Serginho foi despertado pouco antes das sete horas da manhã. Enquanto ele fazia a primeira higiene corporal do dia sua mãe preparava o café-da-manhã. Teria que mandá-lo bem alimentado para a escola.
O menino sentou-se espalhafatosamente à mesa e mal deu atenção à refeição. Demonstrava muito mais atenção à tevê que transmitia as notícias matinais. O locutor anuncia: “Mais um homem-bomba estoura num shoping em Tel-aviv. Até o momento o saldo de mortos é de mais de uma centena de pessoas...”.
O garoto ainda não acabara a refeição quando a perua buzina ao lado do portão. A mãe agasalha a mochila com o material escolar e o conduz ao veículo. Acena sorridente para o filho. Ele apenas faz um leve meneio com a mão pouco levantada. Não dá sequer um pequeno sorriso. A mãe fica a espreitar até o veículo escolar sumir na esquina.
À noite Serginho deixa transparecer sua preocupação. A mãe percebe a anormalidade no comportamento do garoto. Naquele dia ele sequer efetuou as tarefas escolares recomendadas. Está ansioso para assistir ao telejornal noturno. Senta-se no sofá frente à tevê ao lado do pai e como uma pessoa adulta observa cada detalhe do noticiário. Aguarda com ansiedade as notícias do Oriente Médio. “Um jovem muçulmano de apenas dezesseis anos tinha uma considerável quantidade de explosivos presos ao cinturão”. O correspondente internacional faz a narrativa de toda a notícia trágica. Nos últimos meses se tornam constantes os episódios sangrentos, culminados pelo embate entre israelenses e palestinos. Quase todos os dias os jornais transmitem notícias fatídicas do conturbado subcontinente. No entanto, quase imperceptivelmente, o garoto Serginho comove-se com aquelas notícias. Com uma ansiedade fora do comum mal ele vê passar as horas para poder, como um bom telespectador, ver e ouvir os fatos horripilantes.
No final da semana seguinte o garoto vai ao shoping com os pais. É véspera de seu aniversário. Seus pais não querem fazer nenhuma surpresa e perguntam qual o presente que ele deseja ganhar. “Eu quero um cinturão”. Perplexos, pai e mãe tentam convencê-lo a aceitar um presente mais adequado. O menino não se dá por vencido. Insiste em querer um cinturão largo e de fivela grande. Contrariados, os pais se dirigem a uma loja do ramo a fim de satisfazer o intento do filho de oito anos de idade. Todo contente o garoto sai da loja tentando colocar o objeto à cintura. Os pais entreolham-se num misto de perplexidade e apreensão.
Alguns dias depois os pais percebem que as notícias de atentados e ataques no Oriente Médio estão interferindo no caráter do filho. Todas as manhãs o menino senta-se à mesa mais atento às notícias do que à refeição matinal. À noite ele amarra o cinturão de fivela à cintura e com exagerado esmero senta-se no sofá, ao lado do pai, para assistir ao noticiário internacional.
As guerras entre judeus e muçulmanos é sempre o cardápio do dia. É, pois, esse episódio desagradável que prende sua atenção. Os pais, desde algumas semanas atrás, vinham notando o seu entusiasmo e seu interesse excessivos pelos fatos. As notícias trágicas envolviam nações tão remotas que eles jamais imaginaram despertar o interesse de uma criança daquela idade.
Sempre que os telejornais encerravam as edições noturnas o garoto entrava para seu quarto, fechando a porta com cuidado. Os pais passaram a espreitá-lo. Perceberam que ele não estava indo direto para a cama. Durante muito tempo, antes de dormir, ele executava um ritual inusitado. Juntava seus bonequinhos de cera e de plástico: Mandrake, super-homem, capitão gancho e dezenas de outros que faziam parte de sua coleção, punha-os perfilados como num desfile militar ou numa estratégia de guerra e passava a emitir vozes de comando. “É só coisa de criança”, tentou tranqüilizar o pai. “Mas o comportamento é muito repetitivo”, preocupou-se a mãe.
Na noite seguinte a história se repetiu. Jornal matinal e telejornal noturno prestigiados pelos ouvidos e olhos atentos de Serginho. O noticiário internacional sempre recheado de massacres na Faixa de Gaza, na Cisjordânia, nas Colinas de Golan, em Jerusalém, em Tel-aviv ou em Bagdá. Naquela noite o menino deixou transparecer um enfurecimento mais acentuado. Ao fim do telejornal entrou para seu quarto, bateu a porta num ruidoso sopetão e passou a fazer as arrumações em seus heróis de cera e plástico. Depois de posicionar os bonequinhos em ataque e defesa, pôs seu cinturão. Pendurou nele meia dúzia de frutos de pinho que ele havia colhido no quintal durante o dia e passou a andar em redor dos soldinhos e heróis. De uma só sacada com a raquete de pinguepongue espatifou todos os homenzinhos. Fez uma manobra brusca com os frutos de pinho, e como se eles fossem granadas explodindo, atirou-as ao longo do quarto. Todas as vezes que isso fazia, ele proclamava: “Eu sou poderoso”. Em seguida caiu de braços abertos simulando estar morto.
Na noite seguinte, após assistir como de costume o telejornal, entrou para seu quarto e ocupou-se em armar a mesma cena dos últimos dias. Naquelas noites os noticiários também davam conta de catástrofes naturais na Ásia, injustiças sociais na América, fome e epidemias na África. E assim, ao lado dos habituais soldadinhos, heróis e homenzinhos comuns o garoto posicionou animais da fauna planetária: leões, elefantes, rinocerontes e leopardos, bem como feras fabulosas: hidras, dragões, minotauros, pégasos, bestas etc. Mas para a surpresa dos espectadores, os pais, havia também homenzinhos maltrapilhos, casebres, árvores raquíticas e ruínas de edifícios. Também havia um castelo enorme feito de encaixes de peças de plástico que ele imaginou representar o palácio do imperador.
As cenas tinham se repetido por várias noites. O ritual que poderia ser ou tinha aparência de uma simples diversão lúdica, poderia estar exercendo conotações de uma perigosa alegoria. Naquela noite Serginho arrancou o cinturão e junto com os frutos de pinheiro atirou-os furioso pela janela do apartamento. Depois de olhar em volta de si e observar os brinquedos, inclusive o televisor, videogame e ventilador feitos cacos, vociferou alto: “Os cinturões não têm nenhum poder. Eles não são capazes de promover nenhuma mudança no mundo!”.