Sigo andando pela rua escura e estreita de terra batida. De um único poste parte uma luz fraca e difusa. Enquanto cai a garoa, paro em frente ao portão imenso de ferro coberto por uma crosta oxidada, com várias de suas barras já quase desfeitas pela corrosão, encimado por um arco do mesmo ferro velho que traz uma inscrição curvilínea com os dizeres: Jardim dos Amores Mortos. Jogo meu corpo sobre o portão para abri-lo. Não cede. Uso a força das pernas e então ele vai rangindo lentamente. Enfio meu corpo espremido pela estreita fresta que se abriu, pois foi só o quanto o portão cedeu. Minha roupa agora tem a mesma cor ocre do portão.
Entrando, só a pouca luz da lua minguante ilumina a cena. Passo a caminhar por entre os túmulos e a ler as lápides. Ali estão enterrados os amores que não sobreviveram à dura vida entre os humanos. Amores velhos, sexagenários; amores jovens, adolescentes e até amores bebês. Eu leio: "Aqui jaz o amor de Paula e João, falecido tragicamente aos três meses de idade. Foi-se tão jovem, mas deixou saudades intensas". Noutra lápide vejo: "Morreu o amor maduro de Sônia e Eduardo que perdurou desde a mocidade. Pereceu junto com eles, mas os acompanhará à eternidade". Eu procuro nervosamente, mas sem encontrar. Procuro pelo túmulo de nosso amor, amor! Tem que estar aqui, tem que estar! Talvez aches graça da minha certeza, mas vou te confessar: fui eu mesmo que o matei! Apertei minhas mãos no seu pescoço enquanto ele balbuciava alguma coisa. Não podes acabar comigo, acho que dizia. Afundei os dedos na garganta até doerem. Ele parou. Levantei-me e passei a chutá-lo, irado, até que um riacho de sangue passou a verter da sua boca, como se fosse um rio vermelho a brotar de uma caverna. Estava feito. Temi e fugi. Mais tarde alguém iria encontrar o corpo e mandaria enterrá-lo, eu pensei.
Agora eu não acho o túmulo. Alguma coisa deve ter saído errada. Será que nosso amor ainda está na praia apodrecendo? Ou o mar, de ressaca, o levou? Ninguém liga para um amor vagabundo. Fico enregelado de pensar, será que ele não morreu? Não é possível, amor! Há tempos vinha tentando envenená-lo diariamente, não percebias? Arsênico, em doses homeopáticas. Com essa dieta diária ele ia ficando mais fraco, tremia um pouco e balançava, andava com dificuldade, mas não passava disso, não morria! Eu até acabava me esquecendo de ministrar o veneno e ele quase voltava ao normal. Então eu começava de novo, pacientemente, mas nada. Eu me lembrava daqueles filmes bobos de terror, do Jason, do Fred Kruger. Não morriam nunca. E tu indiferente, às vezes até cuidavas dele, mas não com muito empenho, não! Até que perdi a razão e acabei com o nosso amor de uma vez, meu amor. Minhas mãos estão suando, todo o meu corpo está. Estaria ele num hospital, numa UTI, vegetando? E se ele sarar e voltar ainda mais forte? E se chego em casa e dou de cara com ele me olhando firme, com ares de vingança? Nada pode me deter, ele diz. Não, amor, não é possível! Se ele não morreu, morro eu!
Saio correndo tresloucado do cemitério até a praia. Chego em uma hora, exausto. Atiro-me ao mar. Vou avançando água salgada a dentro, as ondas esbofeteando meu rosto. Começo a nadar, elas me fazem beber água. Estou cansando já. Os pulmões agora são um banhado. Puxo o ar, bebo mais água. Afundo.
Do inferno de onde te escrevo agora sou vigiado por mil demônios. Com nosso amor o diabo fez um chicote com o qual açoita meu corpo que ele virou do avesso para me machucar por dentro, assim como tu já fazias. Ri do diabo, tolinho, achou que me fazia grande mal, mas já estou calejado. Parece que este é mesmo o meu destino, amor, chicoteado pela eternidade por nosso amor moribundo.
Sete e trinta. O celular desperta com aquela música romântica chata que me faz lembrar de ti. Não sei porque não mudei essa porcaria ainda. Viro o corpo de lado, flexiono os joelhos, enfio a cabeça no travesseiro. Ah, mais um dia novo de rotina velha. Nosso amor talvez não tenha morrido ainda mesmo. Nem ele, nem tu, nem eu.