Saímos para o terraço. Anoitecia...
O sussurrar das ondas a marcar,
ao ritmo da ressaca, o respirar
do mar que docemente adormecia...
Uma gaivota exul que se esquecia
do ninho no ilhéu, para ficar
naquele embalo doce a dormitar...
Milena a dar-me a mão se enternecia...
No lusco-fusco, um diluir-se a dois,
um roçarem-se rostos e depois,
lábios que buscam lábios numa urgente,
espontânea e total sofreguidão...
Milena sussurrava uma oração:
—Oh, que este abraço dure eternamente!
Mas não durou, que, vindos da cozinha,
fingindo nada ver, os outros três
voltaram ao terraço. Ninguém fez
comentário nenhum. Florinda vinha
a falar em voz alta: —Ó Elvirinha,
é de noite , mulher. Olha, vocês
melhor é irem indo... pra outra vez,
é virem mais cedinho... uma coisinha...
que é pra dar tempo a estes dois pombinhos
de se verem os dois melhor... sozinhos...
que nos amores dois é conta certa,
e três é gente a mais... Anda, mulher,
ponham-se a caminho. Se eu puder,
amanhã, há petisco... e a porta aberta!
Emocionada, abraçou Milena
e depois deu um beijo a cada uma.
Mas o Gonçalo não beijou nenhuma
intimidado, creio, com a cena:
—Vai com elas, rapaz, que vale a pena
com uma noite destas... nem costuma
estar tão estrelado... e ouve-se a espuma
a chilrear tão fresca e tão serena
no rolo... Vai, com elas rapaz...
mas juizo... vê lá se és capaz
de não fazer tolices, criatura!
Era o Gonçalo que se apercebia,
por fim, da emoção e poesia
daquele encontro cheio de ternura...
Ou talvez fosse a íntima atracção
que o bom Gonçalo, enfim, sempre sentira
pela viçosa e robusta Elvira...
—Vai , vai... não ande por aí papão...
Florinda não gostou: —Seu parvalhão!
—Deixa-o lá – diz Elvira – acha-me gira...
come-me com os olhos... nem admira...
pior é ser velhote... que senão...
ai, não te digo nada... era capaz
até mesmo de dar-lhe o que ele quer...
—Não sejas doida, Elvira, inda há aí
moços da tua idade. Sei dum rapaz...
e tu sabes também... não vale dizer
nomes, mas anda a morrer por ti!
Pois anda, mas... é tolo... e não presta
pra nada... E já é tarde! O meu padrinho
deve estar em cuidados... A caminho!
Deu ao Gonçalo um beijo na testa,
o velho respondeu com uma festa
que fez, às duas mãos, muito mansinho,
no rosto dela: —Andar... e juizinho!
Vá lá, José, toma-me conta desta...
...e, aqui para a Florinda, já lhe digo
que não se preocupe assim comigo,
que eu já estou velho pra fazer tolice...
mas sonho e desejo são assim...
vivem dentro de nós até ao fim,
como eu, há pouco tempo, bem lhe disse...
E lá fomos. A noite era só estrelas...
não havia luar... Só um livor
de luminosidade... um fulgor...
milhões de lantejoulas amarelas
a latejar no alto... milhões delas...
Um íntimo temor, talvez pudor,
apossou-se de nós... O resplendor,
derramado por ruas e vielas,
enchia de mistério e escuridão
recessos e recantos... e então...
oculto em cada sombra um sobressalto...
Nós demo-nos as mãos, num sentimento
de mútua protecção... um agoirento
temor que nos roçava lá do alto...
Quando chegamos finalmente à praça,
foi preciso pensar qual é que eu ia
levar primeiro. Elvira não sabia...
—De qualquer forma, pode dar desgraça
que isto, meus amigos, se alguém passa
por ti, Milena, só na companhia
dele, amanhã já não há freguesia
em toda a ilha, onde se não faça
estranhos comentários “ó menina,
a sobrinha daquela Josefina,
a da pensão, ontem à meia-noite...
na rua... c´um rapaz... oh, rapariga,
daqui a nada anda de barriga
à boca... isto não haja quem se afoite”...
Que esta gente é terrível. O melhor
é irmos ao Passal. A esta hora
o meu padrinho, aflito co´a demora,
inda não se deitou... e o pior
será ralhar-me... Há-de ser o que for...
Tu ficas lá, Milena, por agora.
José, coitado, pode-se ir embora
que leva quase uma hora pra se pôr
na quinta. Fomos ao Passal. De lá,
ia pôr-me a caminho: —Ai... anda cá!
Tu não te vais embora, estragas tudo
assim. O meu padrinho quer-te ver...
Anda cá, entra, ele não te vai comer.
Entrei. O padre, já de sobretudo,
Estava à porta, pronto para sair..
olhou-nos espantado: —Mas. vocês...
donde vêm vocês, vocês... os três?
Esperei, esperei e tu sem vir,
Elvira. Isto não se há-de repetir.
—Não há-de não, Padrinho, uma vez...
e chega bem... eu sei, são quase dez
a gente descuidou-se no subir...
—Subir de onde, Elvira, não me digas
que vêm da beira-mar... oh, raparigas...
com um rapaz, assim?... isto é um perigo...
—Não!... um perigo não... É o José...
vive na Quinta... o Ti Gonçalo até
já disse que ia vir falar consigo.
—Não era isso que eu ia dizer...
O perigo está na língua dessa gente.
Este rapaz ainda é teu parente
e o Ti Gonçalo já me veio ver
e já falámos. O que a gente quer
é tratar de evitar que se comente
por aí... é preciso ser prudente...
assim a estas horas... se alguém souber...
—Bem sei, Padrinho, nós pensámos mal
Julgámos que da Quinta ao Passal
Era mais perto, pronto foi engano!
—Pois é... pior é que por causa disso
Está o caldo entornado... O Zé Riço
veio buscar Milena... Vinha ufano...
—Todo inchado de orgulho c´um recado
escrito... Tia Josefina queria
que Milena voltasse em companhia
dele “que é homem bom e assisado”.
Vocês não estavam cá, e o coitado
voltou para Pensão de mão vazia...
Que eu cá, só fiz aquilo que podia:
mentir... menti. Menti como um danado:
“As meninas estão muito entretidas
e vão fazer serão... depois eu levo...
depois da ceia levo-a à Pensão.”
Vejam vocês se aquelas presumidas
descobrem a verdade... eu nem me atrevo
a imaginar o que é que elas dirão.
Mas vocês devem estar cheias de fome...
A Leonor deixou um empadão
de galinha, no forno do fogão...
Vê lá, Elvira, se Milena come
alguma coisa. Há leite. Ela que tome
contigo um bom copo de leite. Vão
as duas lá pra dentro, agora! ...Então?...
Vocês não se despegam, não? Uei, home!
Xô! Ambas pra cozinha, olha agora?!...
Isto é conversa d´homem.. lá pra fora!
Por fim, Elvira lá se resignou,
E, com Milena pela mão, saiu.
Padre Tobias, logo que nos viu
a sós, fechou a porta e suspirou.