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Contos-->AMNÉSIA -- 13/02/2007 - 14:00 (Rudolph de Almeida) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
AMNÉSIA

São sete horas da manhã e o celular está despertando emitindo um ruído semelhante ao dos telefones de antanho. É proposital. Um ruído pedante suficientemente irritante para me motivar a mover o braço em direção ao aparelho para desligar o alerta. Depois, o som é chato para lembrar que vai começar outro dia chato, como o de ontem e o de antes de ontem.
Engraçado, hoje o ruído não me incomodou. Pulei da cama rapidinho e muito bem disposto. Não sei o que aconteceu com a modorra matinal, não veio hoje. Abro a janela e o sol, ainda discreto, parece que vai entrar inteiro pelos meus olhos. O dia está especialmente luminoso e radiante, até o concreto cinza dos edifícios mal pintados está brilhando. O asfalto, oh!, quem vestiu a rua com um belo manto de cetim negro? O céu está tão azul! A poluição foi poluída pela minha percepção distorcida e sumiu. Não compreendo, mas estou leve, parece que perdi uns cinco quilos durante a noite. Até a minha alma escapuliu daquela caixa de sapatos velha onde eu a enfiei para não ouvir seus gritos e que depois coloquei debaixo do roupeiro. Está flutuando à minha volta. Independentemente do que esteja acontecendo, é bom, é maravilhoso.
Vou ao banheiro escovar os dentes e lavar o rosto. O cara que me olha está com a face relaxada e sem olheiras, quase nem o reconheço. Nem ia fazer a barba hoje, mas pensando bem, vou fazer. Vai combinar com o alto astral. Já estou sentindo o cheirinho do café, porque deixo o timer da cafeteira elétrica programado à noite. Pela manhã a preguiça costuma ser tanta ... Quando falta luz durante a madrugada o aparelho se desprograma, daí tenho que ligá-lo pela manhã, mas hoje deu tudo certo. Pego o jornal embaixo da porta, onde o porteiro gentilmente o coloca. Preparo uma grande xícara de café bem preto para fornecer minha dose matinal necessária de cafeína. As coisas funcionam mais ou menos como nos carros a álcool, quando está frio, precisam de uma injeção de gasolina. Eu, de cafeína; meu cérebro, quero dizer, para pegar. Só que o café hoje nem parece aquele café Melitta de todos os dias, está especialmente saboroso, parece um café expresso, aromático e cremoso. No jornal, a manchete fala de um assalto e de um menino que foi arrastado pelos bandidos, preso pelo lado de fora do carro. Um horror, é muito brutal, muito estúpido. Parece um filme de horror com enredo criado por alguma mente doentia, daqueles que o sangue só falta escorrer pela tela, mas não é. As bestas saíram do inferno e já dirigem carros, sendo que algumas ainda são bestinhas mirins. Eu deveria ficar estupefato, o fato é tão grotesco que poderia estragar o dia. Mas não o meu, não hoje, não me abalou. Sinto-me tão bem, tão tranqüilo e confiante, que pareço imune às agressões externas.
Nunca tinha passado por isso, não assim de repente. É como se eu estivesse drogado, droga da felicidade, se existe, eu tomei. Terminei meu café e está na hora de sair. Reparo que sobre o piano há um retrato. Ao me aproximar vejo que sou eu, abraçado a uma linda mulher. Mas não é um abraço qualquer, é um abraço romântico, parecemos apaixonados. Só que eu nem sei quem ela é. Eu, com um retrato na sala, de alguém que nem conheço? Melhor deixar para lá, saberei depois. Antes de sair, decido dar uma rápida olhada no meu correio eletrônico. Ligo o computador e enquanto ele inicializa pego outro café. Vou me atrasar. Azar. Ninguém pode comigo hoje. Entro na página do provedor, a caixa de entrada está vazia. Ninguém quer falar comigo eu acho, nada para me dizer. Tudo bem. Sem querer, clico na caixa de saída. A última mensagem enviei ontem à noite para a Patrícia. Patrícia? Quem é Patrícia? Não contenho a curiosidade, abro a mensagem. Estou dizendo a ela que a amo muito; que quero que ela fique comigo independentemente do que ela tenha feito; que não consigo esquecê-la; que minha vida sem ela não é nada. Eu, apaixonado? Mas eu não sinto nada! Que loucura! Alguém esteve aqui ontem, os colegas sacanas do escritório, só pode, e fizeram esta sacanagem. Patrícia! Ora, sim. Vou trabalhar e tiro isso a limpo já, já. Passo no quarto para pegar a carteira e me vestir. Então percebo ao lado da cama um amontoado de latinhas de cerveja. Umas dez. Eu enchi a cara ontem? Nem estou de ressaca! Ah, faz parte da brincadeira, é claro. Como botaram isso aí enquanto eu dormia, não sei. Tem também um bloco de anotações com alguma coisa escrita. Uns versos. Parece que andei tendo alguma inspiração boba, a letra é minha. Às vezes acontece. Deixe-me ver.
Não suporto mais dela a lembrança
Amalgamada com a minha mente insana
Ou ele é coisa extirpada agora
Ou morta é minha vida toda.

Deus, se existes, retira esse mal de mim
Nada fiz de errado, Senhor
Não é pecado apaixonar-se por alguém ruim
Leva-me de volta para a luz
Apaga este borrão negro do meu pensamento
Esta noite, para sempre
Então viverei novamente.
A letra pode ser minha, mas o texto ... nem faz sentido, estou bem confuso. O celular está tocando, cadê ele? Aqui. É uma chamada da Pati. Pati! Patrícia ... sei lá.
- Alô!
- Oi, tudo bem? - responde uma voz doce do outro lado.
- É ...
- Só vi teu e-mail hoje ... a gente está precisando conversar ....
- Sobre ...
- Como assim? Sobre nós. Estou cheia de dúvidas, mas não quero te perder. Talvez ...
- Sei ...
- Se tu me perdoares, quem sabe ...
- Olha, aquilo de ontem, esquece, vai ver bebi demais.
- Esquece?
-É. Não sei porque escrevi aquilo. Não é o que eu sinto agora, não é mais nada.
- Não acredito. Estás querendo me fazer de idiota? Fiquei preocupada em te ligar, falar contigo, e tens a cara-de-pau de dizer isso?
- Desculpa, tá? Tenho que trabalhar, ok? Não me liga mais, tá? Tchau.
Enfiei o dedo na teclinha vermelha. Puxa, Deus existe! Eu me esqueci dela! Eu me esqueci dela! Nunca acreditei muito nesse negócio de pensamento positivo, mas agora vejo como uma má lembrança ou um pensamento ruim podem nos fazer mal. É como se eu houvesse apagado trilhões de gigabytes da minha memória. Todo o sistema funciona melhor sem a recordação dela, da ... da.... Patrícia. Eu não precisava desse vírus para viver, mas achava que sim. Estou curado, desintoxicado. Agora eu tenho uma vida para viver e eu ainda nem saí de casa. Ah, mas eu vou lá, vai ser agora. Pego as minhas coisas e bato a porta. Milagres acontecem sim. Vou aproveitar o resto da minha vida, sem ela, graças a Deus!

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