Em Fevereiro de 1981, à saída de uma seroada fadista, eram quatro-e-pico da manhã, ouvi aflitos mios nas imediações da casa típica. Embalado ainda na desvaporização do whisky, fui expontâneo no encalço dos sons em apelo e deparou-se-me um gatito recém-nado à entrada de um boeiro. Tomei-o, meti-o num sovaco e aconcheguei-o com o sobretudo.
Chegado a casa, preparei-lhe uma caixa de papelão, acondicionei-o entre um pedaço de cobertor velho, coloquei ao lado um pires com leite, fiz-lhe uma festa entre as orelhas e fui deitar-me pé ante pé como àquela hora convinha. O que um homem zangado com a mulher pode fazer? Bem, até um gato qualquer lhe propociona escudado refúgio íntimo.
Por volta das nove horas da manhã acordei sob os protestos da minha senhora. Coitadinho aqui, coitadinho ali e lá consegui, ao mesmo tempo que fazia as pazes com a «quer-me-bem», que o gato ficasse a fazer parte do mobiliário vivo da casa.
Era preto e branco, com as malhas muitíssimo bem distribuídas em harmoniosa simetria. Como em princípio se mostrasse assaz brincalhão e guerreiro, decidi baptizá-lo de «Paz-Paz» ao contrário: «Zap-Zap». Com o andar do tempo tornou-se num terno meigão com mio melódico e admiravelmente civilizado.
Cerca de dois anos após, por circunstâncias que para a estorieta não são aqui chamadas, eu e minha companheira tivemos de ir habitar por uns tempos na residência de minha mãe em Mindelo, casa cercada por um terreno onde se cultivava de tudo e havia gatos, gatas, gatinhos, cães, galos, galinhas, garnizés, perús, patos e porcos. É evidente que levámos o inestimável «Zap-Zap» connosco. Dizia eu na altura para o gato: - Anda lá meu finório, agora é que vais estar nas tuas sete-quintas...
Passados uns dias de estada em Mindelo, ao cair da noite o «Zap-Zap» entrou de rompante na cozinha com um dos olhos semi-de-fora. Fiquei de imediato alarmado, espavorido e sem saber o que fazer. Agarrei-o cuidadosamente, meti-me no carro de aluguer do Justino e dirigi-me a toda a brida para Vila do Conde à procura de um veterinário. A solução final determinou que o «Zap-Zap» ficasse cego do ôlho esquerdo.
Assim que averiguei e meditei sobre o que lhe tinha acontecido, concluí que havia ignorado por completo a diferença entre os estados civilizado e selvagem. Tinha sido a gata da minha mãe, uma endiabrada felina, perita na caça de pardais e que se dava apenas pelo nome de «a gata», que extirpara o ôlho do meu gato. Daí em diante, ao «Zap-Zap», comecei a tratá-lo por «Camões» enquanto o acariciava ronrronante no meu colo.
Há uns tempos para cá, sempre que um gato passante me faz lembrar do meu mais dilecto dos bichanos, vejo também a gata espintarrada de minha mãe e, por relação, sugere-se-me logo escrever qualquer coisa no Fórum JN...
António Torre da Guia
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