Já muita gente sabe da necessidade que sinto de regressar à gleba original, pesquisar nas ruas, na beira do rio, no pinhal sobranceiro, algum vestígio que me reconstitua e alente para singrar mais algumas milhas no mar do quotidiano. Dois ou três dias depois regresso com o casco restaurado e as velas remendadas.
Não tenho planos, nem regras, nem mapas. O que for, soará!
Quando um dia passei em frente da casa onde nasci e vivi até aos 17 anos, apeteceu-me revê-la por dentro. O meu quarto, a estante com livros, a lareira, a escada do quintal, o misterioso sótão, o alpendre…
Mal dei por mim estava a bater à porta e logo depois já explicava à senhora que me atendeu que tinha vivido ali há 60 anos atrás e não conseguira reprimir o impulso de uma visitação retemperadora às origens.
Notei-lhe alguma contrariedade no rosto que só mais tarde, já no interior da casa, compreendi - a desarrumação natural em qualquer lar àquela hora da manhã. Realmente não cabe na cabeça de ninguém fazer visitas inesperadas às dez e meia da manhã.
Mas lá estava eu a mirar e a medir os espaços, a revolver a arca das recordações. O corredor, afinal, já não era uma pista de corridas e o meu amplo quarto encolheu repentinamente, assim como as portadas das janelas. Para espreitar a rua já não era preciso encostar um banco ao parapeito. A cozinha com a sua enorme chaminé estava no mesmo local mas completamente remodelada. Um gato roçou pelas minhas pernas mas não era o Tonecas e o cão que estava na varanda não era o Kiss. | | Na sala, parei em frente da janela que dá para o quintal. Era comprido, feito em socalcos e percorrido lateralmente por uma passagem até lá acima à última courela. Em cada uma delas havia um tanque do qual saía uma caleira que transportava a água ao longo de cada plano de terreno.
Olhei lá tudo para cima…
Naquele dia o avô andava a regar os pés de laranjeira plantados há poucas semanas. Olhava com admiração a facilidade com que transportava os grandes baldes de água que retirava do enorme tanque de pedra. Por vezes parava para descansar um pouco e procurava-me com a vista para se certificar que não havia alguma maroteira.
- Chega aqui. Anda cá ver um bicho.
Aproximei-me desconfiado.
E lá estava a fera, negra e amarela, viscosa como uma lesma.
- Isto é uma saramantiga – disse o avô
- Vou contar á mãe que vi uma saramantiga – disse eu, e parti numa correria direito a casa para partilhar o grande acontecimento.
Para não me esquecer ia repetindo: saramantiga… saramantiga…
No meio do percurso já dizia: saramanteiga… saramanteiga…
Esbaforido, quando divisei o vulto da mãe, gritei entusiasmado:
- Mãe, ó mãe, eu vi uma manteigueira.♣ ♣ ♣Realmente o quintal não era assim tão grande.
Para uma criança como eu tinha precisamente o comprimento que vai de uma saramantiga a uma manteigueira.
António Mata |