As engrenagens da máquina do tempo, outrora emperradas, pareciam correr agora além da normalidade. Aquela cidadezinha do interior não havia escapado da globalização, do avanço tecnológico, do aprimoramento dos veículos de comunicação, dos efeitos das bolsas de valores, enfim, do desassossego reinante em todo o mundo. Assim, muita coisa havia mudado, porém, alguns costumes próprios da terra, insistiam em manter-se vivos, e, dentre eles, as cadeiras nas calçadas no início das noites calmas e estreladas. Esse era o momento em que os vizinhos se reuniam para colocar a conversa em dia, como que cumprindo um ritual, antes de se recolherem para dormir. Naqueles momentos o tempo parecia retroceder a um ritmo tolerável. Fazia-se um balanço de tudo o que acontecia, e a fofoca, inevitavelmente, corria solta. O dia-a-dia das pessoas notáveis da localidade era dissecado, conjecturado e debatido nessas rodadas de prosa. Assunto não faltava para os senhores Zizo e Juca, compadres e amigos de longa data. Trabalharam juntos anos a fio na zona rural e agora, aposentados, moravam na cidade com suas respectivas famílias. Seus filhos e filhas já faziam parte de uma nova era. Nada de labuta na roça. Mesmo porque, as máquinas haviam substituído os braços humanos na lavoura, e emprego, quando tinha, restringia-se somente à área urbana. Era interessante notar como a convivência e o meio moldaram aqueles homens de uma forma toda peculiar. Pensavam e agiam da mesma forma e raramente havia discordância de opiniões a respeito de uma determinada situação. Poderia se dizer que somente o muro baixo que separava suas casas era o divisor de águas entre eles. A vida pacata de ambos resumia-se, basicamente, na cuidadosa e desconfiada observação daquela sociedade em ebulição, fruto dos tempos modernos e tema para conversas diárias.
Ninguém fugia aos olhos perspicazes dos dois compadres; nem mesmo o prefeito, o vigário da matriz, o sargento do tiro de guerra e, também, o professor Ariel, homem de letras, muito culto e respeitado na região, que passou a surgir como assunto freqüente no bate-papo, desde que enviuvou. Após viver por quase cinqüenta anos com a esposa, não guardou nem seis meses de luto para se casar novamente com uma menina de vinte e dois anos. Os filhos quase o mataram, ameaçando interditar os seus bens na justiça, mas, no final, a vontade do professor acabou prevalecendo.
Outro tema era Lilico. Jovem da terra, filho de pais abastados, havia deixado a cidade para estudar na França, aos quatorze anos de idade, e que retornou aos vinte, num começo de verão, completamente mudado. Passara a usar brincos, lenços de seda com cores vivas na cabeça, calças saint-tropez e blusas amarradas com um lacinho junto ao peito. Fazia das ruas uma espécie de passarela, por onde desfilava com passos curtos e um sensual requebrado das ancas.
Chamava a atenção o fato de como a pequena cidade, impulsionada pelo progresso, mudara radicalmente seus hábitos nos últimos anos. A cultura regional foi se descaracterizando aos poucos, notadamente nos festejos populares, como os tradicionais shows de violeiros no largo da Matriz, que perderam seu público para as músicas eletrônicas e rock, tão ao gosto da juventude atual. Os rodeios, os concursos de misses, as festas juninas, os campeonatos de futebol de várzea e as apresentações da banda no coreto da praça, já não faziam mais parte do calendário anual elaborado pela Prefeitura Municipal.
Tudo isso era de difícil assimilação para alguns cidadãos, reféns da incompreensível armadilha preparada pelo tempo. E dentre eles estavam os amigos Zizo e Juca, com suas reminiscências e filosofias, procurando entender o golpe que a vida havia lhes dado.
― Boa noite, cumpadre!
― Boa noite!
A passos lentos sobre chinelos de pano e cordas, os velhos companheiros se aproximaram arrastando suas cadeiras, e as juntaram sobre a calçada, nas proximidades da divisa das respectivas residências, para mais uma conversação rotineira, sob a fumaça densa e azulada dos inseparáveis cigarros de palha.
― Calor tá demais! Num tô cunsiguindo nem drumi direito!
― É... Tá brabo memo! E nada de chuva!
― Pois é...
― Pois é...
― O cumpadre escuitô a baruiera na casa do Lilico ontem à noite?
― Craro qui escuitei hómi! Percisei inté botá argodão no ovido pra drumi.
― É sempre assim. Só o pai daquele infeliz viajá qui ele faiz logo uma festa!
― E cada festa isquisita, né cumpadre?
― Nem mi fale... Só entra hómi! Parece inté cantina de exército!
― É... Diferente dos baile lá da roça, lembra?
― Si mi lembro... Metade era hómi e metade muié e a gente si divirtia, num é memo?
― Tempo bão... Mas, vortando ao assunto. O cumpadre não acha istranha essas roupa qui o Lilico usa?
― Si acho! Parece pirata com aqueles brincão de argola na oreia e aqueles lenchinho na cabeça...
― É... cumpadre... Mas acho qui ele não é pirata não... Acho qui ele é aquele negócio de hómi sexuar qui o pessoar fala.
― Tamém tô achando. É tudo coisa dessa tar de modernidade...
― Cumé qui é cumpadre?...
― Modernidade!
― Ah é... Modernidade...
― Mais, mudano de pato pra ganso. Como o professô Ariel tá diferente, não, cumpadre?
― Si tá... O hómi tem setenta e cinco ano e tá si vistindo qui nem um mocinho!
― Pois é... Acho qui a viuveis feiz bem pra ele!
― Num sei não... Acho qui ele exagerô na dose arrumano aquela muiézinha nova...
― Di fato... É muita areia pro caminhãozinho dele!
― Pra mim ele num tá dando conta do recado em casa...
― Mais o cumpadre sabe qui agora tem o tar do viagra, num sabe?
― Sei... Mais acho qui esse treco num tá fazendo efeito pro professô não...
― Ora cumpadre, mais pru quê?
― Pruque mi dissero qui toda noite ela sai de casa com um garotão...
― E o professô?
― Falaro qui ele num liga. Dissero inté qui ele fala pra todo mundo qui prefere dividi um filé minhão com otros do que cumê carne de pescoço sozinho.
― Qui maluquice!
― Nem mi fale!
― Urtimamente tem nascido mais chifre por aqui do que tiririca!
― Modernidade, né cumpadre?
― Pois é... Modernidade...
― O papo tá bão mais acho qui já vô indo. Vô tentá drumi essa noite.
― Tamém... Hoje parece qui o Lilico tá carmo, né?
― Tomara, cumpadre. Até mais vê intão.
― Até mais vê.
Após a despedida, foram para suas respectivas casas carregando as cadeiras. Zizo, ainda remoendo os assuntos abordados naquela noite, encontrou a esposa já na cama, porém, ainda acordada. Aprontou-se para dormir e, ao deitar, foi surpreendido com uma pergunta da mulher:
― Meu véio... Tava aqui pensando em nóis... E mi deu vontade de ti preguntá uma coisa...
― Pois pregunte, minha véia.
― Sei lá, deve ser bestera minha... dexa pra lá.
― Di jeito nenhum. Agora ocê tem qui falá.
― É o seguinte: ocê tem sido tão bão pra mim tudo esse tempo e eu num sei si tô sendo boa pro cê no memo tamanho.
― Como assim minha frô di maracujá?
― Eu gostaria de ti dá um presente como essas muié moderna faiz. Só pra ti agradá.
― Num carece nada disso, morena...
― Mais diga meu véio: quar o presente qui ocê gostaria qui eu ti desse?
― O presente qui eu gostaria ocê já mi deu.
― Quar é?
Zizo passou a mão discretamente pela testa sentindo a pele lisa e sem nenhuma protuberância, virou-se para o lado da esposa, abraçou-a com ternura e sussurrou em seu ouvido: