O sol emergia no horizonte, hora em que as flores do jardim davam à luz sementes, que carregadas pelo vento, levavam vida aos mais distantes campos. O dia renascia, assim como minhas esperanças no futuro. De chinelas, ainda sonolento, liguei o carro e deixei a garagem, precisava buscar pão para as crianças. E lá fui àquela padaria do centro.
Ao chegar, fechei o carro, inspirei o ar da manhã e acompanhei o pouso de uma pomba, daquelas bem branquinhas, que vez ou outra aparecem esculpidas em bandeiras de organizações mundiais, tentando levar a paz a países em cuja estupidez da guerra nasceram, cresceram e morreram os filhos. A bela pombinha trazia no bico o alimento dos filhotes e, pelo arrulhar inquietante, estavam mortos de fome.
– Tio, tem um trocado? - perguntou-me um pivete de uns sete anos, aproximando-se. - Tem, tio? Tô com fome!
Ainda que surpreendido com a abordagem àquela hora da manhã, compadeci-me daquele corpo franzino, que envolto a panos de chita expressava o descaso da humanidade.
- Como se chama? - indaguei, ressabiado.
- Joãozinho, senhor! Por favor, me ajude! Preciso de uns trocados...
Senti-me, repentinamente, um pouco culpado por sua dor, afinal, crianças como ele estavam por toda parte, caídas à margem de nossos pés, comendo nossos restos; mesmo assim, permaneciam invisíveis aos nossos olhos.
- Trocado? Cadê seus pais?
- Meu pai tá preso, nem o conheço; minha mãe tá em casa! Me ajude, moço!
– Não prefere um pão doce ao invés de dinheiro?
– Prefiro uns trocados... Minha mãe precisa comprar leite!
– Venha comigo, eu compro o leite, daí você o leva para casa. Sabe, me desculpe, mas não sou adepto à idéia de que criança deva carregar dinheiro... Leve o leite, dou de presente!
– Não... se puder me dar o dinheiro, seria melhor! - disse, em meio a uma voz fininha, então ameaçada pelo choro.
– O que foi? Disse algo errado? Por que quer chorar?
– Mo-ço, tô com fo-fo-fome! Mui-ta fo-fome!
Peguei-o pela mão e o arrastei para dentro da padaria, queria logo saciar sua dor, algo que desconhecia em tese. Depois de muita insistência, ele comeu um pão com mortadela e bebeu uma xícara de leite com café. Comeu de dar gosto! Parecia um daqueles bichinhos de estimação que temos, e que ao chegarem ao nosso lar, encostam-se a algum canto e lá permanecem até o medo ceder às carícias. Parecia apenas, porque ao meu lado, sentado em uma cadeira giratória de padaria, sob os olhares alarmados dos curiosos, não estava um bichinho, mas anjinho. Um anjinho perdido!
Terminado o café, despediu-se de mim, levando debaixo do braço um litro de leite e um saco com pãezinhos. Eu estava com a consciência leve, sei que o que fiz foi pouco, mas se todos o fizessem, menos crianças estariam em condições degradantes como a dele, menos crianças sobrariam nas praças e becos; elas estariam em suas casas, contando com a segurança de pais, mães e irmãos, curtindo a vida numa boa.
Comprei o que precisava, peguei o carro e parti, sorrindo com meu gesto; ao virar a esquina, meu sorriso, como espelho, despedaçou-se diante de uma cena horrenda. Joãozinho gritava, caído no chão, ao redor de uma senhora de meia idade. Com uma das mãos, ela o espancava e com a outra segurava um bebê de alguns meses, também aos berros.
– Não quero porcaria de leite e pão algum, quero é dinheiro, seu tolo. Como vou comprar uma pinga com esse lixo de comida? - vozeava a mulher, como se estivesse possuída por algo... E estava! Pelo vício!
Agora compreendia a atitude de Joãozinho ao preferir o dinheiro ao invés da comida. Aquela vozinha de choro, enfim, revelava seu segredo. Minha vontade era parar o carro, dar uma sova naquela mulher, mas... não tive coragem! Fiz como muitos, virei as costas e fingi que eles eram invisíveis! Doeria menos!
Como a pomba, voltei para casa, levando o alimento das crianças e a esperança de que alguém fizesse algo para mudar aquela vil realidade. Algo que a covardia me impedira de fazer!