Dedico este conto ao meu irmão José Aparecido de Moura,
pela inspiração do tema que ele desenvolveu numa redação
nos velhos tempos de ginásio: "Pedro era o seu nome, mas bem poucos o sabiam…"
Êle era um ilustre desconhecido. Digo isto por que todos o conheciam na pequena aldeia de pescadores da orla sul da Ilha, mas ninguém sabia ao certo o seu nome, nem de onde êle viera. Aparecera por lá - até hoje não se sabe como - no verão de 1974, queimado de sol, barba vasta, longos cabelos despenteados. Viera andando e aparentava cansaço. Usava sandálias de borracha, jeans surrado e uma camiseta psicodélica suja, amassada e cheia de furos.
Não bebia, mas foi logo entrando no primeiro botequim que encontrou, onde os pescadores, que já haviam recolhido suas tralhas do mar, tomavam a cachaça matutina e contavam estórias de pescaria. Alguns ainda vendiam seu peixe à porta com grande estardalhaço, como numa feira livre. Um verdadeiro mercado de peixes. Mulheres e crianças passavam o tempo todo, dando ao local um aspecto de alegria ingênua, própria dos pequenos lugarejos.
No início ninguém notou a sua presença, mas ao aproximar-se do vendeiro, Jesus (este era o seu nome, que sobrenome ninguém nunca soube) foi perguntando se havia um local onde pudesse aliviar a pressão da bexiga. Foi então que alguns pescadores, já meio alegres pelo efeito inebriante do álcool, entreolharam-se como que espantados por aquela figura estranha e ao mesmo tempo familiar. Havia algo em Jesus que os fascinava, talvez a camiseta colorida, talvez a pele queimada, como a deles próprios, ou os cabelos revoltos.
Quem seria este forasteiro que por aqui aportara ha alguns anos e fora morar numa cabana solitária no alto do penhasco à beira do mar, de lá só descendo uma vez por ano, trazendo raízes e plantas medicinais que trocava na vila por roupas velhas, arroz, feijão e peixe sêco? Esta pergunta ecoava nas cabeças simples e humildes dos moradores da aldeia.
Woodstock! Da boca de Jesus êles ouviram a palavra udestoque pela primeira vêz. E também de Jesus êles conheceram outra palavra: overdose. Foi assim com sua mulher: encontraram-na morta sobre bolachões de Jimmy Hendrix e Joan Baez. Nada mais sabiam a seu respeito. Não bebia e, quando fumava, não era o fumo de corda que os homens da aldeia usavam e sim uns cigarrinhos de palha de milho, com um fumo que êle mesmo plantava e chamava carinhosamente de Marijuana. Quem seria ela: a mulher que morrera de overdose ou algum desencanto amoroso que o levou a viver numa solidão premeditada?
Entre aquele povo rude, Jesus foi paulatinamente conquistando o status de guru. Não que falasse muito ou que desse conselhos, mas por seu vocabulário diferente, por sua tranquilidade e principalmente por seu conhecimento de ervas medicinais. Trazia consigo um almanaque onde pesquisava remédios para diversos males. Assim que chegara, curou o menino da Francisca de uma febre que já durava semanas. Gente com tosse, sarampo, micoses, a todos atendia. Ensinou aos pescadores o preparo de um unguento para cicatrização dos cortes feitos pelas cordas das rêdes. Era benévolo, conversava indolentemente sobre os mais diversos assuntos. Mas todos gostavam mesmo é quando êle falava do mar: dêle havíamos nascido, dêle tirávamos o nosso sustento e para êle haveríamos de retornar um dia.
Simão (porque existe sempre um Pedro ou um Simão entre pescadores?) foi o primeiro a dar pela sua falta. Este ano êle ainda não viera trazer os tão esperados remédios caseiros. O pároco chegara do Continente e já anunciava a festa de aniversário do Senhor. O Natal estava próximo, mas Jesus sempre viera no mês de Cosme e Damião. "Algo pode ter acontecido com êle.", pensou.
A improvisada expedição de busca - um catado de meia dúzia de pescadores - encontrou o casebre abandonado, as portas escancaradas, o mato tomando conta de tudo. No fogão de lenha havia uma panela de barro com restos de comida ressecada pelos mêses de abandono. Na parede, presa por um espeto de bambu, a foto da mulher de cabelos negros e lisos, com um sorriso enigmático nos lábios, os braços cruzados sobre o colo. Um cachorro e um gato dormiam ao sol. Alguns passarinhos quebraram o silêncio sepulcral, descendo para beber na bica do fundo, de onde Jesus obtinha água. Num canto encontraram um manuscrito que mais tarde o pároco leria para êles: "Posseidon me chama!". Pegadas endurecidas na lama seca levavam à beira do abismo. Jesus retornara ao mar.
Naquela noite uma estrela cadente riscou o céu e desapareceu no horizonte, engolida pelo oceano imenso. Todos sabiam que com ela Jesus partira para ajudar outras pessoas numa terra distante. Depois veio uma garoa fina, fertilizando o solo. Ninguém saiu para pescar, pois era a noite de Deus. Nas panelas humildes, fervilhavam peixadas para a ceia de Natal. Nas cabeças fervilhavam os pensamentos: "Se êle veio para nos ajudar, porque partiu?"
Até hoje se fala de Jesus na Ilha. Os turistas que a invadiram visitam o casebre do guru, onde ainda vicejam alguns pés de cannabis sativa.
Roberto Cursino de Moura
São José dos Campos, 15 de fevereiro de 1.999