Este conto faz parte da série “A Menina da Chácara”, composta por 23 episódios. Neles conto parte da minha infância passada na chácara do meu pai, às margens do Rio Araguaia, em Aragarças. As pessoas citadas nos episódios são todas reais. Evidentemente, alguns nomes foram mudados para preservar a privacidade das mesmas. Chamo a atenção para o modo como meu irmão caçula me tratava: “moço”. A razão é explicada no primeiro episódio, “A Charrete”. No início, escrevi para meu filho e meus sobrinhos, que gostavam de ouvir o relato das minhas aventuras com o gato “Paizinho”. Mais tarde, algumas pessoas leram e me incentivaram a publicá-los.
"A PORTEIRA DO PAVOR"
A rotina dos moradores da chácara prosseguia. O mundo de Menina e Zico era cheio de sonhos, encantamentos e travessuras. Para eles a chácara era o paraíso protegido por fadas e arco-íris. Tudo o que ocorria ali era motivo de brincadeiras e artes, algumas delas arriscadas, mas o sonho era a mola de tudo. Eles nunca esqueciam as histórias que ouviam dos mais velhos. Depois que ouviram o relato sobre o papagaio porta-voz, todas as manhãs os pequenos acompanhavam o tio Antônio até a porteira, na esperança de encontrar tão especial criatura. O tempo passava e nada acontecia. Por isso resolveram acompanhar qualquer pessoa que saísse da propriedade, em qualquer horário. Quem sabe, num daqueles momentos eles o viriam.
Numa manhã, após a lição de música com o tio La Fuente, eles o acompanharam até a porteira. Josefa e Siá Doninha juntaram-se a eles e os seguiram até próximo à porteira, elas iam colher ervas medicinais. Ao se afastar, Josefa recomendou aos pequenos que não ultrapassassem os limites da chácara:
_ Nós vamos estar aqui por perto. Peçam a bênção pra o tio de vocês e depois voltem pra casa.
Zico tagarelava sem parar e obtinha respostas humoradas de La Fuente. A uns vinte metros da porteira, Menina viu um passarinho descer num vôo rasante, pra dentro de um dos troncos da mesma. Os minutos passavam e nada da ave sair do local onde entrara. Isto era indício de que ali era o seu ninho. O Tio se despediu deles em espanhol, porque segundo dizia, era o idioma mais bonito para se despedir de alguém:
_ Hasta viernes, niños! Adiós!
_ Hasta la vista, tio! - responderam em coro.
A seguir, colocando o chapéu na cabeça, recomendou aos garotos que voltassem pra casa. Menina prometeu que voltaria assim que ele se afastasse. Ansiosa, ela não tirava os olhos do ponto onde o pássaro entrara. La Fuente se distanciou e a garota aproveitou pra subir na porteira. Zico a acompanhou. Lá do alto olhou pra dentro do oco no tronco, onde o pássaro se metera. A profundidade do buraco não permitia uma boa visão. Insatisfeita, desceu da porteira e falou com o irmão:
_Sabe Zico, eu vi um passarinho entrando nesse buraco que tem aí em cima do tronco. Já faz tempo que ele entrou e ainda não saiu...
O garoto olhou pra direção que ela apontou e disse:
_ Eu tô vendo ele!
_ O passarinho?
_ Não! O buraco - depois, olhando para um bando de anuns que havia pousado nas costas das vacas que pastavam ali perto, ele concluiu - Vai ver, o passarinho está chocando os ovos.
Menina pensou na resposta do irmão e achou que ele estava certo. Se ali era o ninho dele, então ela ia dar um susto nele.
_ Zico, você fica aí em cima, mas chega pra perto do buraco, pra me ajudar a pegar o passarinho. Eu vou bem devagar lá pra perto dele, pra ele não fugir. Cuidado pra ele não escapar, tá bom? Eu vou subir de novo.
Obediente Zico aproximou-se mais do tronco, e de lá de cima, ficou observando a irmã. Pé ante pé ela chegou bem junto ao tronco e silenciosa subiu de novo na porteira. Lá de cima, levou o dedo indicador aos lábios e fez sinal de silêncio para o irmão. Daí, rapidamente enfiou o braço direito no buraco e agarrou alguma coisa. No mesmo momento, uma cobra de cor escura, que estava lá dentro, subiu pelo braço e por cima do ombro de Menina e pulou para o chão, fugindo assustada com a inesperada invasão.
Menina soltou um grito tão pavoroso e forte que parecia não ter fim. Em seu braço ficou a sensação fria causada pelo peçonhento animal. Zico, que tudo assistira, desceu de seu posto e, gritando, correu em direção de onde a avó e a mãe estavam:
_ Mamãe!!! Vovó!!! Mamãe!!... A cobra pegou a Menina! - gritava, apavorado.
A garota, agarrada à porteira, não parava de chorar. Em estado de choque, não conseguia sair de onde estava. Os gritos de Zico foram ouvidos. Josefa e Siá Doninha vieram correndo socorrê-los. Aflitas, perguntavam onde havia sido a picada. Siá Doninha a retirou da porteira e começou examiná-la. Com os olhos cobertos de lágrimas, porém fixos, no lugar onde a cobra se metera, Menina parecia uma estátua. Não se movia. Para despertá-la do estado de torpor, a avó deu-lhe um tapa no rosto. Só então, entre soluços, ela balbuciou alguma coisa:
_ A cobra me pegou...
Josefa e a mãe procuravam desesperadas o lugar da picada, mas não encontravam. Foi então que Siá Doninha viu que a neta tinha a mão direita fechada e que por entre os dedinhos escorria um líquido viscoso. Tomando a mão da garota entre as suas, procurou abrir seus dedos. Horrorizada, mostrou para Josefa a palma da mão da endiabrada neta:
_ Foi ela que pegou a cobra, Josefa! Veja!
Eram os ovos da cobra que no susto ela agarrara. Haviam se quebrado e, nadando entre as cascas, estavam minúsculas cobrinhas vermelhas, semelhantes a fiapos de linha. Ao vê-las, Menina recomeçou a gritar:
_ Tirem essas cobras daí! Tirem elas da minha mão!
Com um punhado de folhas, Josefa procurou limpar a mão da filha. A seguir voltaram para o casarão onde Menina foi cuidadosamente examinada e lavada.
Mais tarde, Zico contou que a cobra tinha metade de um passarinho na boca. Devia ser aquele pobrezinho que Menina quisera assustar. Graças a ele, ela escapara de ser mortalmente picada.
Por muito tempo Menina evitou aproximar-se da porteira. Sua avó, para amedrontá-la, dizia que a cobra estava por ali esperando o momento oportuno para vingar-se pela intromissão da garota e, principalmente, por ela ter quebrado os seus ovos. Dizia, também, que o melhor lugar para a educação de Menina seria o colégio interno, posto que nem mesmo as cobras podiam ter sossego, quando a garota estava por perto. Na verdade, Menina era medrosa, e jamais teria metido o braço naquele buraco se pudesse prever que ali era a morada de uma cobra.
E por causa da cobra, o plano de encontrar o papagaio porta-voz foi deixado de lado, para tristeza de Zico, que queria muito ouvi-lo discursar. Contudo, sempre que eles viam os bandos de aves passando, se lembravam da conversa com o tio Antônio. Por onde andaria o fabuloso papagaio?