A mulher dizia não vá por aquela curva sedenta de morte. E ele a ouvia. Tinha razão. Naquela tarde, contudo, arriscou. Chuva miúda como cascalho na BR subindo de São Lourenço para o Curado. A mata do Engenho São João trazia lembranças do eito em que seu pai viveu. Vicência, Timbaúba, Limoeiro, São Lourenço, desceu pra Recife no caminho da cana, feito Severino. A tarde era fria e cinzenta. Vazio na estrada. Silêncio pressagiante. Chuva miúda feito confete cor de prata. Pequenas moedas reluzentes que brilhavam no capô do gol 90 cheio de gás ainda. Quando na curva pensou em seguir em frente, num impulso resolveu entrar à esquerda. Naquele átimo pensou numa morena que vira em Camaragibe e resolveu conferir. Lembrou-se dela naquele instante impróprio. Virou a esquerda pela última vez e só avançou dois ou três metros para sentir o impacto alvoroçado do corsa preto que vinha a toda e o fez dar muitos giros. Quando abriu os olhos atordoados viu as moedas prateadas saltarem diluídas no meio daquele estampido seco que se abateu como uma patada de cavalo no seu corpo inteiro. No mundo à sua volta. Uma umidade quente cresceu na sua barriga como uma capa pegajosa que lhe tivessem vestido e a custo abriu os olhos e viu o cinto empapado de vermelho escuro e as pálpebras teimavam em fechar, mas ainda conseguiu olhar o retrovisor quebrado em pedaços disformes. O rádio estava rouco e pendurado em fios coloridos. Aqui e ali uma palavra podia ser entendida... fardo... militar... espera... criança... Mas não soube deduzir se era do rádio ou de fora que vinha aquela ladainha entrecortada. Tentou erguer uma mão mas era como se mil quilos a impedissem de mover-se. E não lembrou-se da outra, porque não a viu, nem mais sentia sua presença. Com esforço estranho e de origem incerta, virou a cabeça e viu um osso pontiagudo e extremamente branco avultar do seu ombro esquerdo, perfurando a camisa tricolor. Mas não era isso que buscava. Voltou a cabeça para o outro lado e conseguiu vislumbrar a presença muda e quieta do pequeno torcedor do Santa Cruz sentado ainda no seu pequeno trono no centro do banco traseiro: olhos entrefechados sob a sombrancelha em arco e a boca aberta num esgar, com seus dentes separados e já comprometidos por três anos de sucção. Pareceu até que lhe sorria, com amor sincero. Percebeu afinal um pequeno filete escuro que lhe escorria do canto da boquinha aflita, derramando-se sobre a camisa branca com duas listas horizontais. Foi a última imagem levada consigo.
1/ago/2006