Acordou ainda ressabiado: estava atravessado, o peito turbilhonando de sentimentos desencontrados. A paz que reinara em sua vida durante aqueles anos todos, ruíra como se fosse uma construção sobre areia movediça, que não resistira aquela séria desavença que ocorrera entre os dois.
Nunca tinha visto Aurora tão grosseira e tão áspera, deixando de lado aquela voz aveludada e meiga que sempre fora uma das suas perdições, deixando-o de coração amolecido, arriado de quatro, totalmente apaixonado.
E ela procurara feri-lo, justamente, naquelas coisas íntimas, muito pessoais que ele revelara na base da confiança, fraquezas que todos os humanos possuímos, mas que o nosso amor próprio esconde da maioria das pessoas e a gente não quer nunca propaga-las.
No meio da noite, inesperadamente, ela ameaçou:
Ou você sai imediatamente desta casa, ou saio eu.
Ficou perplexo, pegou uma mala pequena, colocou duas ou três camisas escolhidas ao acaso, duas calças, um sapato, algumas meias, pijama, cuecas, fechou a mala como se fosse um sonâmbulo, a cabeça cheia de pensamentos atabalhoados e, no ar frio da madrugada, dirigiu-se a um hotel.
Custou muito a conciliar o sono. Sentia-se estranho ali sozinho, tentando compreender aquela súbita ira, o motivo que a fizera tão agressiva e tão desamorosa.
Agira, nos últimos dias, do mesmo modo: no dia do aniversário do namoro comprara uma dúzia de rosas vermelhas e escrevera uma só frase: Hoje e sempre o meu amor permenece o mesmo. Beijos. Adriano.
Ela lera, colocara as rosas num vaso, beijara o cartão e retribuira a lembrança com um beijo e um forte abraço, aquele abraço que ela costumava dar diariamente.
No entanto, ao voltar do trabalho, encontrara a casa vazia. Somente depois das oito ela entrara estabanadamente, os olhos vermelhos, inquieta.
Perguntou o que acontecera, mas ela ficou muda. Insistiu na pergunta. Ela respondera rispidamente:
O que você tem com isso? Deixe-me em paz.
Quis se aproximar, mas ela, empurrando-o, deixou-o atônito no meio da sala.
Resolveu respeitar aquele mau humor repentino.
Mas, aos poucos, ela foi se tornando muito agressiva, arremessando-lhe palavras de ódio, de azedume, de amargura, de tristeza, de mágoa, de rancor. Despejando tudo quanto refreara durante o tempo em que estiveram juntos, pequenos desentendimentos, coisas normais de quem convive e que ele julgara haverem sido sepultados pelos momentos agradáveis que passaram juntos.
ntão, como clímax de tudo, quando a noite já descambava para a madrugada, aquela frase feito uma punhalada:Ou você sai imediatamente desta casa, ou saio eu.
Pensou em escrever alguma coisa para ela, tinha ímpetos de deixar de ama-la, mas, imediatamente, se perguntava, como?
Tinha que haver um motivo para aquele comportamento anômalo, aquela agressividade inesperada de uma criatura sempre tão meiga, tão educada, tão delicada. Aqueles impropérios, aquele olhar de fera, aquele liguajar chulo, aquele nervosismo. E ela sequer permitiu que ele esboçasse um único gesto para ajuda-la. Nem lhe deu o direito de defesa, se é que ela causara tanta mágoa assim.
O telefone tocou: atendeu aflito. A vizinha lhe comunicava chorando que ela se matara com veneno e deixara um bilhete inocentando-o.
Correu para casa. Encontrou-a já no caixão, as mãos cruzadas, a fisionomia serena.
Beijou-a na fronte.
A vizinha entregou-lhe o bilhete.
Leu com os olhos marejados.
Ela confessava o que havia ocorrido: estava grávida do chefe com quem mantinha um romance em segredo e não tinha coragem nem de contar para ele, Adriano, nem de fazer um aborto, por tal razão, no desespero, resolvera se matar e,levar consigo a criança que, sem querer, fora causa de toda aquela desventura.