Aquele tinha sido um dia de cão. Muitas coisas feitas, o trabalho como sempre estressante. Há dias eu tento ver o resultado de uma loteria em que apostei: Se dependesse disto para ficar rico, nem um vintém a mais em minha conta eu ganharia; até urinar às vezes é difícil. Nestas horas, eu olho para o resto de minha vida e vejo, puxa, que muita coisa realizei, porém paguei o preço de tanto apego: não me apeguei a ninguém.
Dei para procurar um animal de estimação. Tenho de preencher meu afeto de algum modo. Nada melhor que um bichinho. Conheço uma loja de pets extraordinária, todos com pedigree, todos vacinados. Entrei na espaçosa loja em companhia de alaridos e latidos os mais diversos.
--Moço, gostaria de comprar um animal de estimação.
--Bem, vejamos...Temos uma ninhada novinha, acabaram de nascer os filhotes de uma Lhasa Apsu.
--Oh, meu Deus. São aqueles ali?
Os pequeninos se aninhavam na mãe, ainda de olhos fechados. Tive um arrepio, me senti apertado e desconfortável só de ter a idéia de separar aquela linda família. Não ia suportar me lembrar dos olhos da mãe me fitando, como que antevendo a perda iminente que teria em breve.
--Ah, não. Não quero ser acusado de destruidor de famílias!
--Hum, vejamos...Temos aquela maritaca!
Quase ensurdeci ao chegar perto. Próximo!
--Bem vejamos, o seu perfil...O senhor mora só?
--Sim, ele está no céu.
--Desculpe, você mora sozinho?
--Moro, sim.
Ele era um rapaz magro, alto, calmo, de dedos afilados de pianista, jamais se poderia supor que vendesse cachorros, gatos, coelhos e afins.
--Veja, aquele é um Ferret.
--Que raios é isto?
Pulava sem parar o pobrezinho, olhando a jaula e circulando, parando, como se ensaiasse um passo e voltava ao círculo perpétuo de seu mover eterno. Não parava nunca.
--Esse me dá nervoso! Tem bicho mais calmo?
--Bem, uma tartaruga...
--...Calmo, mas nem tanto, não?
Olhei para uma caixa de vidro.
--O que é aquilo?
--Uma caranguejeira. Mas não está à venda!
Seus olhos apertaram fitando-me atentos, quase imaginei que o moço de dedos finos devia levá-la à sua casa e não podia viver sem ela, de tal modo que...
--Já sei!
Os olhos brilhavam de excitação, ele havia descoberto algo que se aparentaria a mim. Ou que chegasse bem próximo
--Nem tão calmo, nem cansativo, nem estressante. Você sabe de uma coisa? Os pets mais dia ou menos dia se parecem cada vez mais com seus donos.
Fomos ao fundo onde havia uma espécie de lagoa artificial. Um cheiro característico, meio adocicado, me envolveu. A luz era tênue: Havia algumas plantas ali, mas a estrela do pequeno lago não era exatamente o coqueiro-real. Um movimento leve denunciou alguma coisa Ele se aproximou devagar junto à borda do lago, olhando fixamente uma espécie de elevação na água. Pegou um peixe e ergueu, com mãos temerárias e trêmulas. O movimento tênue da água aumentou e a ilhotazinha sumiu. Repentinamente, uma boca eivada de dentes se ergueu: De um golpe só tragou o peixe e por pouco, o braço do vendedor abusado.
--Crocodilo!
--Sim!!!
--Esse pode ser seu.
--O quê?
--Você mora sozinho, não?
--Moro, já disse.
--...Pode cuidar dele. Ele tem três anos e veio da África. Acostumou-se aos peixes, não tem o instinto assassino dos devoradores de carne humana. Ele é um animal que se poderia chamar de exótico.
--Lá se vai minha piscina; mas, quer saber? Não a uso mesmo. Mal tenho tempo de urinar, quanto mais de usar a piscina!
E lá fui eu com meu crocodilo a tiracolo. Grandes problemas no trânsito: uma senhora caiu desmaiada ao ser encarada pelos brilhantes olhos verdes de meu pet. Problema dela! Crianças me apontavam, vindas aos magotes em ônibus escolares: Aposto que dariam um braço (não literalmente, é claro) para ter aquele pequeno gigante em suas banheiras. Imagine o susto da mãe desavisada. O problema era passear com meu crocodilo no parque, ele geralmente mastigava um ou outro cão. Mas, comportado como ele só, quando me olhava estava de olhos limpos e boca fechada. Era muito dissimulado o velhaco. Certa vez, no parque, engoliu a garrafa de pinga de um bêbado, que nem sentiu, dormia embriagado e eu tratei de sair rápido dali. Ficou troncho o meu bicho cascudo, que não encontrava o caminho de casa. Mas deu pra chorar lágrimas de crocodilo chegando lá, pedindo perdão com os lindos e verdes olhos.
Às vezes emudecia, ficava quieto, olhando o céu por horas, na piscina, matutando o que faria a seguir e mais de uma vez eu o ví olhando maravilhado o poodle de minha vizinha difícil, o tipo de pessoa que se quer ao longe, bem ao largo. Eu o observava, mas eu sabia que ele me fitava secamente. Alimentá-lo, sempre uma aventura; ver sua bocarra não tinha preço e quase havia gratidão em seus olhos faiscantes quando devorava os peixes que eu lhe comprava (“não tem o instinto assassino dos devoradores de carne...”).
Meu trabalho me parecia cada vez mais entediante. Mais de uma vez a garota com que eu saía me chamou a atenção:
--Nossa! Você parece tão distante! Fica com estes olhos arregalados...Olhando o vazio!
--Desculpe, querida. Você sabe que eu te adoro.
--Às vezes você me dá medo, sabia?
Ainda não lhe contara o segredo, no dia que ela fosse à minha casa novamente, eu lhe contaria, lhe mostraria minha nova aquisição. Divertia-me com sua possível reação.
--...Telefone!
--Para mim?
Era a vizinha. A enxerida se metera a olhar meu adorável companheiro de viagem. Claro está que fez escândalo, como era bem o seu feitio. Eu pensava em meu frio camarada fitando com olhos verdejantes o lindo poodle de minha pobre e metida vizinha: Maus pensamentos estes, maus pensamentos. Ele tomava espaço lentamente. Eu dormia e numa das noites eu surpreendi meu reptiliano amigo a andar sem rumo pelo quintal de casa, vasculhando os arredores. Não que houvesse o que vasculhar, mas ele o fazia por pura investigação. Ao perceber que o fitavam, ele permanecia imóvel, congelado com os dentes brilhando à luz fria da lua. Era uma visão e tanto e eu sabia que ele tinha noção de ser observado. Isto me dava arrepios.
--Norberto!(esse é meu nome).
--...Hein?
--Francamente. Olhe, se quiser nós damos um tempo. Você tem andado estranho. Deu para ficar me olhando, assim, com esses olhos frios. De noite, acordo e você está lá, olhos vidrados, fitando o teto.
--Nem percebo.
--Pois devia. Acho que devia se tratar. Afinal, o que acontece?
--Tenho um segredo para lhe contar.
--Quer me deixar? Tem outra? Descobriu que não me ama? Eu sabia!
--Nem uma coisa nem outra.
Ela chorava convulsivamente, de um jeito que me irrita sempre, como todas fazem quando confrontadas com sinais que não compreendem.
--Venha comigo!
Agarrei seu braço e entramos em meu carro.
--Que foi?
--Quero que veja uma coisa.
--Onde?
--Em casa.
Ela estava assustada. Eu achei que exagerara, mas, afinal, ela assentiu com a cabeça quando perguntei se ela queria mesmo ver o que ia lhe mostrar. Chegamos e a casa estava silenciosa, a frente escura e eu senti os olhos dele em mim; tudo, obviamente, irreal, fruto de dias duros de trabalho e noites mal-dormidas.
--Você tem piscina?
--Tinha.
--Como assim?
--Venha ver.
Caminhamos devagar, o ar frio de junho entrava em minhas narinas e o cheiro adocicado, característico, estava lá.
--Que cheiro é este?
--Psiu. Ele pode não gostar.
Aproximamo-nos da beira da piscina e onde ele devia estar, nada havia. Um ruído, bem próximo, me certificou que ele aprendera rápido o caminho de volta à selva.