Destino Vila Madalena. O relógio redondo marca 10h30. Ela chega a tempo de ver o último vagão ser engolido pela escuridão do túnel. Dois minutos. Até parece. 10h35 e nada. A espera toma ares de infinitude, o exagero também. Ninguém à direita, duas pessoas à esquerda. A plataforma bem vazia para uma sexta-feira, por sinal. Não. Normal. A multidão se aglomera do outro lado. Daqueles que pegam o metrô para chegarem ao centro.
Finalmente os dois clarões apontam na curva. Ela não sabe muito bem onde se posicionar, a linha horizontal amarela fornece a pista. Faz menção de levantar a mão como um aceno para fazer parar os motoristas de ônibus. Desiste. Que mal haveria? Ninguém olha pra ela mesmo. O trem de aço passa rápido, e aos poucos desacelera, até parar em absoluto. O aceno foi uma coisa de criança. Que mal houve? Ela entra, olha para os dois lados, o vagão está vazio. Difícil escolher um acento assim. Senta-se sem critério definido, mesmo sabendo que a falta de critério já é por si própria uma definição. Ela ri, pensa na frase de Caetano "É proibido proibir!". Acho que pensa. Eu pensaria.
Depois de um tempo ela se levanta. Não gostou da posição do acento. Sentado. Prefere ficar em pé. Nesta posição, observa atônita, depois de mais uma parada, o vagão encher. Já não é mais uma questão de escolha. Ou fica-se em pé ou... fica-se em pé. Talvez nunca tenha sido uma questão de escolha, realmente. Tudo transcorre mutíssimo bem. Barulhos infernais. Burburinhos de adolescentes. Vozinhas esganiçadas. Discussão de bêbado. Vozeirão mole, entorpecido. Sem falar no som enlouquecedor dessa jeringonça que a locomove. Mas ninguém se importa. Na realidade, todos fingem não se importar, pois é impossível ignorar o ensurdecimento progressivo que esses ruídos causam.
O burburinho adolescente persiste, o falatório bêbado também, mas aos poucos o som chato do metrô cessa. Não é mais uma parada normal. A última estação foi deixada há pouco, o que também não chega a ser um problema. Talvez seja o trem em direção oposta. É de bom senso evitar um acidente. Meus familiares agradecem. Mas o acidente já aconteceu. A parada demora um pouco mais que o habitual. As luzes são apagadas, talvez para economizar energia. O som incontrolável das vozinhas juvenis miraculosamente estanca. Agora apenas um comentário aqui outro acolá: Que demora! O que será que houve? Ai que saco!
Contudo, como a vida de uma razinza nunca pode ser plena, o bêbado que até então era tolerável, torna-se o único a tomar a palavra, causando uma sensação insuportável nos passageiros impacientes. Ela pensa em gritar um cala a boca! Mas alguém faz isso antes e a confusão se estabelece. "Ninguém manda eu calar a boca!", diz o senhor trôpego. Mais pessoas se alteram e já é possível definir aquilo como um levante. A voz oriunda do alto falante metroviário singra o mar da populaça revoltosa e pede calma, explicando finalmente a situação. O silêncio é retomado para se ouvir o que os agentes reponsáveis tem a dizer: "Peço calma a todos os passageiros. Tivemos um pequeno problema de ordem filosófica. O usuário já está sendo removido da linha do metrô e em poucos minutos o veículo voltará ao seu movimento normal".
Findado o pronunciamento, ouve-se ao fundo o murmúrio chocado das adolescentes que parecem culpadas consigo mesmas por terem reclamado anteriormente. Muitos fazem sinal da cruz, enquanto o bêbado falastrão pede um minuto de silêncio pela alma que acabara de nos deixar. As pessoas acham a proposta sensata, apesar do nível alcoólico de quem a sugeriu. O silêncio se faz no vagão. Cinco segundos depois de iniciada a celebração ecumênica, o trambolho começa a andar e reinicia a zuada habitual. Aí é impossível permanecer na quietude. Todos ficam impacientes de novo, o bêbado reclama que os passageiros não estão respeitando a memória do morto e é convidado a calar a boca! A balbúrdia volta e alguns sujeitos mais truculentos querem convidá-lo também a se retirar, mas isso parece impossível, já que naquele instante o trem se encontra em movimento. As meninas mudas, telepáticas. O bêbado na contramão, tentando na apanhar. O veículo estaca mais uma vez. O apito soa e a última voz ecoa: "Estação final, todos façam o favor de descer e parar com essa putaria!"