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2. Outono em Zergob
O amarelo invadia a alma e ele não entendia o encanto. Passeava pelas praças, fumava um cigarro ou outro, mas não conseguia se ver livre do cheiro de amarelo seco que seus pulmões absorviam. Era outono em Zergob –parecia querer imitar Paris, mas enfim: ele nunca estivera na França.
O estranho era Ter a sensação de voltar ao mesmo lugar. Não era um “dejà vue”; era voltar ao mesmo ponto, como se não conseguisse sair do mesmo lugar ou situação.
“Zergob” era o nome que ele mesmo escolhera para o país que o acolhera, que o salvara, mas que nem fazia idéia de onde ficava. “Zergob”. Era o que conseguira ler na folhinha – parecia ser um calendário, com os números das datas- Zergob seria o nome que daria a esse país por onde caminhava.
Não se lembrava de nada. Tivera um choque? Quem era? Qual a idade? Olhava seu rosto no espelho antes de sair à rua. Num quarto de hotel...do “Zergob”.
Ninguém entendia o que ele dizia - o pior : ele não entendia nada do que diziam. Não entendia nada nem ninguém. “Do you speak english”, e...nada. Ninguém – ninguém parecia nem ao menos assistir filmes em inglês- quem não entende “do you speak english”? Perguntava-se.
Mas, em “Zergob” – provado estava : pelo menos aí, nesse povoado em que aparecera, não havia gente que entendesse “do you speak spanish”, nem “do you speak english”, nem “do you speak french”... enfim, nada compreensível para ele, nem dele para os outros. Não que ele fosse poliglota a tal ponto, mas arranhava. Entenderia, sem dúvida. Era mais difícil achar alguém que falasse português, por isso, ele nem perguntava- muito menos naquela situação.
Perguntava-se : será que vou lembrar do lugar de onde vim? Armando, só isso. Mais nada? Mais nada. Nem documentos com seu nome. Aparecera no quarto do hotel, ele e uma mala ridícula sem quase nada alem de cuecas, roupas -poucas- e só isso. Nem um papel, nem uma dica.
Tinha apenas o seu primeiro nome, sabia que chamava-se Armando : de pura memória, sem nexo com nada mais.
Ninguém o olhava na rua : parecia não existir. Como teria ido parar nesse lugar amarelo? Amarelo, esse era o cheiro colorido que impregnava tudo.
Resolveu voltar para o hotel, pelo menos o tratavam como se fosse um velho conhecido. Quase parou para pensar sobre a importância da identidade.
A força de ser “alguém” : em que outro momento de sua vida havia passado por aquilo? Qual era seu passado? No que pensava antes de acordar em “Zergob”? Quais os sonhos? Quem era- que droga!- quem era ele? Sentou-se na beira da cama e apoiou os cotovelos nos joelhos, com uma imensa vontade de chorar. Mas não era pessoa de se render fácil. Até choraria, se fosse preciso, mas não ia deixar assim : alguma coisa no mundo daria uma pista...
As imagens de resgate não vinham. Um barulho confuso de cidade invadia o quarto. Resolveu dar um jeito: algo faria para se encontrar. Algo tinha que achar que o identificasse com ele mesmo, não era possível continuar naquela agonia. Memórias, pensamentos sobre alguém...nada. Levantou-se e tirou o casaco. Vasculhou tudo no quarto do hotel: até a escova de dentes era desconhecida, como se nunca a tivesse usado. O calendário com o nome “Zergob” o olhava da porta, como se quisesse falar-lhe. Quase desesperado, trancou a porta e saiu -sem casaco- descendo os degraus às pressas. Parou no balcão da portaria : um senhor, de uns sessenta e cinco a setenta anos o olhou do outro lado por cima dos óculos : “ah?”- “O senhor pode me dizer onde estamos e que dia é hoje?”- “Arg atso me fiuzi netze”- ou algo parecido com isso... “ Que língua? Que idioma? Dá para entender o que eu quero?”-
Gesticulava com o rosto e as mãos, que não paravam. “Az gomstemfitza”- dizia o homem- ou algo assim-...Armando encostou as mãos no balcão...procurava algo que se parecesse a um mapa, pediu um lápis, algo para escrever – sempre gesticulando. O Homem trouxe um papel e um lápis, e Armando desenhou um mapa, um rabisco das Américas, a Europa...
Na hora em que o homem parecia haver entendido e ia responder, um cano duro que parecia incomodar dentro do seu corpo pretendia sair a qualquer preço de sua traquéia. Seus olhos cegaram e apagou-se o sentido...”está me ouvindo, Armando? Oi, acorde, está me ouvindo?”...as palavras ressoavam na mente e os olhos abriram-se : percebeu a sua mulher, a Luíza, na beira do leito de um lugar que parecia um hospital.
Sim : era ela, Luíza, a segurar-lhe a mão, os médicos em volta :
estava numa unidade de terapia intensiva...Os sons de aparelhos e o “bip” do monitor cardíaco, o choro discreto de Luiza e... algumas pessoas vestidas com aventais que ele não conhecia, em volta...
Tivera um acidente de carro, agora as imagens voltavam!!-
“Zergob, ligue para o setor, vamos fazer a tomografia de crânio!!” gritou o médico a seu lado... “Zergob”, isto era “Zergob”: o sobrenome de alguém que trabalhava onde estava agora. E apesar de tantas sensações físicas de incômodo, de não conseguir falar (a borracha retirada machucara e a voz não saía) a pesar do desconforto e da dor : o melhor - sem dúvida, o mais valioso!- agora de novo resgatado...Não importava mais “onde ficava Zergob”, sua amnésia era apenas um pesadelo...
Com dores e sem saber o que viria pela frente (conseguiria andar,
mexer as pernas, correr? As mãos... as mãos ele mexia, isso estava percebendo, porque não parava de apertar com força a mão de sua mulher, que chorava em silêncio).
Nada! Nada importava. O melhor já acontecera: era ele sim, sabia que existia, tinha nome, tinha e era algo que conhecia. Mas o melhor : tinha a Vida!