Uma partida interrompida para a travessia, em alto estilo, daquela mulher, linda mulher, sob os olhares surpresos e magnéticos de mais de 80.000 expectadores. Um fato a mais dentre os inúmeros que ocorrem neste tipo de evento. Mas, não o foi. A figura em questão era loira. Nada de mais se não estivesse ela nua dos pés à cabeça, portando nada além de uma faixa vermelha e preta, cruzada sobre o tronco, de seios desguarnecidos e uma bola que subia e descia ao erguer frenético das mãos e dos braços. O juiz do espetáculo, prostrado e não menos perplexo, soltou dos lábios o apito dourado, preso ao cordão que lhe envolvia o pescoço. Sorriu amarelo, tal a carência de uma outra atitude igualmente ridícula e inaplicável perante o inverossímil da situação.
Do goleiro ao centro-avante, todos, estáticos, olhares centralizados, assumiam, entre mãos nos quadris, sorrisos mordazes e outros gestos, as mais distintas reações. Dois deles, próximos ao grande círculo do meio de campo, trocaram palavras: – Ela é bonita, mas, muito desatinada – disse um dos zagueiros do Vasco ao que estava do seu lado e pertencia ao outro time. Este, ao ver que a loira se afastava, carregando para a outra extremidade do gramado os seus trejeitos –, respondeu:
– Já estou acostumado com isto. Não é a primeira vez que me acontece.
– Você a conhece? – Antes que o atacante rubro-negro esboçasse a sua resposta, ouve-se o apito do juiz e a partida é reiniciada.
Calixto, o jogador do flamengo em questão, casado há anos com Bárbara, suportava as cenas de ciúme da esposa com brandura e muita paciência, movido pelo amor que sentia. Contudo, o excesso e o êxtase levaram-no a sentir por Fernanda sentimentos esquecidos e pisoteados pelo desgaste da sua difícil relação com a esposa. Por fora deste triângulo havia Romualdo. Jogador do Vasco da Gama e esposo de Fernanda, era, como o outro, um grande atleta. Companheiros inseparáveis e recém transferidos para o rio de Janeiro, vindos do Sul, usufruíam, com suas belas esposas, o melhor da cidade maravilhosa, porque passaram a gostar e podiam, agora, na melhor fase de seus clubes, gastar onde e no que quisessem. Eram vistos com freqüência nos principais cartões postais da cidade a esbanjar simpatia e muitos autógrafos.
Calixto e Fernanda precisavam, porém, manter o clima de normalidade, e o faziam com primorosa astúcia. A fim de se encontrarem, planejavam locais discretos e horários insuspeitos. Quanto à esposa, nunca a deixava de fora em suas partidas, vendo nisso, quem sabe, uma justa compensação. Contudo, as juras de amor entre os dois amantes, as promessas de fidelidade dentro da infidelidade eram lugares comuns, temperos aguçadores de uma relação proibida.
– Você me ama? – perguntou Fernanda pela centésima vez, porém, de uma forma tão inesperada e inédita que pareceu a Calixto uma frase nunca antes pronunciada. Acabavam de fazer amor em luxuoso hotel no Itanhangá. A ocasião era especial, pois Fernanda aniversariava. Não a deixara a promessa de uma noite inesquecível desde o dia em que os quatro, após a saída de uma final no Maracanã, prolongaram a tarde sobre faustoso jantar em restaurante de primeira, na mesma rua do hotel. Já no carro do marido, ao lado dela e ao volante, Fernanda ousou uma piscadela marota pelo retrovisor, que foi encontrar o sorriso do amante, no banco de trás, corado e muito sem jeito. Romualdo, tendo um lado do cérebro na conversa com o amigo e o outro ligado na direção, não deu pela trama, tampouco reparou quando Calixto, abraçado a Bárbara, que fingia inocência, volveu rapidamente o olhar para fora e, ao ver a entrada florida e a fachada de pedra do referido hotel, a passar por eles naquele momento, sorria tímida e disfarçadamente, captando a mensagem da outra.
Fernanda era uma mulher diferente. À visão de sua beleza e de seus olhos grandes e esverdeados, que brilhavam e mudavam de tonalidade ao declarar amor eterno, Calixto se entregava apaixonado. Realçadas pelo brilho das paredes do quarto, suas formas se impunham, suas palavras adquiriam o poder mágico da luminescência que os envolvia e os animava. Ela se levantou. Ele, virando-se de bruços, alcançou a mesinha ao lado da cama e trouxe à boca um cigarro. Virou na garganta o resto da cerveja, acolheu-se ao dossel e respondeu, ao som do chuveiro que espargia alegremente o corpo encantador de Fernanda: – Sempre vou te amar; posso provar, se quiser.
– Não há como, visto que já possui dono o seu coração. Em todo caso, aquele que der a maior prova é o maior apaixonado.
Passa da meia noite quando Calixto, chegando à casa, é surpreendido por um bilhete, assinado por Bárbara, comunicando-lhe a descoberta e a decisão de abandoná-lo para sempre. Frustrado e abatido, tenta o celular, mas sem sucesso. Dorme, empuxado pelo sono, arrasado, porém, com a consciência do dever profissional que o espera na tarde seguinte.
Semifinal de campeonato. Multidão incontida. Bandeiras desfraldadas; vermelhas e pretas de um lado e cruzmaltinas do outro. A atenção concentrada no movimento frenético dos vinte e dois envolvidos no cativante dilema da classificação é substituída pelos suspiros sussurrantes da turba enfeitiçada. Fernanda, ao surgir no gramado, rouba a cena e magnetiza a platéia presente e à distância, trazendo, para Calixto, a superação da perda na esperança de um novo amor e, para Romualdo, a confirmação de uma relação desfeita e um médico para trazê-lo de volta do desmaio, ocorrido logo após o apito do juiz, dando por encerrada a partida.