O tio Galhano e a tia Galhana constituíam um aguerrido casal mindelense, feito daquela cepa onde um médico não era chamado para coisíssima alguma. Os dedos das mãos de ambos pareciam-me troncos de bonsai. Moravam na Estrada Nova, uns metros adiante do Camilo, que era um garajeiro que levava aos miúdos um-escudo por uma hora a andar numa bicicleta de adulto com uma das pernas enfiada no quadro.
Ele, agricultor e carvoeiro, e ela, mulher de casa, de lavoura e vendedeira de peixe, tinham três filhos, uma rapariga e dois rapazes, um deles atingido à nascença por maleita que lhe deu prá vida pose e jeito de Quasimodo.
Desde a infância à alvorada juvenil, fui estreito amigo, e por alguns meses companheiro na escola, do filho escorreito, o António. Ele atraí-se por mim porque eu era um menino-da-cidade com bola de borracha, e eu atraía-me por ele porque o pai tinha um cavalo-marrano que era uma delícia andar-lhe sobre o dorso e inopinadamente ser repelido para cima de uma sebe.
Abaixo do cavalo, na brincadeira, creio que fui tantas vezes como na vida a sério, embora dois anos mais tarde aprendesse a montar como era preciso no quartel da GNR no Carmo.
O Tio Galhano, a pé ou a conduzir a carroça, onde eu e os outros miúdos à sua passagem «íamos-de-guna», usava um boné de pala caída sobre a testa e tinha o hábito de pendurar a jaqueta num dos ombros. Nas tascas da Amélia, do Pisco e da Burrachinha, da minha tia Balbina, besuntou-me várias vezes a cara com aquele verde-tinto-pintor que atirava para a valeta quem ousasse pintar-se de mais.
A tia Galhana, de lenço florido na cabeça e de faixa cingida à cintura, por cima do avental, para não render ao fazer força, chamava-me, introduzia presunçosa a mão na algibeira e dava-me um rebuçado-da-tosse. - Anda, toma lá, «ó-da-Maria», chupa que te faz bem.