Quantos homens viveram a experiência de julgar um semelhante? Na verdade, todos julgam todos os dias. Fulano é safado, cicrano é canalha, a vizinha é vagabunda, e por aí vai. São julgamentos efêmeros, alguns até inocentes. Só o juiz sabe exatamente o significado de julgar. A responsabilidade do ato, com as conseqüências que acompanham o julgamento.
Vidas são modificadas pela vontade do julgador, que aplica a lei, vista, porém, pela luz dos seus olhos, pelo prima da sua alma e no espelho da sua consciência. Para o jovem Aurélio essa era a beleza da magistratura. Não foi por outra razão seu esmero estremo para passar no concurso público e tornar-se juiz, ainda jovem, aos 28 anos.
Lá se iam 20 anos desde que iniciara a carreira, cheio de entusiasmo, vontade e coragem de fazer justiça. A fim de comemorar o sucesso, sua mãe, a maior incentivadora, presenteou-o com uma estátua da Deusa Justiça. Uma mulher de pé, em trajes gregos, com uma venda sobre os olhos, a segurar uma espada na mão direita e um código de leis na esquerda.
A escultura fora mantida todos aqueles anos nos vários gabinetes que ocupou no fórum. Era um símbolo do amor materno e da crença que o moveu àquela posição. Mas as coisas mudam.
Dois divórcios e algumas dívidas de jogo fizeram a diferença.
Naquela tarde o Dr. Aurélio seria o responsável por um julgamento histórico: a maior siderúrgica do país estava falida. Um contrato com a fornecedora de combustíveis era discutido na justiça. O resultado do julgamento ditaria o destino da siderúrgica. Alguns bilhões de reais e milhares de empregos estavam em jogo.
Qualquer que fosse a decisão de Aurélio caberia recurso. Mas a decisão imediata provocaria efeitos graves na credibilidade da empresa, com evidentes conseqüências na cotação das ações na bolsa de valores. O mal já estaria feito.
Dinheiro demais em jogo.
Aurélio foi procurado por um colega de faculdade, advogado militante, amigo de longa data e muitos copos. Não era o advogado da causa, era apenas seu amigo. A proposta veio repentinamente, como se saltasse do inferno. Duzentos mil dólares para salvar a empresa. Ninguém sairia prejudicado. A empresa de combustíveis continuaria a existir. A siderúrgica estaria salva.
O dinheiro significava segurança financeira por um bom tempo. Pagaria as dívidas e teria condições de dar-se um presente. Uma viagem, quem sabe?
Ao chegar no gabinete depois do julgamento foi surpreendido pela estátua. Ela estava lá. Ereta, a fitá-lo, como sempre. Havia muito não a reparava. Seu olhar foi estranhamente atraído para ela. Estava diferente, faltava algo. Olhou-a e não atinou com o que lhe parecia diferente. Iniciou a despir a toga e deu mais uma olhada para o objeto. Aí viu. Faltava a venda.
A estátua o fitava, a espada em uma das mãos e o Código na outra. O rosto constrito, sério, como o da sua mãe quando o repreendia. O susto foi enorme. Talvez a noite mal dormida, quem sabe a bebida em excesso nos últimos dias. Certamente era uma ilusão de ótica. Esfregou os olhos e buscou novamente a estátua. Os olhos da Deusa Justiça realmente o fitavam. O olhar era de reprovação.
A estátua foi para o lixo. Durante anos sonhou com os olhos da Deusa a fitá-lo daquela maneira, entre triste e séria, como se lhe cobrasse uma promessa. Como sua mãe, desapontada.