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Tripeiro de gema “emigrado” na Maia e recentemente de visita à Invicta, passei por aquela que foi a minha rua, a travessa das Almas, junto à capela com o mesmo nome, na movimentada rua de Santa Catarina.
Foi um reviver de emoções, um regresso ao passado quando a malta, em cuecas ou todos nus nadávamos na Ribeira, passando depois pelo Bolhão para pedir ou fanar fruta. Depois, íamos ao beco de S. Marçal, em Fernandes Tomás, pedir rolamentos ao senhor Pinto para aplicarmos nos nossos bólides feitos de pedaços de madeira roubados ao senhor Macedo da carpintaria. Quando não havia rolamentos para os bólides, o remédio era irmos ao talho do senhor Neca, em Santa Catarina, pedir um pedaço de sebo para untarmos as tábuas que com a ajuda das mãos deslizavam rua abaixo, só parando no passeio junto à linha do eléctrico 11, mais conhecido pelo “Batata” com destino a Matosinhos e no qual alguns de nós aproveitavam para ir à “guna” até onde o pica bilhetes fizesse de conta que não nos via.
Para além de brincarmos aos índios e “cóbois”, de jogarmos ao pião e à sameira e até à patela com as garotas da rua, a casquinha era o jogo que superava todos os outros passatempos, não só pela originalidade mas também pelo improviso que lhe estava subjacente. Não havendo balizas, as portas dos vizinhos faziam o lugar delas, ou seja, a porta do vizinho de um lado do passeio e a porta do vizinho do passeio em frente. Não havendo bola e nem sequer uma velha meia de pano para a improvisar, havia que procurar uma pequena casca de laranja que se dobrava ao meio. Estava a bola feita! Não havia um número mínimo nem máximo de participantes no jogo. Por exemplo, se éramos seis, o Mindo, o Nelo, o Jorge, o Lois, o Calota, e o Dorindo, dois iam cada qual para a sua baliza, digo para a sua porta, frente a frente, armados em guarda-redes, ou melhor, em guarda-portas. Um numa porta do passeio de cá e o outro numa porta do passeio de lá e os outros jogavam ao ataque. O que a malta queria era jogar e, por isso, as regras do jogo eram simples como simples eram aqueles que nele participavam: um dos atacantes avançava com a casquinha de laranja na mão em direcção à porta do adversário, sendo que não lhe era permitido manter a casquinha parada e muito menos fechada na mão, ou seja, a casquinha tinha que estar sempre em movimento como no basquetebol. Os jogadores mais experientes, quais Eusébio de Portugal e Pélé do Brasil, davam-se ao luxo de fintar os adversários com uma mestria digna de nota. Sempre com a casquinha em movimento, balançando-a na palma da mão, faziam o que se chamava uma paradinha, lançando a casquinha pelo ar junto ao ombro esquerdo do adversário e por cima da cabeça deste, indo recuperá-la do outro lado, junto ao ombro direito do jogador driblado. Ultrapassado o obstáculo da defesa, o atacante, sempre com a casquinha saltitando na palma da mão, elevava-a à altura suficiente para, com uma das mãos, rematar à porta. Nesta altura, tudo dependia da experiência do guarda–portas para evitar o golo. O Nelo, que entre a malta era mais conhecido por “Tanques” pelo facto de calçar sapatos 44 quando devia usar 38, tinha a mania que era o melhor guarda-portas da rua e então era vê-lo a brilhar atirando-se para os paralelos como se de relva se tratasse.
O jogo da casquinha era ainda mais atractivo quando a malta tinha mirones a assistir, em especial as miúdas que aplaudiam batendo palmas e gritando, não pelo nome do seu clube mas pelo nome do seu ídolo. Escusado será dizer que o Tanques era o mais aplaudido, mas ele, independentemente de sofrer ou não golos na sua porta, bem que merecia mais do que nós a atenção das garotas. Era preciso ter coragem para se “amandar” pró chão como ele e chegar a casa todo pisado e a cheirar a laranja mas ao mesmo tempo feliz da vida por saber que mais uma vez tinha brilhado a jogar à casquinha. Não era por acaso que elas o admiravam, pois sabiam que ele era o único que sabia como atirar-se a elas. Referi-mo às casquinhas de laranja, é claro! | | A casquinha, jogada na travessa das Almas, passou a despertar o interesse de outras maltas da Invicta. Daí que um dia, no Café Chave d’Ouro, na praça da Batalha, se reunissem, para além do Tanques, do Jorge e do Mindo da travessa das Almas, o Figas da Foz, o Crava de S. Victor, o Guedelhas das Fontainhas, o Toninho da praça dos Poveiros, o Iscas da rua Escura, o Marocas de São Roque, o Trinca-Espinhas do Marquês, o Zé da Areosa, o Relhanha de Cedofeita, o Serjão da Boavista, o Mirolha do Amial, o Titóta de Campanhã e o Picónero da Ribeira-Barredo, único gajo que se fez acompanhar da sua namorada, a Lena de Paranhos, que fez de secretária e que há muito andava debaixo de olho do Marocas de São Roque que tinha a mania que era engatatão. A ordem de trabalhos, acompanhada de uns copos de leite com canela e de quatro ou cinco torradas a dividir por todos, consistia na organização do 1º Campeonato Portuense da Casquinha. A reunião estava a correr bem a todos os níveis, designadamente quanto ao regulamento do jogo e condições de inscrição, mas o problema foi quando se passou à discussão da qualidade das cascas de laranja. Uns diziam que as melhores eram as cascas grossas por serem mais pesadas e proporcionarem remate mais eficaz, outros que preferiam as mais finas por permitirem melhores dribles e não se desfazerem ao fim de alguns minutos como acontecia com as cascas grossas. O Picónero do Barredo-Ribeira, tentando ultrapassar o diferendo, ainda deu a ideia de se optar pela casca de tangerina que, segundo ele, era fina mas mais resistente. Porém, o Marocas de São Roque achou ridícula a ideia, levantando-se repentinamente da mesa como sinal de desaprovação, originando um pequeno desastre pois que entornou o seu copo de leite com canela na saia da já comprometida Lena de Paranhos que, furiosa, reclamou a presença do empregado de mesa senhor Abel que com cara de poucos amigos e de bandeja em punho logo perguntou em voz alta quem iria pagar o copo partido. Conclusão: a reunião para o 1º Campeonato Portuense da Casquinha não teve o final para que tinha sido convocada, terminando com as contas à moda do Porto, incluindo a despesa do copo partido.
Aconteceu em 1967, tinha a malta idades compreendidas entre os 10 e os 13 anos. Volvidos 40 anos, ao passar pela travessa das Almas, não só regressei ao passado como não resisti a fazer uma visita ao Café Chave d’Ouro, desta vez à frente de uma francezinha e de um fino, sonhando. Não houve copo partido nem o senhor Abel apareceu de bandeja em punho pronto a reclamar o prejuízo. O que aconteceu foi uma coisa que a patina do tempo não conseguiu apagar, pois que por uns breves e ao mesmo tempo duradoiros minutos, fiquei com a certeza que não estava só. Comigo estava toda aquela malta tripeira aficionada do jogo da casquinha de laranja e que desta vez, finalmente, foi encerrada a sessão com a aprovação do tão ambicionado 1º Campeonato Portuense da Casquinha. É claro que para o bom êxito da nossa reunião, muito contribuiu o facto de a Lena de Paranhos já nada dizer ao Picónero do Barredo-Ribeira, nem ao Marocas de São Roque.
Com efeito, a Lena de Paranhos é desde 1978 a minha mais que tudo e a prova disso é a nossa Bárbara que tem agora 26 anos de idade. A propósito, só agora reparo que, sem dúvida inadvertidamente, disse que o Marocas de São Roque tinha a mania que era engatatão.
Ah! Quase me esquecia de dizer que, pese embora a teoria do Picónero do Barredo-Ribeira, acerca da casca de tangerina que apesar de mais fina era menos susceptível de quebrar, a casquinha seleccionada por maioria com apenas um voto contra, foi a de laranja, desde que fina.
Creio não precisar de dizer quem foi o autor do único voto contra. Como todos sabem, o Marocas de São Roque é um gajo porreiro que ainda hoje adora jogar à casquinha. Porém, jamais aceitaria perder pau e bola, digo, perder pau e casca.
A malta da Invicta é do carago!!!
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