A porta se abriu. O filho adentrava ao escritório do pai com o intuito de cumprimentá-lo. Fernando era o nome dele. Contava então com dezoito anos. Aquela não era a sua casa, por mais que seu pai, sempre generoso, tentasse dissuadí-lo desta idéia.
Com o que lembrava da infância, Fernando nunca havia conseguido compor um quadro vivo da união matrimonial de seus pais. Muito provavelmente, porque quando nascera, o pai e a mãe de Fernando, Rute, não viviam mais juntos. Aliás, este retrato feliz repousando na estante da sala de estar nunca havia existido.
Sua casa era a casa de sua mãe. Mas vá saber onde ela estava no momento. Há duas semanas, ele acordara e encontrara um bilhete na mesa da cozinha "Fê, Fui ao cinema com o Charlie. Não me espere acordado, Rute". Charlie era o namorado da mãe, quase filho, praticamente seu irmão. Mas o que espantou Fernando foi a natureza do bilhete. Como assim cinema? Eram seis horas da manhã! Quem vai ao cinema às seis horas da manhã? Ninguém, oras!
Essa constatação despertou em Fernando a quase certeza de que talvez Rute não tivesse lhe deixado o bilhete àquela manhã. Recuperou na memória a última lembrança que possuía da mãe. Datava de duas semanas: ela lhe deu um beijo na face; sua boca fedia a meia suja. Aconchegou-se entre as fronhas e deixou cair a garrafa de vodka da mão que pendia para fora da cama. Estúpido!, exclamou. Mas também, estudando e trabalhando como um burro de carga como poderia ter percebido a ausência da mãe. Chegava tão cansado da rua que a única coisa que conseguia fazer era não fazer nada. Jogava-se na cama, com sapatos e tudo, e dormia o mais profundo dos sonos. No dia seguinte, acordava e reiniciava a mesma rotina mecânica e insalúbre.
Sentou-se no sofá. Era preciso pensar com cuidado! Por onde andaria Rute Reis? No cinema? Impossível! Só se ela tivesse se mudado para lá. Na casa de Charlie? Mas pelo que se lembrava de Charlie e ele não possuía uma casa. Talvez vivesse no cinema? Não, Charlie era um vagabundo, mas também era um mulherengo. Perâmbulava de casa em casa. Um noite dormia com mamãe, na outra sabe-se lá com quem.
Fernando estava atrasado para a aula, mas aquele dia implorava que não houvessem aulas, trabalhos, obrigações quaisqueres, só a tarefa de sair a procura da mãe. E assim, ele não o fez. Uma hora depois, Fernando permanecia no sofá. Estaca. Na emergência de ter de decidir o que fazer; onde procurar Rute e com quem falar, Fernando permaneceu parado. Não sabia por onde começar. Ele não conhecia sua mãe. A noite chegou rapidamente e Fernando adormeceu sentado no sofá. Em seu sonho, desejou que sua mãe voltasse como foi, sem que ele precisasse mover uma palha.
Há quatro semanas! Rute havia sumido há quatro semanas, e ninguém ouvira falar nada sobre ela desde então. Fernando não teve escolha a não ser viver com o pai. Mudou-se dois dias depois. Pai? É o Fernando! Mamãe sumiu! Somente o tempo de arrumar as coisas. Fernando até pensou em ligar para os amigos e mendigar moradia, mas mendigos não tem telefone, muito menos teto.
Antes do filho adentrar ao escritório, Ricardo, desperto de suas divagações pelos passos do garoto, colocou com rapidez, na gaveta da escrivaninha, um papel que segurava nas mãos e fechou com calma assim que os primeiros fios de cabelo apontaram entre a fresta da porta.
Minutos depois, o rapaz já descansava no quarto de cima. Ricardo, com a TV ligada tentava não pensar em nada como havia feito há pouco, no escritório, antes do filho lhe puxar de volta. Mas certas coisas não conseguem ser esquecidas e a noite, como vinha sendo ultimamente, mais uma vez seria interminável.
Dia seguinte. Banho morno. Loção no rosto para refrescar os poros recém agredidos pela lâmina. Uma visita ao espelho. Tentando descobrir como mergulhar em sua própria alma refletida, tentando reverter o pensamento que queria sair de si, para si, tentando pensar como um estranho o veria naquele momento e em muitos outros, tentando tornar-se seu própio pensamento, comprimido, pulsante, querendo escapar por sua testa.
Um quarto de hora mais tarde, Ricardo estaciona o carro perfeitamente, próximo ao meio fio, como nunca havia feito antes. Essa coisas parecem acontecer quando nada mais importa, pensou. Deslocando-se para entrada do prédio onde trabalhava, reteve-se um momento na ameaça de se estabacar com uma garota atraente. Não viu isso logo de cara, mas depois de evitar o pequeno acidente, observou o corpo da mulher, curvilíneo, que continou firme em seu caminho. Cabelos loiros, trajando um vestido preto, esvoaçante, generoso, assim como suas formas. Depois de andar alguns metros, ela se virou como se guiada pelo olhar ansioso de Ricardo e ele pode ver o colar branco que adornava seu pescoço esguio e o amplo decote que deixava a mostra seu colo sardento. Nada mais que alguns segundos, Ricardo atravessou a porta do hall, cumprimentou o porteiro e pôde começar o dia, com um sorriso no rosto.
Uma repartição pública. Era era esse o local de trabalho de Ricardo. Por que uma repartição pública? Uma homenagem. Eu, o autor desta crônica, nunca trabalhei em uma repartição pública, mas achei por bem, colocar o meu protagonista em tal ambiente, quem sabe, homenageando os grandes escritores, como Fiodor Dostoivesky, Franz Kafka, Nelson Rodrigues, eu não chego mais perto das alturas. Apenas isso.
Ricardo caminhou alguns pouco metros até chegar à sua mesa, que se localizava no final da sala ampla, rodeada por muitas outras mesas. Em seu curto trajeto, cumprimentou de longe seus colegas Um aceno tímido, mas simpático. Todos lhe retribuíram com um sorriso e com um murmúrio esforçado de alegria. Eram no total vinte funcionários; colegas de Ricardo. Seus nomes: pouco importam. Seus sentimentos: de aparente tranquilidade. É claro! Quem quisesse olhá-los com mais atenção, descobriria-os apáticos, mas isso não vem ao acaso. Ricardo era um deles.
Sua vida era assim. Uma rotina nauseante, igual a da maioria das pessoas que habitam a Terra, mas, Ricardo não reclamava, quer dizer, não reclamava muito. No início, jovem, achou que sua vida não permaneceria por muito tempo daquela forma. Aos poucos, foi pedindo aos céus que um milagre lhe fizesse mudar, mas ele tentar mudar as coisas com as próprias mãos lhe parecia impossível, inviável.
Na realidade, nunca soube muito bem o queria, embora isso também não fosse nenhuma novidade. Sabendo que a derrota contra sua apatia era certa e iminente, Ricardo resolveu facilitar as coisas e aceitar seu próprio destino. Como um cachorro vira-lata que sabe que mais dia menos dia será achatado contra o asfalto por um pneu de automóvel, Ricardo tornou-se um homem estupidamente feliz, aliás, como todos ali naquela repartição. Cada um no recinto se achava contente por ser o que era. Cada um de uma forma distinta. Cada um, cultivando uma espécie de cinismo, que se aderia perfeitamente a cada história de vida ali presente.
Neste interím, entre o sonho e a realidade, Ricardo conheceu uma mulher completamente única, como todas as mulheres o são e tornou-se responsável por um ser vivo, nove meses depois. Doze meses depois, já que o amor mais efêmero de sua vida simplesmente evaporou e apenas um tempo, um ano mais tarde, Ricardo teve notícias. Ele recebeu um telefonema às quatro da madrugada de uma mulher que dizia ser mãe de um filho seu. Sonado, Ricardo mumurou poucas palavras, ininteligíveis, e voltou a dormir. De manhã, relembrou a conversa telefônica que tivera na noite anterior, mas custou a admitir que aquilo não tivera sido um sonho. Mais um toque e Ricardo, dessa vez, não pôde escapar da seca realidade. Novela mexicana. Talvez. A verdade é que ele era sim, pai.
Durante os anos decorridos, o relacionamento com o filho seguiu o caminho da placidez, assim como o relacionamento com a desconhecida que ele engravidara. Ambos, na realidade, de formas diferentes, continuaram completos estranhos para Ricardo. O que talvez pudesse se tornar uma relação íntima e amigável a três, tornou-se uma relação distante e amigável a três. Amigos cujo contato era escasso, talvez esta seja a melhor definição.
Agora, Ricardo e o filho, sentados à mesa, ouvem somente o barulho do alimento sendo destroçado pelas mandíbulas famintas. Jantar de domingo, um dos poucos momentos em que podem se encontrar, mas nada se diz. Estudam-se. Ainda não se sentem tão confortáveis um com o outro, mas gostam da companhia um do outro e é como se só isso já bastasse. No silêncio, os pensamentos encontram o ambiente propício para se tornarem incorpados, o que não quer dizer que o trabalho se torne menos árduo. O filho pondera. Tenta discernir no meio de um amontoado de sensações aquilo que o faz ficar feliz. Acha que gosta do pai. Poderia amá-lo, mas o tempo é curto e o sentimento imaturo. Pensa: Quanto tempo ainda demorará?
Ricardo não veio hoje, comentam seus colegas da repartição, descompromissadamente, enquanto continuam o trabalho maquinal. O telefone toca na sala do diretor. A porta abre-se lentamente, ele sai e fica parado alguns instantes, pensando assim chamar a atençao de seus funcionários. Mas a tática não dá certo e o ele é obrigado a exigir o silêncio no recinto. Mas como silêncio se eles já estavam todos calados? Ele recomeça e acha melhor pedir a atençao de todos, mas a essa altura, a repartição já havia se tornado um audiório, no qual os empregados eram platéia e o diretor o artista principal. E ele proferiu seu texto dramático: Ricardo morreu esta manhã.
Mas o que ele não disse é que havia morrido nos braços do filho, pouco tempo depois de acordar e chamar o garoto que sempre dormia mais alguns minutos. Estavam ambos aprontando-se para sair, quando Ricardo olhou para Fernando, caminhou alguns centímetros em direção a ele e caiu solto, pesado, sendo amparado pelo filho. Fernando postou-o sentado no chão, com a cabeça escorada no assento do sofá. Já estava sem vida. Não poderia dizer que foi uma surpresa. Um ano de convivência foram suficientes para Fernando perceber que havia algo de estranho com o pai, mas se era grave ou não, ele não sabia. Emfim, era grave, e isso ficara comprovado agora.
Tudo transcorreu muitíssimo bem no velório e no enterro. Na medida do possível, obviamente, bem como um velório e um enterro podem transcorrer. Estiveram lá, os colegas da repartição e a família, que se resumia a Fernando. Choveu. Meses mais tarde, a repartição já se encontrava novamente em seu funcionamento normal, se é que um dia não esteve. Mas aí já estaríamos sendo cruéis demais. Ao voltar do enterro do pai, Fernando sentou-se no sofá, com um copo de água na mão, para pensar no que viria a seguir. Seu celular tocou. Era Rute Reis. Estava bem, morando em um cinema, com Charlie, mas havia se cansado. Logo, estaria de volta e eles poderiam novamente formar uma família feliz.