Parecia estar vivendo um conto de fadas. Sentado em um confortável sofá que compunha um dos vários ambientes daquela gigantesca sala, Osório presenciava seus dois filhos correndo pela casa numa alegria esfuziante. Os últimos três anos haviam mudado radicalmente sua vida. Jamais poderia imaginar que sairia do casebre de dois cômodos de uma favela para este palácio, no bairro mais badalado da cidade. A nova residência tinha uma área construída de cerca de 1.000 m2 e era circundada por um desses jardins somente vistos em cinema ou revistas especializadas em jardinagem. Ao fundo, completando o cenário, serpeava uma piscina sinuosa com água corrente e cascatas, entre palmeiras e arbustos cuidadosamente projetados pelo melhor paisagista da região.
Enquanto percorria com o olhar cada canto e cada detalhe de sua nova residência, foi despertado por um delicioso aroma de café, e então percebeu que sua felicidade não era simplesmente pelas coisas materiais recém-conquistadas; ela ia muito além dessas efemeridades, e tinha um nome: Jacira.
Com um doce sorriso nos lábios, Jacira aproximou-se, trazendo uma pequena bandeja com duas xícaras de café e sentou-se ao seu lado.
- Um cafezinho feito com muito carinho para o meu amor... – disse ela, toda dengosa, aninhando-se junto a ele.
- Obrigado, meu anjo. Estava mesmo precisando disso e de sua companhia.
Enquanto tomava o café, Osório, talvez por ainda não acreditar que tudo o que estava vivendo era real, não teve como evitar um novo mergulho em sua recente e atribulada história.
Era uma madrugada escura e silenciosa de final de outono. As batidas da pequena marreta sobre o cinzel ainda soavam cristalinas em sua cabeça. Não foi tão difícil a primeira etapa de seu solitário trabalho de retirada da pesada tampa metálica que vedava o acesso frontal ao majestoso túmulo da família Pignelli. O comendador, último descendente direto dessa tradicional família de banqueiros, havia morrido há dez anos, e agora toda a sua incalculável fortuna estava prestes a desaparecer nas mãos de estranhos, dado o inesperado falecimento de sua fiel e dedicada esposa. Mulher virtuosa, dona Jacira ficou viúva aos 55 anos de idade e, a despeito de inúmeros pretendentes a um novo matrimônio, manteve-se sozinha em absoluto recato por mais de uma década. À vista de todos, aquela mulher bonita e ainda cheia de vigor, enterrara com o finado marido o seu próprio coração. De uma religiosidade a toda prova, passou o resto de seus dias isolada em sua mansão, dedicando-se somente a obras filantrópicas e de benemerência. Os jornais locais não se cansavam de mostrar e enaltecer, com freqüência, seus trabalhos junto à população carente, em especial às crianças desamparadas. É provável que, por lhe ter sido negada a graça de ser mãe, sonho que acalentava desde a infância, dona Jacira entregava-se de corpo e alma à ajuda aos orfanatos da cidade, considerando todas as crianças como se fossem seus próprios filhos.
Depois de solta, Osório deitou no chão a peça fundida em bronze com o desenho representando a Santa Ceia e precipitou-se, com a agilidade de um gato, para dentro do túmulo através da pequena abertura rente ao piso do gramado. Os seus vinte anos de trabalho como coveiro permitiram-lhe conhecer, em detalhes, a maioria daquelas ricas sepulturas. No entanto, jamais poderia imaginar que passaria um dia por uma situação desesperadora como aquela. Estava desempregado há um ano e com duas crianças para sustentar. O dinheiro que havia conseguido com o plano de desligamento voluntário promovido pela prefeitura municipal havia acabado, e nenhum outro trabalho conseguira até então. Toda sua experiência profissional fora adquirida naquele cemitério. Ser coveiro era tudo o que sabia fazer, e agora, por falta de opções, estava na iminência de utilizar suas habilidades numa atividade marginal.
Desceu primeiro as pernas e, por fim, já com a cabeça na parte interna do jazigo, pendurou-se no sopé da entrada com os braços esticados, até soltar totalmente o corpo no chão a 2,5m de profundidade. Com as ferramentas amarradas ao cinto, pegou uma lanterna e iluminou o claustrofóbico ambiente. Pôde, assim, divisar um estreito corredor formado por grandes carneiros sobrepostos, como se fossem duas gigantescas cômodas com quatro gavetas cada uma. Correu o facho por ambas as paredes torcendo para que a continuidade de seu serviço fosse facilitada. Felizmente a gaveta que procurava era a primeira inferior. Constatou isso pelas juntas de massa de cimento ainda frescas. Após desprender e deslocar a laje de concreto que fechava a lateral, vislumbrou o tesouro procurado: o imponente caixão que continha, nada mais nada menos, do que a mulher mais rica da região.
Pediu perdão a Deus pelo sacrilégio que estava por cometer.
A vida andava realmente muito difícil. Não bastassem os problemas profissionais, Osório enfrentava também uma crise conjugal. Sua mulher, sempre intolerante e inconformada com os sacrifícios impostos pela situação, abandonou o lar, fugindo com o circo que passara pela cidade. Deixou para ele duas crianças famintas e um bilhete lacônico que relatava sua sorte: estava enrabichada com o “águia humana”, trapezista e principal artista do Circo Irmãos Almeida. Suplicava seu perdão, recomendava o trato dos filhos e insistia para não procurá-la jamais.
Com os olhos cheios de lágrimas e após grande esforço, Osório conseguiu arrastar o caixão para o meio do corredor. A seguir, utilizando-se de uma pequena alavanca, estourou as travas superiores e pôde finalmente retirar a pesada tampa de madeira entalhada que continha em sua parte central, um bonito crucifixo de prata. Sobressaltado pela cena bizarra, empunhou a lanterna e percorreu cada pedaço do corpo daquela senhora que por diversas vezes vira nos jornais e na televisão. O nervosismo aumentava a cada segundo. As mãos tremiam e as roupas do ex-coveiro estavam encharcadas de suor. Para se livrar logo daquela empreitada, rapidamente começou a retirar, daquele corpo inerte, a aliança de brilhantes, a pulseira de ouro e, por fim, o colar de pérolas.
Prestes a sair, ocorreu-lhe a idéia de fazer um exame nas arcadas dentárias da falecida. Com as pontas dos dedos, entreabiu-lhe os lábios e, depois, a mandíbula. Bem ao fundo, do lado esquerdo do maxilar inferior, viu a luz da lanterna refletir-se no primeiro molar de ouro maciço. Imediatamente, sacou o alicate que trazia pendurado ao cinto de ferramentas. Ao introduzi-lo dentro da boca da falecida, deu um pulo para trás aterrorizado. Seus olhos se esbugalharam, querendo saltar das órbitas, enquanto o coração batia desenfreado como se fosse explodir. Ele não podia acreditar naquilo. Dona Jacira estava viva, respirando suavemente. Apavorado, subiu sobre as bordas do caixão, alcançou com um salto a portinhola e saiu correndo, pulando o muro do cemitério. Já na rua, procurou desesperadamente por um telefone público. Ligou para a polícia e para o corpo de bombeiros relatando o fato, numa denúncia anônima.
As imprensas falada e escrita não tinham outro assunto no dia seguinte. Todas as manchetes referiam-se à milionária senhora que fora vítima de catalepsia e providencialmente desenterrada por um ladrão de cemitério. Diziam, também, que a polícia estava à caça do marginal, que para muitos passara de vilão a herói, protagonizando uma bela história hollywoodiana.
No decorrer da semana, Osório acompanhou pela mídia o desenrolar dos acontecimentos. Dona Jacira recebera alta do hospital e, apesar do assédio da imprensa, não tinha dado qualquer entrevista. Osório, por sua vez, mantinha-se recluso na casa da mãe, onde passara a residir com os filhos, após a separação. Deprimido, mal conseguia dormir, pois sua consciência não lhe dava sossego. Estava profundamente arrependido do ato praticado, envergonhado de si mesmo. A desordem instalada em sua mente precisava, de algum modo, ter um fim. As alternativas convergiram para a mais sensata delas: dez dias após o ocorrido, ele se entregou à polícia, com todo o produto do roubo.
Por ser réu primário, Osório passou a responder o processo em liberdade enquanto aguardava o julgamento. E, num final de tarde, quando abriu a porta da casa para atender à campainha, ele quase teve um ataque cardíaco. Em pé, um metro à sua frente, dona Jacira lhe sorria cordialmente.
― Boa tarde, sr. Osório! Tudo bem?
― T-t-tudo – gaguejou.
― Peço desculpas pela surpresa. Mas, depois de muito pensar, não podia deixar de vir lhe agradecer.
― Agradecer? Mas, pelo quê? – perguntou atônito.
― Ora, ora. Além de o senhor ser o responsável por eu estar de volta à vida, ainda teve o gesto muito nobre de se entregar à polícia.
― Meu Deus... Jamais poderia imaginar que a senhora viesse me visitar. Por favor, entre, entre. Temos pouca coisa aqui, mas um cafezinho não falta, e faço questão de oferecer.
E assim foi o primeiro encontro do casal, após o renascimento de dona Jacira. Desse dia em diante, profundas mudanças ocorreram na vida de ambos. Os filhos de Osório encantaram aquela benfeitora, que passou a visitá-los diariamente, como se fosse um ritual de adoração. Não se cansava de dizer que aquelas crianças foram para ela um presente de Deus, os filhos que não tivera. Com a convivência, o coração sem limites de dona Jacira estendeu também seu amor, de forma arrebatadora, àquele a quem o destino enviara para salvá-la.
Em poucos meses, cedendo aos insistentes apelos, Osório passou a viver maritalmente com a augusta senhora em sua rica mansão, na companhia dos filhos. Após cumprir dois anos de liberdade condicional, o ex-coveiro pôde sentir afinal o prazer da verdadeira felicidade. Estava com a alma leve para viver um grande amor.
― Eu te dou um doce se você me contar por onde andam seus pensamentos... – falou com candura Jacira, colocando a xícara de café na mesinha defronte ao sofá e enlaçando com os braços a cintura de Osório.
― Estava agradecendo a Deus por ter me reservado você, que me tornou o homem mais feliz do mundo – disse ele, segurando o rosto de Jacira com ambas as mãos e beijando-a com sofreguidão.
Ao afastarem os lábios, Jacira deu-lhe um sorriso afetuoso e largo. Tão largo que Osório sentiu um arrepio na espinha, ao ver reluzir no fundo de sua boca, o primeiro molar esquerdo do maxilar inferior.