Se não quer chocar-se com uns quantos vocábulos agrestes, mude imediatamente de sítio e não leia este texto.
De vez enquando, e cada vez mais adiante com muito menos frequência e oportunidade, depara-se-me inesperadamente - e assim é que é mesmo bom - o ensejo de assistir ao vivo a pequenos eventos de cultura-populis que, embora laterais a meu pendor fadistão, satisfazem contudo uma parcela do meu insatisfeito ego existencial: nunca o algo que almejo - nem sei o que seja - me preenche em pleno as résteas de vazio onde inevitavelmente meu espírito levita.
Desta feita, o programa, de boca bis a bis, anunciava que uma prostituta ia declamar poesia, espécie de condimento super atractivo que prometia tirar do mesmo sítio e da mesmíssima coisa a poética sessão que tinha lugar no Café Lusitano.
- Ah... Então... És tu o Torre da Guia?... A malta do Fado está sempre a falar em ti. Tens quê... 50... 55 anos, não ?!...
- Vou fazer 66...
- Ih... Então... Tens dado muito pouco ao pedal. Tens tido decerto uma boa chucha?...
- Ei lá... Boas chuchas tens tido tu. Eu, em pequeno, devo ter mamado bastante, sim, mas nas tetas de minha mãe. Ainda me lembro...
- É... Pois, nunca fizeste uns broches a sério como eu. Às vezes, um só é tão bom, que compensa todos os maus que tenho de engolir...
O véu vai de rastos e os reis deste mundo sabem muitíssimo bem que apenas lhes resta o privilegiado lugar dos bobos, substituídos no trono pela cambada de corruptos que o povo acredita eleger com o voto.
O diálogo com a Kirla, de 41 anos, dona de um excelente par de mamas, tem a partir daqui de perpassar apenas pelo meu discurso. Ela desde logo apercebeu-se que ambos sabemos o mesmo e, como se sente bem a destravar-se, atida ao protagonismo que o estatuto de prostituta-poetisa lhe confere, estava na disposição de soltar por completo as rédeas ao baio obsceno.
Ainda mal tarimbada na condição que a leva a vender o corpo a troco de dinheiro para pagar a pensão, enquanto transita no passeio ao engate, distrai-se a passar o tempo vazio na Livraria Poetria, aonde entra vezes sem conta pra folhear os livros. Sempre que pode compra alguns. Adopta as frases dos poetas eleitos e reescreve a sua própria poesia.
- Não quer dizer que tudo aquilo seja meu, mas é também e sobretudo o que eu sinto...
Confessou, quarta-feira à noite, a uma sala abarrotando de gente, no Café Lusitano, durante o primeiro serão de poesia denominado "Vidas putas são vidas humanas", do qual foi principal vedeta.
- Aceito o que sou. Não me arrependo dos erros. No entanto, quando era pequena, era a melhor aluna a Português...
Acrescentou, numa tentativa de explicar a apetência pela literatura. Um tanto arriscado, o programa foi uma proposta das proprietárias da livraria exclusivamente consagrada à poesia e ao teatro. Dulce e Dina, incapazes de ficar indiferentes àquela, em princípio, estranha cliente, decidiram promover o singelo evento.
- Às vezes, não entra. Fica só colada à montra, com um bloco na mão, a tirar apontamentos...
Refere a bem-posta livreira Dulce, com ar de nédia vaca naquele trágico pasto. As luzes baixam e o silêncio estabelece-se num expectativo ápice...
- Quero entregar a minha poesia... Posso?!
Pergunta, nervosa, a declamadora, ao mesmo tempo que tossia para o microfone para certificar-se de que havia som.
- É um gesto bonito, não é?... E nem preciso de microfone. A minha voz chega para se ouvir no café inteiro. Vou dedicar a minha poesia ao meu marido e às pessoas que me possibilitaram a experiência de estar aqui.
O recital terá sido o primeiro de um ciclo destinado a auxiliar os sem-abrigo, os toxicodependentes e os emigrantes de Leste, que as donas da Poetria pretendem levar a efeito naquele mesmo recinto.
Antes da récita, Kirla submeteu-se a um questionário público, realizado por uma das proprietárias da livraria...
- Se sou feliz? Sou e não sou. Já percorri muito caminho. Disso, deixo um conselho: não se desviem.
A ideia da entrevista, estendida em simultâneo à segunda sócia da Poetria, teve em vista demonstrar o denominador comum entre duas pessoas casadas, mães de filhos e adeptas da poesia: ambas mulheres.
Kirla, em tempo casou-se e separou-se. Tem três filhos que não vê, "infelizmente", um de cada pai, e não se envergonha disso. Fez três cursos profissionais, mas nunca conseguiu abolir a condição de desempregada. Há quatro anos, a necessidade de sair de Santarém e pagar a cama onde dorme, fê-la arriscar e optou pela cidade do Porto.
- Quando a gente não tem emprego nem dinheiro, vai para a rua e vende o corpo...
Da vida, diz que espera um milagre:receber o amor que nunca teve. Assim, na sua primeira exibição como "diseur", trocou a saia curta, que veste todos os dias, por umas calças pretas, as quais conjuntou com uma camisa branca cheia de lantejoulas e missangas.
- Hoje não sou prostituta, mas isso não quer dizer que amanhã não volte ao mesmo papel. Neste momento estou controlada, mas sou alcoólica. Sei que vou deixar de ser, só que não sei ainda quando será...
Os homens, muitos, tentam tirá-la da rua, mas há sempre qualquer coisa que deita tudo por terra.
- O meu erro é apaixonar-me sempre pelos homens errados...
Por isso, entrega-se à poesia e vai sonhando. Quiçá um dia possa publicar os quatro livros que já escreveu. Sonha que há-de ter uma quinta no campo, que há-de ajudar outras pessoas e que vai sobretudo libertar-se da prostituição.
Vêm-me à memória dois versos de um célebre fado:
Podia ter sido mãe
Mas foi esquina de rua...
António Torre da Guia
O Lusineiro |