Numa das estreitíssimas vielas de Alfama, em que os telhados quase se tocam, existe um pequeno bar em que se reúnem ao fim da tarde, antes do jantar, vários homens que trabalham na baixa lisboeta ou que habitam nas redondezas.
Foi para ali que José Carlos encaminhou os seus passos, mal saiu do emprego. Parou à porta, fechou e sacudiu o chapéu-de-chuva, e entrou rapidamente para evitar os grossos pingos que escorriam dos beirais.
Tibúrcio já lá estava, sentado num dos bancos altos, em frente do balcão. Espalhadas simetricamente pela sala, várias mesas, quase todas ocupadas. José Carlos instalou-se no banco ao lado do amigo, cumprimentou-o e pediu um vermute.
- Ainda bem que apareceste, apesar da chuva. Estava a pensar nos meus tempos de África. Se não te importas, posso compartilhar contigo mais algumas recordações. As saudades atormentam-me e vai fazer-me bem.
- Já me contou muitas das suas aventuras, mas gosto sempre de o ouvir. Vamos a isso!
- Julgo que já te disse um dia que o meu pai possuía grandes plantações de cajueiros e uma fábrica onde se fazia a torrefacção do caju, após a respectiva secagem. Depois de enlatado, o caju era transportado por várias camionetas até à Capital, que distava umas boas centenas de quilómetros. Dali, era feita a distribuição para todo o território e uma parte ia mesmo para o estrangeiro. Eu, que nessa altura tinha os meus 15 anos, lembrei-me certo dia de me esconder numa daquelas viaturas, que já estava carregada. Quando ela abalou, eu parti à aventura, sem ninguém se aperceber. Passadas algumas horas, talvez três ou quatro, o condutor parou, desligou o motor e ouvi-o sair batendo com a porta. Soergui o oleado cinzento que tapava a carga, entre a qual eu me encontrava, e olhei. Não muito longe, o motorista fazia uma necessidade fisiológica. Bastante mais além, descortinava-se uma aldeia nativa, com as suas palhotas de cor escura, a contrastar com o verde da floresta e o avermelhado do chão. Resolvi descer e esconder-me até a camioneta arrancar. Dirigi-me então para o aldeamento.
José Carlos escutava, com interesse, mais uma história do amigo. Gostava dele, era bastante mais velho (por isso o tratava por você) e já tinha o cabelo todo branco. Ouvia-o sempre, tal como um neto ouve um avô que lhe conta uma história.
- Fui bem recebido pelos nativos, mas mostraram-se preocupados pelo facto de eu ficar à guarda deles, pois não queriam complicações. Apenas um, justamente o mais velho, falava português; os outros falavam o dialecto local. A aldeia ficava muito longe de qualquer povoação de “portugueses” e não tinham comunicações nem meios de transporte. Teria de esperar por alguma viatura que passasse pela picada, o que poderia demorar alguns dias ou mesmo semanas. Decidiram que, a partir de então, ficaria um homem de vigia, de dia e de noite.
Eu, pelo meu lado, sentia-me nas sete quintas. Só me preocupava ao pensar nos meus pais, mas tudo seria explicado mais tarde. Passei a andar com os meus novos amigos na caça, na pesca e nas lides do campo. Descíamos por vezes até ao rio, que ficava a alguns quilómetros, para ir à pesca numa canoa, escavada em tronco de Mafumeira. Apanhávamos Mussolos, Cacussos e outros peixes de que não me recordo o nome. Aliás, aprendi muitas palavras, mas já me esqueci, passados tantos anos.
Certa noite, senti como que um tremor de terra, enquanto os negros gritavam e fugiam em todas as direcções, gritando “Aiué” (vim a saber que queria dizer “Ai, meu Deus”).
Zacarias, o velho que falava português, explicou-me que se aproximava uma grande manada de elefantes e que, quando se enfureciam, como acontecera há pouco tempo, levavam tudo à sua frente. Felizmente, nada fizeram desta vez, passando ao largo.
Comia-se bem. Recordo ainda a Muamba de galinha, acompanhada com funje, a Muteta à base de abóbora, os peixes grelhados, a caça no churrasco e tantas outras coisas boas.
Assim decorriam os dias, ao ponto de eu lhes perder a conta. Até que, uma tarde, o vigia gritou: “Abixila, abixila kiá”.
“Deve ser uma viatura, ele está dizendo que chegaram, que já chegaram” traduziu-me Zacarias. E assim era de verdade. Por feliz coincidência, era uma camioneta da fábrica do meu pai, que voltava da entrega de um carregamento de caju. Enquanto o motorista me esperava, fiz questão de abraçar todos, um por um, e foi com uma lágrima ao canto do olho que disse adeus àquela boa gente, que tão bem me tinha tratado. Voltei para casa e os meus pais tiveram tamanha alegria, que não me ralharam, pelo menos tanto como eu esperava.
- Amigo Tibúrcio, tenho de ir. Como sabe a minha mulher está grávida e não gosto que ela esteja só. Hoje, já tenho uma história para lhe contar. A sua vida dava um bom romance ou mesmo um filme! Amanhã estarei aqui de novo.
- Até amanhã Zé Carlos, volta sempre!
Numa mesa vizinha, encontrava-se Jorge Mascarenhas, um cliente antigo, que tinha escutado atentamente a conversa. Chamou-o para a sua mesa, enquanto pedia mais um gin tónico:
- Oh amigo Tibúrcio, diga-me uma coisa. Quase toda a gente o conhece no bairro, pelo menos os mais antigos. Sabemos que nasceu aqui, cá foi criado e sempre viveu em Alfama. Porque inventa todas aquelas aventuras?
Tibúrcio olhou para ele, como que acordando de um sonho:
- A verdade já existe e nem sempre é agradável. Por vezes é cinzenta e sem interesse algum. A mentira, porque inventada, pode ser pintada com as cores de que nós mais gostamos. A mentira, quando não é mal intencionada nem prejudica ninguém, pode dar esperanças e disfarçar desesperos. Há mentiras que, num minuto, podem estragar uma reputação, mas não é o caso das minhas. Limito-me a inventar acontecimentos que gostaria de ter vivido e, quando o faço, sinto-me feliz e faço os outros felizes também. É o meu modo de esquecer as agruras da vida, que me têm fustigado imenso como deve saber.
- Eu sei. Não o estava a criticar! Queria simplesmente compreender. Já não vinha aqui há muito tempo. Beba alguma coisa. Hoje sou eu que pago.
- Apenas uma garrafa de água. Depois tenho de ir para casa. Vivo sozinho e ainda não preparei o jantar. A história repete-se todas as noites. Depois de comer, vejo um pouco de televisão e, mais tarde, vou para a cama imaginar uma história para o dia seguinte.
Assim adormeço. Nunca sonho. Os meus sonhos acontecem quando estou acordado.
NB - 1º Prémio nos Jogos Florais da Academia de Santo Amaro – 2007