem parte da sua memória. Dali mesmo, de onde estava, podia ver um motel, exatamente no local em que existia o campo de futebol, seu local dos domingos, o bate bola com a moçada do bairro.

A primeira namorada foi do bairro. Ali namorara outras, moço bonito que fora. Casara na igreja católica, com a mais bonita que namorou, e que lhe dera 3 filhos, lindos os meninos, como ele sempre dizia. Casamento desfeito, a mais bonita que namorou o deixara há 7 anos. Perdera o lar e, repentinamente, descobrira que perdera o bairro, a cidade e, até, a infância.

Sempre achara que viveria por volta de 60 anos. Costumava dividir a vida em 3 etapas. A primeira, até os 20 anos, era de brinquedo, fantasia, sonhos. A segunda, até os 40, era de responsabilidade, casamento, filhos. Conseguira cumprir duas fases de maneira satisfatória. A terceira, até quando Deus quisesse, deveria ter sido de paz, filhos crescidos, a tranqüilidade do lar, pijama, chinelo, televisão, jornal.

Jornal..... A moça chegou, empurrou o jornal, “dá licença”, sentou ao seu lado, “que horas são?”, a saia justa e curta mostrando parte de suas coxas, destacando o contorno do corpo jovem, a blusa com um botão estrategicamente aberto, cabelos curtos mostrando o pescoço esguio e o rosto de anjo. Ele viu tudo isso enquanto respondia: “meio-dia e meia”. “Que bom, ainda tenho meia hora”, ela disse. Perguntou se ele não se importava de conversar um pouco, “claro que não”, a perna dela roçando a dele. Ela contou que tinha 25 anos, que nasceu no bairro, estudava na faculdade do bairro, psicologia, trabalhava ali perto, secretária num escritório de seguros, que não sobrava tempo para namorar, que gostava de conversar com homens mais velhos, “desculpe, maduros”, que sábado gostava de ir ao cinema e beber cerveja em um barzinho tranqüilo. Morena, olhos vivos e negros atrás do óculos precoce. Ele nunca soube de onde saiu a frase: “posso convida-la para um cinema e cerveja?” Ela perguntou seu nome, disse o dela e “sábado, 8 da noite, aqui neste banco onde nos conhecemos”, um beijo na face e foi trabalhar.

Era quarta-feira, o homem foi até a livraria e comprou um livro do Drumond. Quarta-feira de poesia e sonho. Sonho? E se fosse...e se acordasse...e se a menina bonita não existisse? Existia sim, o livro era real, portanto...

Quinta-feira, meio dia, não foi à praça, e se o sonho aparecesse por lá e dissesse: “só passei para avisar que surgiu outro compromisso no sábado e...”

Sexta-feira, outro meio-dia, tambem não foi, e se a menina fosse um sonho e estalasse os dedos, e ele acordasse e o jornal ainda estivesse no mesmo lugar...

Sábado, 8 horas da noite, ele foi, sentou-se no mesmo banco, livro do Drumond no lugar do jornal. Minutos de eterna espera e o sonho vem chegando, linda como um sonho bom, vestida como num sonho colorido e andando com o andar que as moças de 25 anos tem. Beijos. “Vamos?” ela disse e emendou: “já escolhi o filme e o barzinho, posso, não?”. Pode, pode tudo o que ela quiser, pode devolver a vida, pode até matá-lo de tanta vida. Estendeu o livro: “comprei para você, tem uma dedicatória”. Ela pegou o livro, leu a dedicatória e disse que adorava Drumond. Braços dados, foram, o homem e o sonho. Nem viu o filme, rosto com rosto, e beijos e mãos e beijos e mãos. No barzinho, cadeiras juntas, cerveja, tocando bossa nova, ela soube escolher, batatinhas, rosto com rosto, e beijos e mãos e beijos e mãos. Ela disse:

- Segunda começo novo emprego.
- É? Me conta.
- No novo shoping, melhor salário, apareça lá para conhecer a loja, acho que no shopping tenho mais futuro. Você gosta de shopping?
- Gosto.
- Meu pai contou que tinha uma lagoa lá, ele pescava e nadava...
- Tinha sim, mas a água era muito suja, e teve muitos afogamentos.
- Então, ainda bem que aterraram...
- Tambem acho. E temos que conviver com o progresso, tecnologia, essas coisas.
- Queria confessar que menti para você...
- ?????????
- Não posso ir a cinema, nem freqüentar bares, nem beber...
- ?????????
- Sou evangélica, menti só para sair com você...
- Não faz mal uma mentirinha de vez em quando!
- Freqüento aquela igreja nova , Dos Novos Dias. Aquela que proíbe televisão, cinema, bebida e algumas coisas mais...Vou todos os domingos, você pode ir comigo?
- Vou sim, sou católico, mas não gosto de cinema e barzinhos, não falei nada para não contrariá-la! Acho que o catolicismo está em decadência, idéias antigas, essas coisas...
- Minha mãe estudou na escola municipal que tinha lá, de madeira, demoliram para construir a igreja. Ela ficou chateada com isso, disse que parece que tiraram uma parte da sua memória...
- Fala para ela não ficar chateada. Tambem estudei ...a escola não era muito boa...e a prefeitura construiu outras, bem melhores e modernas...
- Perdoa minhas mentirinhas?
- Boa causa, perdoada...Muita coisa mudou nesta cidade, onde eu batia bola aos domingos, hoje tem um motel. Dizem que muito bonito e aconchegante. Um terreno daquele tamanho, mais cedo ou mais tarde daria lugar a algum prédio.
- Melhor que seja um motel do que um edifício qualquer, pelo menos serve aos amantes.
- Que tal?
- Vamos.

E foram, o homem abraçado ao seu sonho. O Drumond ficou na mesa, junto com os restos de batatinhas e cerveja, aberto na página onde se lia:

“Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
Memória em dissipação.
Que, se dissipou, não era poesia.
Que, se partiu, cristal não era”

Mário Jacoud
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