Não tinha ninguém em vida que de pele lhe emocionasse o espírito. O tempo e algumas desgraças impossíveis de remediar levaram-lhe os enlaces terrenos que com mais ou menos calor humano acabam sempre por perdoar todos os erros. O que restava de sua família, uns primos afastados que residiam em local que desconhecia, abandonaram-no abruptamente havia anos, envergonhados com a depauperada situação em que se deixara negligentemente cair. Ia para uma dezena de Natais que não fruía uma daquelas ceias em que a companhia afectuosa em família é o alimento primordial.
Vivia na cidade ao deus-dará, sustentado por algumas mínimas esmolas e pelos restos de comida que recolhia nos contentores de lixo. Dormia na reentrância de um portal de garagem, embrulhado numas mantas velhas, sujas e rotas, donde era frequentemente escorraçado sempre que o dono do prédio regressava a casa a meio da noite. Devido ao mau cheiro que exalava, as pessoas de imediato se apressavam a afastar-se dele enquanto lhe vociferavam ácidas censuras. Se por vezes lograva uma moeda gorda que lhe permitia comer uma sopa, raramente conseguia tranquilidade para o fazer e era obrigado a despachar-se rapidamente.
Só um gato, o "Misérias", que se habituou a seguir-lhe no encalço, lhe fazia assídua companhia, indiferente a toda a espécie de inconvenientes e intempéries. Um gato, um insignificante elemento válido numa sociedade que há milénios, evocando os mais altos valores da humanidade, continua imparavelmente a caminhar para o nada, que é já ali adiante.
António Torre da Guia |