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Contos-->A Besta de Cotia -- 23/06/2006 - 16:25 (Marta Novaes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Cipriana pôs o toco de cigarro de palha atrás da orelha. Sentada sobre a esteira no chão da cozinha, ergueu os olhos para a lua que aparecia através da enorme janela. Era noite de lua cheia, clara, embora algumas nuvens fizessem sombras escuras no céu. Noites em que as corujas piavam e os negros se reuniam em torno da fogueira, para ouvir e contar casos. Dos mais macabros, diga-se. Prazer indiscritível tinham eles em criar casos em torno da vida de seus senhores. Deviam já estar reunidos ao redor da fogueira, no interior da gruta, à sua espera. Levantou-se e saiu arrastando as chinelas.
Uma coruja piou numa árvore próxima, enquanto Cipriana cruzava o terreiro, sorrindo. Tudo estava perfeito para a sua estória. Daquela vez, faria justiça à fama de contador de casos de seus antepassados. Contornou a senzala em direção à mata, onde, escondida entre árvores, ficava a gruta dos escravos. Mesmo sabendo que ninguém a seguira, olhou por sobre o ombro.
Á entrada da gruta, foi guiada pelo brilho das chamas que se refletiam nas paredes frias. Aproximou-se do grupo e foi recebida com calor físico e moral. Sentiu que aquele era o seu momento. Sentou-se sobre um tronco próximo à fogueira e estendeu as mãos em direção às chamas, aquecendo-as. Levou uma mão à orelha e retirou o toco de cigarro, que acendeu na brasa de um graveto. Olhou para cada um dos presentes, mantendo o silêncio. Procurou registrar a expressão de cada rosto, principalmente dos mais jovens. Tirou uma baforada e começou:
- Esta estória, quem a contou afirma que foi real. Aconteceu aqui, nesta fazenda, em meados do século 18 quando, ainda, os mortos eram enterrados dentro das igrejas.
Não sei de onde vinha a capacidade que aquele povo tinha de criar enredo, o fato é que todos ficaram ansiosos à espera do tal assunto.
- A sinhá – continuou Cipriana – estava acamada havia algumas semanas. Certo dia, ao sentar-se em sua cadeira favorita, queixou-se de dor. Mexeu-se aqui e ali, e nada de a dor passar. Veio o doutor, examinou e seu diagnóstico deixou a alguns coléricos e a outros na pilhéria. Receitou que ficasse de cama, até a reforma de sua cadeira.
Era uma cadeira de espaldar alto, almofadada em camurça vermelha. Recebera a cadeira de seu pai, como presente de casamento e o diagnóstico do médico culminara em mar revolto, cheio de ódio e vingança.
Aumentou o castigo aos escravos, expulsou o marido de sua alcova e amaldiçoou os filhos.
Quando menina, vivia a fazer cacoetes para os mais velhos. A uns puxava-lhes os cabelos, a outros, aplicava-lhes uma sorte de pontapés. Quando muito, se pendurava nas árvores a imitar os macacos, ao que sua mãe vaticinou: - Um dia ainda cria rabo!
Bem, lá estava ele: um rabo de macaco a insinuar-se entre suas pernas.
Ao fim de duas semanas, três escravas haviam morrido de inanição e uma quarta correu do quarto, horrorizada com o comportamento da velha senhora. Durante o dia, os homens carregavam-na para o banho de sol, nos jardins da fazenda. Sempre escondida por detrás dos arbustos e livre dos olhares curiosos. Sinhá revirava os olhos ao ver os escravos zombando dela e aquilo dobrou-lhe o ódio aos serviçais.
A cadeira finalmente ficou pronta, alívio geral. Acabariam os uivos, os beliscões e as mordidas. Mas, para desespero dos familiares, a sinhá não mais dormia. Passava as noites em claro, a tricotar, assistida por duas escravas. Ora, as escravas passavam o dia a lavar, a cozinhar e toda a sorte de serviços e, à noite, mal se agüentando em pé, velavam a senhora. O corpo cansado buscava o descanso natural, as pálpebras cedendo ao sono restaurador. Desalmada, a sinhá cutucava-lhes os olhos, vertendo lágrimas e sangue. Durou por muito tempo o sofrimento daquela gente. Até que sinhá morreu. Por aquela época, era comum o enterro dos mortos na igreja. O vigário da cidade, a fim de arrecadar fundos, estabelecera taxas de sepultamento conforme a localização do túmulo dentro da própria igreja. Assim, sinhá foi enterrada no pavimento abaixo do altar-mor.
Dias depois, os comentários na cidade encheram de pavor a população. Por duas noites seguidas, à meia-noite, o sino repicara sem que ninguém estivesse na igreja. Formou-se uma comissão e um homem foi escolhido. À meia-noite daquele dia, o sino repicou e, no dia seguinte não havia qualquer vestígio do homem. Nova comissão e um segundo foi escolhido. Novo repicar de sinos e um novo desaparecimento.
A população local estrava apavorada e cogitava-se na idéia de abandonar a cidade, quando, um homem surgiu no meio da multidão e ofereceu-se para a vigília. Era franciscano, membro da Irmandade do Santíssimo Sacramento. Tinha em comum aos outros dois homens a cor de pele: eram negros. Pediu ao padre:
- Deixe-me o cordão de São Francisco, o rosário, o escapulário de N. Sra. do Carmo e o Santíssimo exposto.
À meia-noite, os sinos repicaram cobrindo de trevas toda a cidade.
Ao amanhecer daquele dia, o padre adentrou a igreja, temeroso. A voz faltou-lhe ao encontrar o homem exatamente como deixara: ajoelhado com o terço nas mãos, em adoração.
Passada a surpresa do primeiro momento, o homem contou-lhe:
- À meia-noite, enquanto eu adorava ao meu Senhor, vi o altar se mover e debaixo do assoalho sair uma besta, subir as escadas e pular nas cordas do sino, fazendo-o repicar. Em seguida, desceu, passou por mim com seus olhos de fogo, chifres na testa, patas de bode e rabo de macaco e precipitou-se para o mesmo lugar de onde saíra.
Incrédulo, o padre foi verificar. Impossível. O altar era entalhado em mármore puro. Doação da poderosa sinhá que dormia o sono dos justos abaixo dele.
Então, o demo entrara na casa do Senhor? Aquele negro era um herege ou alucinado.
Com a ajuda dos homens presentes, moveram o altar. Homens acostumados ao trabalho árduo, sob o sol escaldante, suaram em bicas para mover o pesado móvel.
Um vento tumular arrepiou as cabelos dos presentes, mulheres saíram correndo aos gritos e o padre, esquecido de tudo quanto havia pensado sobre o negro, pôs-se a recitar orações.
A besta era tal qual o homem havia descrito. A seu lado, haviam dois esqueletos humanos. O que restara dos homens que ela devorara. A besta tinha ódio aos negros e o que salvou o terceiro homem foi, justamente, a devoção à protetora dos negros: N. Sra. do Carmo.
Com um grito cavernoso, a besta pôs-se alerta, perseguindo os presentes e devorando os incautos. O negro laçou-a com o cordão de São Francisco e arrastou-a para a praça. Com voz tenebrosa, a besta pedia que lhe fizessem justiça. Não teria descanso enquanto pisasse em solo sagrado. A seu pedido, seus membros foram atados a quatro cavalos jovens e fortes que, soltos nos campos, nas quatro direções, estraçalharam-na.
O túmulo foi lacrado, o altar trocado e a Santa Sé baixou um decreto que proibia o enterro no interior das igrejas; salvo se filiado na hierarquia religiosa.
Cipriana terminou com um suspiro ao mesmo tempo em que uma coruja piava na gruta. Os outros correram, assustados, sem tempo de saber se era ou não a besta que voltava.
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