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Contos-->Solidão -- 27/09/2006 - 23:08 (Edgard Santos) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


A solidão continua sendo um mistério indecifrável para a nossa compreensão. Não saberíamos explicar, ao certo, os efeitos deste sentimento para a alma humana, pois sua interpretação é e sempre será dúbia. Chega a ser uma questão de tendência que, a determinada altura, torna-se irreprimível e incontrolável. Sua satisfação pode trazer alegria ou tédio, dependendo de quem a experimenta.

Devo dizer que no meu caso não foi nem uma coisa nem outra, mas uma necessidade, a qual fui forçado e que me fez conviver melhor comigo e com minhas fraquezas. Vivi uma experiência inenarrável por simples meios literários. Mas como são os únicos de que disponho no momento, não me resta outra alternativa senão utilizar-me deles. Tentarei exprimir os fatos tais como me ocorreram, deixando para os meus leitores a liberdade da interpretação. Quanto a provas, não as tenho pela simples razão da impossibilidade e da inconveniência, pois ter intactos os meus sentidos e minha mão para mover esta pena já me traz todo um prazer e bem estar só comparáveis àqueles anos inesquecíveis. E, o mais importante, estou vivo para contar a aventura de que tomei parte. Vamos a ela.

Vivia eu confortavelmente em bela herdade à beira de imenso lago que mandara construir ao natural após o décimo ano da minha permanência ali. A mansão custara-me uma fortuna, mas, que para o padrão de vida que possuía na época, muito pouco afetara minhas abastadas finanças. A construção do lago viera de uma decisão repentina, levando-me outra dinheirama. Contudo, encheu-me de felicidade. Escrever fora sempre um de meus passatempos prediletos, o qual transformou-se em profissão rendosa e gratificante após a prematura aposentadoria que passei a ter direito aos quarenta e três anos.

Optei por ficar solteiro e, todas as manhãs, sem o burburinho de crianças ou as interrupções interpelantes de uma esposa, já estava eu em meu recôndito espaço, desfrutando o prazer de minha atividade literária na varanda em frente ao lago. A paisagem era-me graciosa e aconchegante. Tal estado de relaxamento facilitava sobremaneira a chegada de idéias de que precisava para as minhas histórias e crônicas. A fim de não me afastar desta onda benfazeja, cercava-me de todos os indispensáveis acessórios. Sobre a mesa grande e quadrada de tampo de vidro, trazia o telefone, cujo fio preto, já quase esticado, vinha da sala passando pela janela aberta ao meu lado. Alguns dicionários, o inseparável cachimbo dourado, a caixa de fósforos, o pacote de fumo, o cinzeiro, eram meus companheiros de todos os dias. Até mesmo um pequeno sino vermelho estava ali para os casos em que quisesse um suco de laranja com gelo ou, nos dias frios, um chá bem quente a expelir fumaça. Era só balançá-lo e Thomas, o criado, num rufo, aparecia em seu traje branco de cozinha e avental.

As samambaias enfolhadas que pendiam dos vasos ensombrecidos quase acima de minha cabeça protegiam-me do sol muito forte que às vezes incidia no local. Por baixo delas minha visão se estendia para longe e eu apreciava o lago. As águas calmas eram um convite à inspiração. Da varanda até ele eram não mais que vinte metros num plano levemente inclinado. Descia-se três degraus de mármore para o chão de grama que avançava até um jardim de espécies variadas e baixas para não encobrir a visão de fundo. Contornando-se este jardim tinha-se o lago em todo o seu esplendor. Não poupei recursos para aproximar minha obra o mais possível do natural, fauna e flora. Plantei caniços que ornamentavam a orla de um tom especial. As Sagitárias, com enormes flores brancas e róseas, apontavam para o céu exóticas folhas aéreas com a imponência de um guerreiro a exibir sua lança. Íris vivazes e vigorosas davam um complemento perfeito ao todo. Em uma zona mais profunda fiz conviver espécies enraizadas de folhas flutuantes que, quando floresciam, surgiam fora d’água, belas e copiosas. Quanto à fauna, apresentava uma diversidade que lhe era característica, predominando várias espécies de média profundidade e temperatura.

Sentia-me assim em meu próprio paraíso particular. Os diálogos reais que me faltavam fazia-os com os personagens das ficções que escrevia. Envolvia-me com eles de tal forma que me pegava inúmeras vezes falando comigo mesmo. Ao dormir, com um provável desfecho para determinada história não poucas foram às vezes em que, ao despertar pela manhã, tinha-a acabada, na ponta da língua e na memória, restando-me não mais do que sentar e transcrevê-la para o papel, impregnando-a do meu estilo próprio. Não é demais ressaltar o prazer que isso me causava, pois, ao retornar para a cama à noite e já livre daquele texto e dos personagens, não raro recebia-os em meus sonhos. Via-os sorrindo alacremente, heróis e vilões, unidos e confraternizando-se. Na ponta desse sonho eu aparecia e recebia os seus agradecimentos. Dias se passavam nos quais todos os meus sentidos, como que aprisionados a este estado de graça, a este gozo íntimo e extemporâneo, já me impedia a concentração para uma nova narrativa. Foi quando, em certa noite, um fato me surpreendeu.

Era inverno e a temperatura muito baixa que vinha fazendo nos últimos dias trouxera-me para dentro de casa, distanciando-me do hábito salutar de unir minha literatura à apreciação do paraíso particular que grandes inspirações me proporcionava. Munido dos meus instrumentos habituais, instalei-me na biblioteca contígua à sala de estar. Minha posição dava agora de costas para uma janela que costumava deixar entreaberta e que por hora vinha fechada por causa do frio. Estive propenso, mais de uma vez, a alterar a posição dos móveis, que não eram muitos, a fim de poder ficar de frente para ela, mas confesso que a preguiça e a indecisão foram mais fortes. Outrossim, não via nisso tanta necessidade. Utilizava aquele canto mais para a leitura e à noite; geralmente fazia-o sentado a uma pequena poltrona encostada à parede atrás de mim. A visão de um céu estrelado já me era suficiente e benéfica. Quando não lia, passava para o computador os textos manuscritos e procedia a revisão.

Pois bem, num desses dias em que a inspiração não me vinha, devido às razões já mencionadas, estive vagueando ao redor do lago, contemplando a natureza. Minhas espécies flutuantes estavam no auge da sua floração e transmitiam-me inefável bem estar. O conjunto dessas plantas formava estranha figura geométrica. Uma espécie de paralelogramo cruzado, o qual, influenciado por um incomum movimento das águas, partia-se em duas metades que por sua vez resultavam em dois triângulos eqüiláteros que, após alguns instantes, voltavam a unir-se, dando forma à figura primitiva. Olhei ao redor da vegetação e vi formarem-se bolhas como se alguém houvesse ali atirado uma pedra ou coisa parecida. O mais estranho – e aí não houve de minha parte qualquer ilusão de ótica, pois estava inteiramente concentrado – é que a direção das ondas que se seguiram não correspondia ao que é comum numa situação idêntica, ou seja, em vez de se expandirem concentricamente elas permaneciam paradas num mesmo ponto em torno das bolhas. Intrigado, atirei naquele ponto uma pedrinha e o fenômeno desapareceu por completo. Continuei meu passeio dando uma volta inteira em torno do lago; satisfeito, retornei para dentro de casa.

O ar da manhã fizera-me muito bem. Senti que pegando a caneta e concentrando-me, surgiria uma boa idéia para um conto; foi o que fiz. Já na biblioteca, desfiz-me do casaco azul marinho de veludo de algodão, pois sentia calor, e ajeitei-o sobre o encosto da cadeira. Sentei-me animado e comecei a trabalhar. Abri um caderno grosso de espirais de arame com capa marrom dura e passei a esboçar as primeiras linhas de uma história que me acabara de ocorrer. À minha frente, ao lado do computador, outro caderno igual aquele, porém mais fino, enchia-me de orgulho. Ali estava, inteiro, o romance que havia terminado dias antes. Escrevera-o em menos de três meses tal fora a ânsia que tinha de vê-lo concluído. Sequer o havia ainda registrado em meu micro, pois pouco tempo e energia me sobravam após horas intensas de emoção debruçado sobre aquela história arrebatadora. Sendo assim, findo o primeiro parágrafo da obra recém concebida, o telefone tocou a minha frente.

Confesso que detesto tal espécie de interrupção quando me encontro aplicado em fazer brotar as minhas idéias. Mas como pessoa agora de sucesso e admirada na sociedade, precisava exercitar a polidez e a atenção que merecia, não só a mídia, como também, e muito mais, o meu público em geral. Minhas conjecturas duraram o suficiente para fazer com que o aparelho me alertasse por quatro vezes da presença insistente de alguém do outro lado da linha. Da quinta vez, entretanto, estiquei meu braço e peguei, com desdém, o fone preto à minha frente. Não reconheci em absoluto a voz, o que me reforçou a convicção de que seria um admirador que havia, de alguma forma, conseguido o número e estivesse querendo alguns minutos de prosa para falar, talvez, de algum livro meu que lera ou algo assim. Ao responder ao primeiro cumprimento, preparava-me gentilmente para desligar quando uma frase sua prendeu-me a atenção. – Se fosse você não seria tão duro com Cesário – disse num tom sério e amargo.

– Deve estar equivocado – falei, com certa impaciência, porém, mantendo a calma, e despedi-me novamente, esperando a compreensão do meu interlocutor, já que dei a entender que estava ocupado, – não conheço ninguém com esse nome – completei. Realmente não conhecia. O único Cesário com quem andara envolvido nas últimas semanas fora o personagem fictício da aventura que já estava pronta. Permaneci à espera de sua aquiescência para que eu pudesse, definitivamente, abaixar o fone e dar por encerrado o diálogo. A voz, porém, no mesmo tom angustioso e seco, retrucou:

– Você está falando com ele, muito prazer. – confesso que não me sentia bem com aquele tratamento íntimo, especialmente vindo de um fã, o que não costumava ocorrer. Tive a certeza de que o era no momento em que finalmente se apresentou. Satisfeito respondi:

– Muito bem, Cesário. – Ainda com sua primeira frase na memória, continuei: – Fico contente por ser um de meus leitores. Espero que aprecie o meu trabalho. Será um prazer conversar com você, mas em outra hora. Agora estou… – nesse momento a voz interrompeu-me.

– Sou um de seus personagens. – Demorei-me um pouco para voltar a falar, tal foi a minha surpresa. Seria uma tremenda coincidência alguém cujo nome era o mesmo daquele que figurava em minha mais recente criação, neste caso o próprio protagonista, ter esse desejo sem saber que já fora atendido. Apressei-me em dar-lhe essa boa notícia.

– Parabéns! Acabei de escrever um romance em que há um Cesário; seu nome já consta em um dos meus livros.

– Eu sei disso, é por isso que estou telefonando.

– Impossível; os originais sequer saíram de minhas mãos. – Achei que já estava desperdiçando o meu tempo e estive a ponto de ser descortês, quando o sujeito veio-me com uma proposta tão irracional quanto inconseqüente.

– Para começar – disse agora num tom quase autoritário – O Cesário é o personagem principal desta sua história. Se não estiver satisfeito, o que posso garantir, estou pronto a narrar, se preciso for, toda a trama de ponta a ponta, com algumas modificações que, por certo irão ocorrer. – E, sem esperar minha aprovação, pôs-se a destrinçar cada cena diante de minha audição atenta e perplexa. Nem seria preciso dizer que aquilo me deixou embasbacado. Todas as preocupações e impressões rotineiras que vinham me atordoando nos últimos dias desvaneceram-se para darem lugar a uma atenção assombrosa e exclusiva. Enquanto ouvia-o pasmado, algumas imagens vieram-me à lembrança como, por exemplo, os sonhos das últimas noites, em que as imagens confusas denotavam a presença de alguém no fundo que acenava em desespero como se pedisse ajuda, e quando eu tentava acudi-lo, suas mãos se soltavam das minhas e ele caia como que numa queda infinita. No meio desta queda, eu acordava.

A história procurava mostrar o lado negro da alma humana, vencida pelas fraquezas e ilusões deste mundo. Cesário, homem arguto por natureza, vivera este drama em sua vida. Não tinha do que se queixar, possuía dinheiro, bens e pessoas que o amavam. Casou e não teve filhos. A desculpa de amar tanto a esposa a ponto de não querer dividir com outros o amor que sentia por ela, fê-lo amargar uma decepção que o marcaria indefinidamente. Achava que o vigor de suas trinta e duas primaveras, o tipo saudável e atlético e o dinheiro, seriam o suficiente para prender o coração de uma mulher tão jovem e fogosa como Fernanda. Morena índia, de olhos grandes e expressivos e treze anos mais nova. Viveram uma paixão até mais longa do que seria de se esperar. Todos os gozos que da carne se pode auferir mantiveram vivo o elo que, todavia, não sendo imune, rompeu-se.

Fernanda arranjou um amante após quinze anos de convivência com Cesário, e o que sonhava acabou conseguindo: engravidou. A separação foi inevitável. Ele sumiu por uns tempos e nem mesmo aos amigos mais íntimos deu notícia. Ao retornar, tentou nova vida mas já aí seus sentimentos eram outros e os valores estavam transformados. O baque da perda afetara-o sem piedade. As mulheres representavam não mais que um símbolo, o do prazer sexual. O dinheiro, o poder da compra e as amizades de agora eram depositários de suas frustrações e catalisadoras de sua derrota. Daí para o fundo do poço não faltou senão a força do empurrão de um dedo, e este veio na perda do pai, o último merecedor de suas mais sinceras confissões e transmissor de apoio e confiança. Fica notório o cunho trágico e negativo dado à história, embora tenha eu permeado o seu conteúdo de verdades e ensinamentos úteis a uma conduta de vida.

Terminado aquele relato, a voz emudeceu por instantes; queria o desconhecido, por certo, sentir minha reação. Como me demorava a pronunciar qualquer palavra, pois nenhuma encontrava, tal o meu estado indescritível, ele então prosseguiu:

– Creio que agora entende porque não deveria ser tão severo com o seu personagem – frisou bem estas últimas palavras; “O seu personagem”.

– Isto é alguma espécie de brincadeira? – indaguei com seriedade.

– Há muito que não estou para brincadeiras, se é que você está bem lembrado da história. Não se joga um ser em sombrio estado de solidão. Só mesmo quem passa por igual tormento pode avaliar a dor. Por isso para que compreenda o meu sofrimento vou fazê-lo sentir o que é estar só no mundo. Verá a vida como eu a vi, da forma que escolheu para mim. A ficção vai tornar-se realidade. Ah! Ah! Ah! Ah! – nesse ponto, desliguei o aparelho.

Enquanto durou aquele dia não mais firmei meu espírito. Fiquei sem iniciativa, deixando-me levar pelo resto das horas que trar-me-iam a noite e, com ela, o sono e o esquecimento. Este, poderia encontrá-lo na leitura de um livro, desde que não fosse um dos meus; foi inútil. Não suportei os Cesários que insurgiam dos parágrafos, cobrando-me decisão. Pousei o volume e levantei-me, recolhendo o casaco. Fiz dois passos até a porta e dei com o Thomas: – O patrão não ordenou o almoço? Já passam das duas.

– Já almoçou?

– Não, senhor.

– Então faça-me companhia.

Terminada a refeição, passei à varanda. chuviscava. Recostei-me à cadeira de balanço, acendi e me dispus a saborear o cachimbo. Os gestos quase cerimoniosos que às vezes impunha a mim mesmo em certas situações que me eram prazerosas, iam, aos poucos, serenando minhas emoções. Foi bom enquanto duraram o fumo e minha disposição. Tentei um cochilo, mas ele não veio. Os pingos, que já se faziam grossos, ao invés de trazerem o sono, levaram-me a paciência e eu entrei novamente. De tudo fiz para afastar de minha lembrança o intruso indesejável que por todos os lados perscrutava-me sem trégua. De tudo fiz para esquivar-me. Liguei a televisão, peguei o jornal, fui à janela e olhei o tempo. Retornei à varanda; pus os pés para o lado de fora e estive a ponto de entrar na chuva. Quis dar ao corpo, quem sabe à alma, um banho inédito. Voltei à biblioteca. Procurei nos livros um conforto. Tinha que fazer alguma coisa. Consegui. Por quase uma hora. Ao cair da noite o telefone tocou.

Sem tirar os olhos do texto, que já me cativava, estendi minha mão e trouxe o fone preto ao ouvido. Por pouco não quebro o arco da luminária acesa, tal a minha displicência. – Pronto para seguir minhas instruções? – disse a voz a qual reconheci imediatamente. Larguei o livro aberto em cima da mesa. O vento da janela fez correr todas as folhas, levando as páginas que eu lera, junto com as outras, para um lado e minha atenção para um outro. A voz continuou:

– Não adianta todo o esforço que fizer; não vai livrar-se de mim. Entre outras conseqüências de que mais tarde ficará sabendo, há uma da qual já tem sentido os efeitos. Falo de sua verve, de que tanto se orgulha e muito o tem auxiliado. É isso mesmo. E não conseguirá escrever mais um capítulo sequer de suas histórias tão afamadas. Portanto, se pretende continuar escritor, é só fazer o que eu vou indicar, caso contrário, o seu fim será o meu fim.

Como já disse, o caráter trágico que dei à história perdurou até o último capítulo e para acentuar o castigo do personagem, culminei-o com a morte. Inútil descrever o meu estado naquele momento. Senti-me como o criador às voltas com o ódio e o sofrimento de sua criatura. Pensei em dar um ponto final àquela situação que, de ridícula, havia passado para o terreno do absurdo, sendo agora real e temível. Uni todos os esforços mentais no sentido de encontrar explicação e não encontrei uma que fizesse jus à racionalidade de minha análise. Sendo assim, num ímpeto de coragem e, por que não dizer, de curiosidade, indaguei:

– O que quer de mim, o que preciso fazer? – não nego que um sentimento qualquer de hostilidade tenha-me impelido a fazer esta pergunta. Outrossim, a tensão e o desejo de voltar a escrever já eram tais que sufocavam qualquer possibilidade ou tentativa de minha parte. A insistência do vento frio penetrando pela janela fazia voar o cortinado branco e úmido, roçando-o em minhas costas. Quis erguer-me para cerrá-la mas desisti; apenas fechei o livro, guardando as páginas que ainda vacilavam para ambos os lados. A voz respondeu:

– É melhor desse jeito. Sabia que lidava com uma pessoa inteligente. Terá o privilégio, acho que posso chamar assim, que nunca foi de outro autor, de conhecer pessoalmente o protagonista de seu romance. Tudo o que tem a fazer, acredite ou não, é mergulhar naquele lago e ir até o fundo dele; é lá que eu vivo. Explicando melhor, ao alcançar o fundo do seu adorado lago, vai encontrar a passagem que dá acesso ao meu mundo. Lá ficará sabedor dos passos que terá que seguir a fim de adaptar-se àquele meio. Acredito que não terá dificuldades, por tratar-se das condições e situações que você próprio escolheu para Cesário. Porém afirmo: nem tudo será previsível. Entretanto, perceberá, como bom observador que presumo que seja, as nuanças salvadoras do cenário imaginoso o qual soube muito bem criar. Devo acrescentar que admiro deveras o seu estilo, por isso dou-lhe esta chance de arrepender-se e repensar suas tramas. Não se esqueça: nada tenho a perder, pois sou apenas ficção. Ah! Ah! Ah! Ah!

Abri a boca para falar quando ouvi soar em meus ouvidos o eco da ligação desfeita. As forças físicas e mentais que ainda me restavam após tão inesperada e chocante experiência ergueram-me da cadeira e lançaram-me prostrado sobre a pequena poltrona. Thomas, ao penetrar no recinto, julgou, por meu estado lânguido e indiferente, que tivesse adormecido. A chuva que vinha mais forte, fazendo sacudir o vento as janelas, trouxera ali o meu criado. Ele fechou-as, desligou a luminária e saiu deixando-me só com minha aflição.

Amanheci na cama. Tomei banho e fui para o desjejum. Enquanto comia ia refletindo no acontecimento do dia anterior. Sequer tentaria, ao sair dali, o mínimo esforço para desempenhar minhas atividades rotineiras; já tinha a convicção de que seria totalmente inútil. Passei a ponderar as palavras e, digo incrédulo e vexado, as orientações que me foram transmitidas. Neste estado, saí para o meu costumeiro passeio matinal, o qual me levaria inevitavelmente à beira do lago. Desci os três degraus da varanda e caminhei sobre a grama. Pensava na incrível necessidade de atirar-me naquelas águas geladas e impróprias, quando me vi bem próximo delas. De onde estava já conseguia avistar aquele conjunto flutuante e impressionei-me, pois estava bem próximo à margem. Aproximei-me mais e, qual não foi a minha surpresa. As formas geométricas estavam ali e o vão que deixavam, agora, ao separarem-se os dois triângulos, era grande, bem junto a mim e de águas azuis e convidativas. Associei aquela aparição - e aquele movimento - ao mesmo das páginas do livro que insistentemente bailavam à minha frente durante o sinistro telefonema. Concluí que seria este o ponto exato do mergulho.

Olhei disfarçadamente para os lados e, como esperava, não encontrei viva alma. Gaivotas rapineiras descansavam sobre os caniços ao longo da costa e algumas poucas aves adejavam à distância. Vestia uma roupa apropriada à temperatura reinante ao amanhecer, algo em torno dos vinte e cinco graus centígrados: uma camisa de malha sem colarinho, de mangas curtas e uma calça bege de tecido cotelê; calçava chinelos de couro com solado de borracha.

Desfiz-me do calçado e respirei profundamente. Fixei mais uma vez o centro do lago, aguardando nova separação. Quando esta ocorreu, deixando-me a abertura, mergulhei para dentro dela. A princípio desci, de olhos fechados, sentindo o roçagar de plantas e raízes. Foi um longo mergulho. Jamais poderia imaginar-me capaz de descer a tal profundidade, tampouco me lembrava de tê-la concebido em meus projetos de construção. Enfim, retomei a visão. Outras espécies submersas, insinuavam-se em meu caminho e tive que me desviar de algumas para obter passagem. Cansado e sem fôlego, estive a ponto de retornar à superfície no momento em que pressenti um outro vão próximo do meu alcance. Além dele, as águas eram azuladas atingindo as gradações de cores comuns à água de uma piscina. Ato contínuo, aproximei-me e entrei pela passagem, mesmo consciente da falta de nexo de sua presença ali.

Já do outro lado, a primeira sensação foi a súbita mudança na temperatura da água; agora me gelava da cabeça aos pés. Dei um impulso e subi rapidamente. Emergi. Estava realmente dentro de uma piscina; de enormes proporções , digamos, quase o dobro das piscinas convencionais. Dei algumas braçadas e apoiei-me na borda para descansar; vislumbrei ao redor. Estava nos domínios de uma propriedade refinada, diria mesmo aristocrática. Comecei a relacionar o seu aspecto com as descrições que punha nas páginas que escrevera e as semelhanças faziam-me estremecer. Por outro lado, detalhes inusitados confundiam-me os pensamentos. Pouca coisa havia em derredor além de três cadeiras deitadas e uma pequena mesa redonda de vime com porta revistas. Havia, de fato, alguns exemplares. Alguns passos mais ao fundo, um chuveiro atarraxado no alto de um cano sobre um piso arredondado de madeira, tudo muito seco. Uma borracha vermelha, com um chuveirinho amarelo na extremidade, mantinha-se presa ao seu lugar de apoio. No mais, um piso de grama, enfeitado com imagens de gesso e algumas outras de bronze sobre pedestais de mármore. Observei que, entre as figuras de aves e animais estranhos, havia um busto em uma das laterais da entrada da mansão.

Saí da água tiritante de frio e fiz alguns movimentos para me aquecer e secar meu corpo encharcado. Fui até à mesinha e olhei os periódicos. Por estranho que pareça, aliás, já nada mais poderia achar estranho, não reconheci nenhum daqueles exemplares pelos títulos, tampouco ao folhear as páginas que expunham não mais que residências, ricas e belas por sinal, por dentro e por fora, além de entrevistas com arquitetos falando de suas obras e fotos de seus prédios, igrejas, pontes, jardins, etc. … Ao menos havia relação com Cesário que exercia esta profissão e aparecia em uma das reportagens. Ao ler o texto não encontrei nada que pudesse indicar o meu paradeiro ou orientar-me de alguma forma.

Andei então na direção da casa. Era com inúmeras janelas, jardim frontal e caramanchão coberto de flores da estação com certo excesso de trepadeiras. Tinha um só pavimento, mas parecia ampla e muito confortável. Parei à entrada do alpendre para examinar o busto. Intuí, somente pelo título de barão, que poderia ser um dos avós de Cesário que muito vagamente mencionei na história. Como não havia nome nem subtítulo, ignorei-o. adiantei-me para bater à porta. Balancei a argola de ferro e fiquei aguardando. Bati novamente, chamei pela terceira vez sem obter resposta. Dei uma volta pelo lado cujo muro, alto, não me permitiu ver o terreno vizinho. Contornei. Daquele lado as janelas estavam fechadas. Os fundos davam para uma via cheia de casas que me pareceram desertas. De fato, nem um movimento. Na rua, com sinal luminoso e faixas, sequer um automóvel vi passar.

Quando olhei para trás notei que não percebera uma porta em esquadria de metal com caixilhos envidraçados. Quando me aproximei e bati, ela se abriu, mas somente com a força de minhas batidas. Esperei um pouco e adentrei; estava em uma copa. O silêncio era absoluto, o que me deu quase a certeza de não haver ninguém em casa. Atravessei a cozinha muito espaçosa, passei por outra porta, fechada, que supus ser um banheiro e mais duas expondo-me quartos em perfeito estado de ordem e arrumação; cheguei à sala. – Há alguém aí? – falei por falar, já convencido de ser a única presença naquele lugar.

Pensamentos confusos, advindos de sensações variadas e incontroláveis, soçobravam em minha mente. No estado em que me achava, inútil era tentar qualquer ação. Joguei meu corpo sobre o sofá de couro branco, trouxe para perto de mim uma almofada que pus sobre o colo e nesta posição procurei refletir. O silêncio era tal que contribuía bastante para a reflexão. Busquei na memória as palavras de Cesário - vamos chamar então o louco do telefone pelo nome que diz possuir e, (por que não?) já que não resta outra saída, encará-lo como o meu personagem. Agindo assim, quem sabe, um caminho mais fácil ou menos doloroso não se abriria para mim? Deixou claro que a solidão a qual lhe imputei fora a causadora de sua ruína e de sua morte; morte por suicídio e que, portanto, o mesmo faria-me suceder por vingança ou o que seja.

Surge que, para meu alívio, alterações seriam feitas. Dentre elas, a sorte de Cesário. Tendo em mente esta esperança, criei um pouco de ânimo. Se era eu o personagem, aquele era o meu cenário, logo, só tinha que agir em conformidade com o enredo, avaliando cada episódio, suas tramas e seus desfechos. Então, saí à rua, comparando o que via às minhas descrições anteriores. Já aí um problema. Como me situava agora dentro do livro, não tinha somente a visão do autor que remete sua imaginação descritiva ao essencial da cena e não mais que isso. Como figurante da história podia ver, e via, o que quisesse. Uma casa era uma casa e uma rua, uma rua; com tudo o que possuem e mais o que a obra assinalou.

Como falei, as ruas estavam desertas. Andei por elas como Adão deve ter andado no paraíso: só e carente de uma companhia. Lojas e comércios expunham, ao seu único e desolado freguês, suas mercadorias. Bancos ofereciam-me seus cofres abarrotados de valores. Restaurantes e padarias, de pratos e guloseimas. Tudo o que precisava fazer era aproveitar a festa. Encher de dinheiro os bolsos e de alimento o estômago. Esta última oferta, confesso que não recusei; descobri a fome que já quase desistia, tantas foram as horas em que clamou por satisfação dentro de mim. Mas na primeira, não via vantagem, o que precisasse estava ali. Só tinha que desejar e obter. Continuei minha peregrinação, vagabundeando horas a fio. Não me lembro em quantas casas penetrei, quantos aparelhos tentei fazer funcionar; telefones, computadores, rádios, televisões, tudo em vão. Abri gavetas procurando pistas, chutei portas procurando almas. Inútil. Tristemente reconheci que estava só.

Perseguido por este fantasma insustentável e na mente uma idéia que era fuga e solução, corri por outras ruas, buscando um caminho de volta. Sem olhar para trás, com medo de ser agarrado pela companhia malquista, cheguei ao ponto de partida. Entrei na casa e, já tonto e esbaforido, ganhei a piscina. Joguei-me sobre uma das cadeiras. Resfolegava. Ao ver voltar as forças, fui até onde estava o chuveiro e o abri. Puxei com raiva a pequenina borracha que esguichou um líquido salobro mas, cuja frescura, saciou minha sede. Dali mesmo dei dois passos e mergulhei. Que me importavam as ameaças de um louco? Enfrentá-las seria nada comparado às sombrias perspectivas delineadas por aquelas primeiras horas gastas ali. Contudo, e estremeço só de sentir as lembranças do meu estado emocional de então, não encontrei a tal passagem do fundo, mas ladrilhos cujas figuras riam seus risos molhados e cheios de ironia. Enchi-as de golpes desferidos com punhos cerrados de ódio e revolta. Muita água engoli ao esboçar inutilmente gritos e impropérios. Vencido, voltei à superfície e pulei para fora. Com o pé, chutei a pequena mesa, o que fez voar as revistas. Uma delas caiu à minha frente e a foto dele, meu algoz, olhava-me e comprazia-se com o espetáculo. Erguendo as mãos, levei-as à frente da boca e gritei: – Cesário! Onde está você? Apareça!

De tão alto e rancoroso, meu grito ecoou pelos ares e atravessou as muralhas da mansão pelo outro lado e desapareceu no meio das árvores de um bosque próximo. Nesse momento e, que me perdoem os meus sentidos descontrolados, vi (ou achei que vi) ou revi, ao voltar o olhar para baixo, a sua imagem na fotografia, mantendo o sarcasmo, responder:

– Por que me chama? Já não pode falar comigo. Eu e você somos a mesma pessoa. O mesmo Cesário, a mesma ficção. Ah! Ah! Ah! Ah!

Sem forças para nada mais, caí sobre a grama e ali fiquei, prostrado. Não sei por quanto tempo. Quando o vento frio da noite lançou sobre o meu corpo impiedosa refrega, levantei-me e fui cair dentro da casa no primeiro leito que encontrei. Despertado pelos primeiros raios de sol da minha primeira manhã de total solidão, impus-me, como primeiro objetivo, maduro e racional, controlar meu estado de espírito sob qualquer circunstância. Saí mais uma vez às ruas. Quis nutrir o organismo do melhor que encontrasse. Precisava estar bem alimentado para enfrentar um dia totalmente insólito em minha vida.

Sentei-me à mesa de uma lanchonete, tendo à frente um café da manhã recheado dos meus sabores prediletos. Preparei, ao meu gosto e maneira, o suco de morangos, o café, os ovos e comi-os com os pães, os biscoitos e a geléia que tirei de cima de uma prateleira. O dia começava bem para quem possuía, como eu, todo o tempo e, que ironia, todo o dinheiro do mundo. Senti que algo estava me faltando, olhei em derredor sobre as mesas vazias a procura de um jornal. Como imaginei, não encontrei nenhum. Tomei mais um gole de café ainda quente e saí; precisava localizar uma livraria. - “Será que já estaria aberta tão cedo?” - Pensei, para ver se mantinha o bom humor. Tendo cruzado o segundo quarteirão, atravessei para a outra calçada e vi ao longe, após cruzar um sinal luminoso, uma galeria quase no começo da rua. Caminhei um pouco mais e entrei por ela. No meio de várias lojinhas enfileiradas, lá estava uma, repleta de prateleiras abarrotadas com livros. Senti-me em meu elemento ao pisar no recinto. Podia, se quisesse, gastar o dia debruçado sobre eles, os amigos e suas mensagens. Poderia escrever, exercitar minha rotina; acabei ficando por um bom rasgo de horas. Rabisquei linhas cujo teor e o objetivo não podiam ser outro senão passar à posteridade os registros da minha experiência. Todavia, ao ler o que redigira, senti a redundância nas palavras, peguei-me reescrevendo a mesma história, o mesmo texto, impregnado da solidão de Cesário, da minha solidão. Para não acicatar ainda mais a turbação do meu espírito, larguei papel e caneta. Com sonoro movimento, esta caiu por cima daquele e a mesa, ambos caíram sobre o chão de cerâmica avermelhado. Levantei-me, procurando na leitura outra forma de distração. Havia de tudo, de fato conheci um período de paz que há muito não desfrutava. A fome fez nova ronda. Empreendi um passeio calmo e vagaroso até encontrar um restaurante. Avistei o que me pareceu ser um dos especialistas nas massas que nos empanturram sem dó nem piedade. Enfiei-me. Ao sair, pesado e satisfeito, comecei a descobrir um dom que não sabia ser possuidor. A necessidade fez-me cozinheiro, dos tais que, pelo menos até ali, adora os próprios pratos. Por enquanto, neste pormenor, não sentia a falta de Thomas.

Não tive outra opção, naquele resto de tarde, senão caminhar. Caminhei muito. Voltar aos livros já não me apetecia; minha concentração não resistiria muito tempo. Tinha necessidade do ar puro, do céu e do sol. De tanto vaguear, já não sabia onde estava, aliás, nunca soube do próprio paradeiro. Sentei-me no banco de uma praça. Senti que por perto havia o mar. Enquanto, olhando em derredor, via os prédios, as ruas desertas, as lojas abertas, comparava a minha situação à daquela cidade. Estávamos sós, vivos e esquecidos. Duas garças-azuis pousaram no alto de um cedro de flores brancas e tronco avermelhado. Meu olhar viajou por cima das travessas de um playground construído no centro da pracinha e instalaram-se sobre as aves. Elas logo alçaram vôo, tomando uma direção que acompanhei atentamente. Saí andando e peguei o sentido de uma alameda sombreada e aconchegante. Bares, restaurantes, cinemas e casas noturnas ladeavam-na. Segui por uma das calçadas, como se algum perigo houvesse em andar no meio da rua e, olhando ao fundo, vi o que já contava ver: o mar, com toda a sua imponência ali surgia, ágil e dominante. Não fiz mais do que contemplá-lo até entrar a noite.

Senti que não era o mesmo do dia anterior quando despertei com o sol em meu rosto sobre a areia quente da praia. A depressão atacara-me novamente. Levantei, lavei meu rosto e pés na água salgada e fui procurar um café. Não tinha fome, por isso, nada comi. Comecei a sentir os sintomas avassaladores do tédio repugnante. Não carece narrar o que fiz naquele dia e nos outros que se seguiram. Tudo não passou de vazias repetições, da mesma habitual pasmaceira. Uma tarde, lá pelo quinto ou sexto dia da minha montanha de sensações diversas e já quase incontroláveis, peguei-me sentado na areia de frente para o mar, o qual estava calmo e receptivo; na mente as lembranças de um mundo real em que eu era feliz. Pensei na agonia de Cesário, protagonista do meu romance. Um incontido sentimento de medo invadiu-me ao repassar as cenas de sua morte. Suicidara-se no mar, afogando-se. Então seria este também o meu fim? Não me restava outra sorte, já que devo ter fracassado no que ele queria.

Ato contínuo, como aceitando resignado o desenlace, pus-me de pé e, do jeito que estava, calção branco e sem camisa, andei ao mar. Continuei conformado a caminhada para a morte, com a água pela cintura. Mas, estranho como todo o resto, a morte não acontecia. As águas já não me alcançavam e, por mais que me afastasse da praia, elas mantinham-se à mesma altura, negando-se a encobrir-me o corpo. Fui muito longe, sem resultado. O mar não me aceitava; não para a morte talvez. Então pensei, já de volta à areia, que em suas ondas poderia encontrar outras terras, ter uma chance. Quem sabe ver pessoas, viver enfim, uma vida de liberdade que não transige com a solidão.

Foi o que fiz. Levei semanas a preparar minha nau. Recorri às ferramentas, aos bosques e às matas, aos tecidos e às lonas, enfim, a tudo que precisei e não tive dificuldades de encontrar. Supri-me ao máximo permitido pela embarcação. Não esquecendo de algo agora importante, o dinheiro. Fui ao banco e aceitei sua oferta. Satisfeito, fiz-me à vela. Relutei com as vagas e os enjôos e ao fim de três dias alcancei, de madrugada, uma ilha. Não era bem o que queria mas sua beleza e exuberância acolheram-me e eu fui ficando. Ao fim da manhã andei por ela, mas, de vida humana, nem um sinal. Porém, nos aproximados oito quilômetros quadrados de sua área, poderia existir alguém, animais, que fossem. Pensando neles, retornei e preparei minha cabana e, antes de dormir, acendi uma fogueira. No dia seguinte concluí, ao vasculhar de ponta a ponta a ilha, que estava sozinho ali também. Ao retornar, constatei, desolado, que uma tempestade deixara destroçado o meu barco. Ao ver seus restos espalhados na areia e na água não resisti: chorei pela primeira vez.

Tudo o que contei até agora teve como objetivo colocar diante do leitor os fatos que me ocorreram, os quais funcionaram não mais do que como preparadores da minha alma para fazê-la conviver com a solidão. E aprendi, exercitei e saí-me melhor do que eu próprio esperava. Aquela ilha foi o meu lar por dois anos e cinco meses. A necessidade de adaptação foi de tal maneira satisfeita que só fazia, a cada dia, aumentar a minha felicidade. Quando consegui deixar o local, criei obras literárias cuja repercussão deixou-me milionário. Nos últimos dias na ilha, comecei a sentir que tudo poderia voltar à normalidade; que Cesário dera-se por satisfeito e resolveria recompensar-me. Eis como aconteceu.

Uma manhã acordei e ao sair da cabana para um banho de mar, um susto quase me fez cair para trás. À minha frente, a não mais de cem metros além da praia, pairava um cargueiro que pareceu-me encalhado. Desceram pelo tombadilho e entraram em uma canoa um senhor alto, barbudo, com uniforme de capitão e um marinheiro. Remaram até a praia e vieram ter comigo. Cumprimentaram-me e disseram precisar de água potável para a tripulação. Confesso que quase choro de alegria ao ver e falar com pessoas. Cheguei a beijá-los. Agradecido, levei-os até um arroio próximo. Enquanto enchiam suas caçambas, contei-lhes minha história. Não sei se acreditaram ou se tiveram-me como louco; nem isso me importou naquele momento. O fato é que não conheciam a tal cidade mas aceitaram, depois que levantassem âncora, levar-me até ela. No dia seguinte, ao raiar do sol, aportava eu na mesma praia que deixara há tanto tempo. Pouca coisa havia mudado, mas, o que mais me impressionou e me alegrou o espírito foi a enorme quantidade de gente; pessoas comuns como eu, a compartilhar com outras os seus momentos e veículos engarrafando o trânsito. Imediatamente corri e, não ligando aos olhares, cheguei a tal casa. Como imaginei, não havia ninguém. À beira da piscina, troquei de roupa, vestindo apressado as peças, as mesmas que vieram comigo do outro lado, e me lancei à água. Como esperava, a passagem ali estava. Enfiei-me por ela e subi. Ao emergir, saí do lago e calcei os chinelos. Em dado momento, levantei-me e, ao olhar para trás, Thomas vinha chegando.

– Que tal o passeio Sr. Gerônimo? Telefone para o senhor.

Já ia respondê-lo, mas logo fechei a boca. Para que entrar em detalhes? Apenas agradeci e acrescentei: – Estou pronto para minhas novas obras, Thomas. Diferente de todas até aqui. - Deixando para trás seu sorriso simpático, entrei e fui até o aparelho. Na linha, um de meus editores, com o pedido de um novo trabalho. Após o acordo, desliguei e, satisfeito, peguei na caneta que, agora, corria fluentemente.

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