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Contos-->SETE MARIAS:SETE AGONIAS -- 02/11/2007 - 00:10 (Joel Pereira de Sá) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Maria, simplesmente Maria. Maria como todas. Maria filha, Maria mãe, Maria esposa. Maria sedutora. Maria mãe dos homens, mulher e procriadora. Maria, estrela do mar. Maria, a luz que ilumina a humanidade, a redentora. Maria com desejos. Jovem ansiosa. Sonhos e ilusões aflorando aos borbotões. Consulta a buena-dicha de uma cigana ou a profecia do realejo.É alegre como uma flor, sempre a entoar canções. De menina auspiciosa a jovem apta a amainar as mágoas. De adolescente fértil e chã a mulher preste a navegar por todas as águas. Já é esposa, Maria. Maria como milhares. Ouvida e não entendida. Desentendida e pouco ouvida. Útero planetário. Ventre inflado. Ventre partorial. Colo vazio. Ovário a conceber tantas crianças. Útero que irá alimentar por uma novena de meses sete alminhas. Todas elas a esperar como a mãe. O pai na expectativa. Serão tantas almas germinando cronologicamente. Quantos filhos serão? Ainda não se sabe. Só Deus e a virgem Maria. Santa Maria, para quem Maria reza sete ave-marias todas as noites ao dormir. Ave Maria cheia de graça. Que a mesma graça se derrame sobre a alma e o destino de Maria. Santa Maria mãe de Deus, rogai por mim.
Maria adormece. Seu colo intumesce. Deixou de ser um colo vazio. Foi concebida uma alma em seu útero. Há lá uma vida. Santa Maria seja louvada. Maria seja abençoada. Ela está perplexa. Jorra sangue o seu útero. Aquele sangue ainda não presta. Lá não há mais vida. O sangue mancha o lençol. As lágrimas molham o rosto. Rói o peito e a alma de desgosto. O marido a incrimina: Você não rezou, Maria! E aquele corpo de menina mal se deu por entendida. Pelo marido foi ofendida: “nosso filho não escapou. A oração que tu fizeste foi o demo que a contemplou. O mau espírito entrou em teu útero e matou o nosso filho querido, por isso ele não nasceu. Tu não fizeste a oração qu’é n’intenção a Maria, digo, a Maria Santíssima, aquela qu’é mãe de Deus. Ao pai Celeste tu desobedeceste. Não pagaste as promessas que o padre mandou pagar. Não acendeu as velas para as almas alumiar. Não ungiu os teus pecados com a água benta da igreja. Gastou mal o meu dinheiro. Agora... amém, assim seja. Antes de tocar o sino levantou sem se benzer. Cometeu muitos pecados contra Deus e contra o mundo. E aí o nosso filhinho, dentro de tua barriga, se tornou um moribundo. Não foste capaz de ser pura como Maria, a mãe de Deus, a sagrada mãe de tudo. Agora, Maria, tu vais conceber do teu ventre sete criaturas. Serão todas Marias. E terão nomes sagrados para que a pecha do pecado não as amaldiçoem. Terão o símbolo da natividade como Maria, a mãe de Deus, para que o demo não as alcance. Sete partos, Maria. Sete dores de parição. Sete sentimentos fortes. Sete rumores e comoções. Ah! Agora, não sei não. Se puxarem elas comigo benditas elas serão. Se não forem geradas por mim, pela eternidade sofrerão!” Maria entristece. Cheia de planos que fora, agora ela é só percalços. Seu espírito se comprime entre várias desventuras. As filhas vão nascendo, a cada ano uma menina, cheias mimo e candura. No primeiro ano uma. No segundo outra. Lágrimas torrenciais. Terceira prenhez, outra menina. Novo pranto abundante e um trabalho a mais. Novas lamúrias, novos desentendimentos, novo desencanto. O casal já não é mais amigo. Nem, Deus nem a Virgem Maria os protegem. O ódio os domina. O capeta os persegue. A infelicidade se apropria do lar deles. A cama não mais os une. Chora uma menina. Em seguida outra chora. A terceira as acompanha. O desassossego aflora. Nascem mais crianças. Meninas e mais meninas. Sete Marias como a mãe delas, como a mãe de Deus. Benditas e bem nascidas com a graça de Maria, a Santíssima. O mundo as espera. A vida prepara as armadilhas, a sorte ou o infortúnio. O jeito é suportar e saber superar. Correr para recuperar a infelicidade que as retém. Não é somente olhar o horizonte. Caminhar sem destino além. Esperar do céu o maná. Esbarrar aqui e acolá. O Diabo já não os vislumbra e o infortúnio deixou de ser trivial. E a vida percorre o seu curso habitual. Rolam pedras. Arrastam-se areias. Formam-se os burburinhos, os redemoinhos, os terremotos, os tissunamis. O mundo segue seu ciclo nos mais diversos corpos. Flui conforme os fenômenos. A lama desenha os mais lindos grafites. Uma pomba branca adeja do peito da mãe. Um anjo acompanha a trajetória de cada criança para fazê-las benditas perante Deus e perante o mundo. O pai emite um suspiro longo. Não vê luz no fim do túnel. Ali tudo é desespero. A carne dói sob a lanceta. O humor não os atinge. A alegria não os alcança. Mais um gole de café. Mais um cigarro aceso. Mais uma tosse, uma bronquite ou uma tuberculose. Um impiedoso câncer de pulmão. O túmulo frio. O clima da casa está sombrio. Maria que seria sagrada se não fosse violada, cai em profunda comoção.
As sete Marias não rompem com o destino que devem herdar. Uma espera incansável. A primeira filha vem para dar mais esperança. Aparece uma Maria. A sua concepção é o início da família. Uma estrutura terá. Um liame formará. É Maria Aparecida que aparece em boa hora. Ela trará a harmonia, semeará alegria. O diálogo é retomado. O casal, um lado a lado. A conversa em redor da criança que acabara de nascer. Maria Aparecida com o rosto ainda túmido. Estranha ainda neste mundo, faz a relação florescer. Apareceu no momento em que seus pais não mais criam nas venturas. Um poço de formosura. Tantas rezas, tantas promessas. Tantas velas e terços. O padre já se irritava. Para que tanto esforço se Deus nem sabe a devoção? Deus nem reconhece que há fé, nem o mal nem o perdão. Muito mau vocês farão. Todo mal à humanidade ou mesmo às vossas filhas que um dia ao mundo virão. Sem saber o padre era o anjo da anunciação. O marido todo perplexo caiu numa reflexão. Com o tino das mulheres, Maria é mais sagaz. Sente que seu útero é fértil. Sete meninas ele traz.
Maria Aparecida apareceu p’ra fazer surgir nova esperança. Dois adultos, uma criança. O marido em Maria já não tinha confiança. Tens mesmo um útero seco, amaldiçoada és tu! Nem para parir és capaz. Um filho me prometeu, homem que nem o pai. Para ser meu companheiro fosse na guerra ou na paz. Para ser o meu herdeiro, o meu primogênito. O protetor do meu lar. E na falta do seu pai pudesse a todos amparar. Agora uma mulher. Qu’é que eu vou fazer com ela? P’ra que ela vai prestar? Vai fiar e fazer renda e servir de espiadela para os homens enxeridos. Que desgraça que castigo! Só falta nascerem sete para completar o augúrio. Eu vou me meter nas brenhas dos garimpos e dos canaviais. Posso até morrer de fome, mas aqui não volto mais.
Maria, mãe se lastima. Maria, a filha chora p’ra mamar. E do peito seco da mal alimentada Maria o leite não quer jorrar. Desanimada e triste Maria põe-se a chorar. Que fazer com a menina que não tem o que comer? Nem lenha tem p’ra acender, nem linha tem pr’a fiar. Não tem fogo p’ra abanar. Não tem fazenda pr’a coser. Não tem dinheiro pr’a ganhar. Nem rango tem p’ra comer. O marido está tão longe. Deixou todas ao desprezo: Maria, mãe e esposa e a filha Aparecida. Aquilo não é marido, é um pai desnaturado. Um sujeito desalmado. Sem caráter, sem pudor. Elemento destrambelhado. Talvez até tenha motivos para tratar com desafeto. Em outros tempos fora honesto. Tratava as coisas com acerto. Não devia ao açougueiro, não usurpava os outros. Não comprava leite sem pagar. Nunca fazia arruaça. Nunca bateu em ninguém, nem na mulher nem nas filhas. Mas vontade ele tem. Só nunca o fez porque um estranho o advertiu um dia. Se levantasse um dedo em direção a Maria. Ai, ai, ai quero nem ver. Agora o pau vai comer. Inté hoje me arrupia. O que o homem falou fez todo o mundo espantar. Condoído por Maria e a filha Aparecida o estranho empenhou-se em manter a harmonia que antes não existia nem em casa nem na rua. Esta mulher não é tua pr’a se condoer assim. Vem agora, bate em mim. Cabra do diabo, azarento. Filho de um, jumento. Caboclo feio, safado! Eu desconfio que tu devas estar enrabichado. A mulher que jurou ao padre ser por toda vida minha. E depois de ela parida tu vieste de fininho de lá do oco do mundo para poder infernizar a vida de um bom sujeito. Agora eu num arrespeito um cabra desonrador. Vem arrastando as asas pr’a todo rabo de saia. Minha mulher é uma lacraia. A mulher com quem casei e na frente de seus pais e do padre eu jurei. Sei que fiz o diabo com ela. Mas meu amor foi todo dela. Quis ter muitos filhos com ela. Hoje eu sei que me enganei.
A cada ano Maria adquire uma gravidez. Cada gestação de um pai. É grande a insensatez. A mulher não consegue se conter ou usar contraceptivo. Todos os homens lhe atraem. Todos para ela é marido. Acha todos os homens bons. Eles dão prazer e mais nada. Nem uma pensão minguada eles vêm lhe oferecer. Agora o que ela precisa é trabalhar para sobreviver. Mas trabalho está difícil. O padeiro não lhe quer. O quitandeiro já disse que não trabalha com mulher. O português do empório: “arrenego esse malefício”. A única coisa a fazer é ela se meter na zona de meretrício.
A segunda filha é Maria da Anunciação. Menina bonita e forte. Nascida de oito meses teve uma tremenda sorte, pois uma forte hemorragia quase a leva, ela e a mãe, à morte. Anunciação viria anunciar nova era. Uma vida diferente sua mãe sempre quisera. Uma incerteza, porém, a deixava ansiosa. Sem saber o que fazer entregava-se mais à prosa. E quando se deu conta estava outra vez gestante. Anunciação ainda sugava o peito estafante. Quase não encontrava leite, chupava só para enganar. Daquele dia em diante não podia mais mamar. O nome da próxima menina foi Maria dos Prazeres. Teria que ser a última, teria que dar prazer. Do jeito que a vida estava não dava para viver. Por isso foi que Maria decidiu se entender: dali em diante, jurou, não iria se entreter, entregando-se a qualquer homem. Não daria seu corpo em troca de qualquer dinheiro. Se tivesse vontade se absteria primeiro. Amarraria uma tira de couro da virilha ao traseiro. A cinta de couro é frágil, não é de couro de boi. Maria foi a um piquenique. O dono de um alambique lhe deu uma dose de aguardente. Isso foi o suficiente para a cinta se quebrar. Maria abriu as pernas e voltou a engravidar. Chamou-se Maria das Graças a menina que nasceu. Maria estava exangue, mas o ânimo não perdeu. Queria todas as graças da Virgem Maria e de Deus. Não queria mais cair em nenhuma tentação. O nome daquela filha foi um sinal de devoção. Ficou sete meses recolhida em casa, enclausurada. Parecia uma monja que não pensa mais em nada a não ser na penitência, como uma alma penada. Nem parecia Maria, aquela mulher fogosa. Ora, ora, seu menino. Sujeito, deixe de glosa. Maria, aquela histérica não vai ficar sem amante. Pois de hoje em diante vocês vão ver a bagaceira. Um ambulante da feira já estava de olho nela. Duvido que ela recuse. Sabe como é a danada. Louca por uma salada ela vai ficar babando. A dieta ‘tá acabando e a filha está crescida. Ela sai da hibernação e o feirante é o da vez. Eu num dou nem mais um mês pr’os dois estarem amigados. De fato, o fato se concretizou. O feirante fez a proposta e Maria aceitou. A mulher, na realidade, precisava de guarida. Já não podia ficar muito tempo naquela miserável vida. Passando necessidade com quatro filhas pequenas. Quatro crianças indefesas que não sabem se cuidar. Precisavam de alguém que pudesse as amparar. Mas o feirante não contava com aquela carga inteira. Pensou que Maria fosse uma mulher solteira. Deixou-a com suas filhas e caiu na buraqueira.
Prenhe outra vez Maria não sabia o que fazer. E agora mais uma filha para dar de comer e beber. Apelaria outra vez para a Virgem Maria Santíssima. Talvez ela intercedesse em sua triste história. Aí resolveu botar o nome da menina de Maria da Glória. Oxalá daquela vez a glória a alcançasse. Talvez o poder divino o seu fogo apagasse. Por muito tempo Maria ficou sem pensar em ninguém. Não queria tocar em homem nem por uma nota de cem. Nem por um maço de dinheiros iria com eles para a cama. Não iria outra vez se sujar na mesma lama. Não passaram muitos tempos para Maria se iludir com a sedução dos homens. Sua nova promessa ela não conseguiria cumprir. Desolada ela chora. Será que o fogo não se apaga? Esse tesão diabólico não vai embora? O cão me fustiga a vida inteira. Eu não sou mulher rameira para transar com todo o mundo. Ó meu Deus, que absurdo. Não vou mais cometer pecado. Posso até pôr o meu corpo para ser supliciado. Nem que fique a vida inteira exposta à expiação. Sei que a prostituição é uma coisa imoral. Quero arranjar um marido e casar no oficial. Casar com ele na igreja, mesmo que esse homem seja pobre que nem um mendigo. Espero que minha vida um dia tenha sentido.
O mundo de Maria agora está voltado para si mesma. Cuida só das cinco filhas e nada mais. A vaidade é coisa que ficou para trás. Com quase vinte sete anos o que pretende ter agora é paz. Mas nem sempre as coisas andam conforme o planejado. Um moço que vem de fora se instala numa casa ao lado. Na mesma tarde que chega para Maria é apresentado. As feições meigas da moça logo encantam o sujeito. Ela não quer se envolver, mas sente algo no peito. É uma forte atração e ela vê que não tem jeito. Seu desejo é incontrolável, é um desejo infrene. Seu colo palpita forte e seu lábio todo treme. Vai se entregar de novo. Vai para a cama com o cara. Tinha que matar a sede e saciar sua tara. Por mais que tente a concupiscência é um gatilho que dispara. É como uma doença que nenhum remédio sara. O moço que agora está com ela é prestativo. Oferece muito amparo como um legítimo marido. Porém ainda não era esse que ela devia ter escolhido. Pois dentro de poucos dias Maria estava gestante. O cara ficou sabendo e fugiu no mesmo instante. Ela tinha dito que a partir dali macho que a tocasse pagaria o atrasado. Não importava com quantos homens já tivesse se deitado. O homem sem querer multa correu todo assustado.
Maria do Desterro foi o nome da menina que nasceu. Era para ver se espantava todo mal que aconteceu. Maria, porém, entendia que todo erro foi seu. O mal não foi desterrado, ficou por meses suspenso. Quando numa noite um homem lhe acenou com um lenço. Ela disse: bonitão, a ti hoje eu pertenço. Era um rapaz elegante, formado em engenharia. Confessou que num instante se apaixonou por Maria. Queria casar com ela e levá-la em sua companhia. Ele viajava muito. Trabalhava com minérios. Quanto a ser desimpedido, dizia não ter mistérios. Era homem de verdade, queria um caso sério. Era um cara maduro. Com quarenta anos ou mais. Foram logo morar juntos e em nove meses nasceu Maria da Paz. Maria, a mãe queria que sua vida mudasse. Com sete filhas sabia que a coisa não é tão fácil. Queria muito ter um homem que ao menos a respeitasse. No entanto, com o engenheiro estava tudo dando certo. Naquele mundo louco ela precisava de um bom começo. Não era só moradia e comida, era amor e apreço. Para ela era o início de uma vida decente. As outras filhas não eram suas. Ele estava ciente. Ia pôr todas na rua. Ia deixar só Da Paz que era sua descendente. Depois disso em vez de paz, reboliço. Maria se sentiu traída. Para não perder o marido e as filhas procurou uma saída. O sol agora já não brilha. A lua não encanta mais. Não foi Maria da Paz que veio trazer tumulto. Foi um homem sem escrúpulos, sem dó e sem sentimentos. E agora, como eu agüento sem minhas filhas comigo? É um castigo? E por quê? Ninguém merece sofrer. Todos merecem amar e ser amados. O homem com quem ela tinha casado não era a pessoa indicada. Embora tivesse dinheiro, ele não tinha mais nada. Sentimento nem bom senso. Era uma pessoa desmiolada. Homem rico de instrução, porém muito desalmado. O que fez com as crianças foi um caso inusitado. Um vizinho de Maria comovido com aquilo apanhou as seis crianças e conduziu-as a um asilo. Mas ali só ficariam até que se resolvesse o impasse da genitora. No mundo ainda há algumas almas salvadoras. Apiedadas com o infortúnio das pequenas sofredoras decidiram dar abrigo por indeterminado tempo. Agora a mãe sem alento é impedida de sair. Não pode ir fazer compras. Não pode falar nem sorrir. Sua vida o engenheiro agora vai destruir. A beleza de Maria aos poucos vai dissipando. A ausência das meninas com rapidez vai colocando palidez no sorriso. Ela vive só chorando. Está a perder o juízo.
Maria do Desterro cresce com muita perseverança. O engenheiro diz a Maria: não sou pai desta criança. Tu tiveste tantos homens. Acostumaste na festança. Deve ter engravidado de algum homem na dança dos bailes em que freqüenta. Volta lá, vai procurar um deles que te sustenta. Eu não vou querer saber de filhos dos outros, dessa renca. Essa galeguinha aí deve ser filha do penca. Maria era mulher de uma rara beleza. Os vinte e sete anos não tiram sua forte sutileza. Os episódios negativos deixaram sua vida pouco acesa. Apesar dos muitos partos, Maria era bonita. Quando saía na rua com uma saia justa de chita os homens olhavam curiosos e diziam: ó, como ela fica! As suas coxas roliças, as nádegas proeminentes. A cintura bem moldada e a pele reluzente. Cabelos longos e lisos. Lábios carnudos e sorridentes. A leveza e a meiguice esboçadas por Maria, às mulheres simpatizava, aos homens ela atraía. Em nenhum momento, mesmo com raiva seu rosto se enfurecia. Aos momentos de tristeza Maria sabia dar o tom de disfarce e irreverência para as coisas não acabar em desânimo. O mundo dela era diferente do que os outros podem achar. Casara-se muito jovem e veio a engravidar. A primeira filha veio logo, mas não fez com que o fogo da volúpia viesse se apagar. Talvez por falta de afeto e fosse pouco acariciada, Maria não se sentira totalmente saciada. Também sempre quisera aos homens satisfazer. Era uma maneira de procurar se entender. Não que fosse sem caráter, muito menos sem pudor. Queria encontrar ainda o seu verdadeiro amor. Na situação do momento o que ela pretendia era proteger sua prole. Suas crias que cresciam e precisavam ser educadas. Como se sustentariam, onde seriam criadas? Maria agora passava por uma fase delicada. Não conseguia ela andar dentro de sua própria teia. A aranha que ali se alimentava virou uma presa. O mundo cairia sobre suas costas. Todos a censuravam como mulher libertina. O povo queria levá-la à guilhotina. Mas ela era uma criatura sujeita a todas as carências. E não era de ficar fingindo as aparências. O que ela sentia era manifestado voluntariamente. Não sabia esperar sequer um momento. A fome quando ataca tem que ser saciada. Tinha defeitos e qualidades, mas tinha que ser amada. Cometera erros, sabia muito bem. Procurara agradar aos homens até encontrar alguém que a amasse, valorizasse, compreendesse. Mas os homens interpretaram de outra maneira seu interesse.
Maria está pesarosa. Quanta coisa aconteceu, boa e má. Não adianta se queixar. Tinha feito o diabo p’ra acabar com aquele traste que dizia ser marido. Muito tinha lhe traído. Transara com um pescador. Encontrou-o tecendo rede ali na beira do rio. Naquela tarde fazia frio e ela se encolhia. O pescador disse: Maria. Vem aqui se aquecer. Posso até ser meio feio, mas eu não vou te morder. Quer dizer, se quiser eu dou mordidinhas. Não fique com medo de mim. O fogo tão quentim que nem dá vontade de arredar. Chega aqui, vem conversar. Tu andas muito cansada. Também ‘tá preocupada com os fuxicos deste lugar. Ora, se o fogo não der conta eu mesmo posso te esquentar.
A cabana parecia estar pronta para uma recepção sensual. Maria resfolegava com uma ânsia bestial. A virilidade do pescador era uma coisa descomunal. Os dois fizeram amor até anoitecer. Maria sequer lembrou que suas filhas precisavam beber. Esqueceu-se que tinha vindo ao rio apanhar água e não se envolver com um aventureiro qualquer. Com um homem que não sabia de onde tinha saído, se era casado, se tinha mulher. Mas ela concluía que era gente. Mulher bonita e concupiscente. Toda mulher quando é normal, ou quando não está doente necessita de carinho, de afeto e de amor. Maria não se acalmou. Procurou matar sua sede. Encontrou um pescador que tecia uma rede. Ele era tão robusto e varonil que ela nem teve dúvidas. É com este que eu vou satisfazer meu intento. Meu marido está imprestável, quase morto, impotente. Como é que fico eu, uma mulher ainda jovem? Sem homem eu não agüento. Meu fogo ainda aflora. Eu não vou jogar fora a chance de matar o desejo que está a fustigar. O meu marido em breve vai se acabar. Ele se entregou ao vício. Ah! Aquele estropício fez tudo p’ra me matar. Mas o fumo e a cachaça foram capazes de tragar a vida do infeliz. Agora ele vai pagar todo o mal que a mim fez. Eu num dou mais nem um mês. Ele vai bater as botas. E aí vai prestar contas ao diabo no inferno. Aquele excomungado vai me deixar aliviada. Foram tantas as presepadas que ele aprontou comigo. Foi um péssimo marido. Foi um atraso de vida. As minhas filhas queridas é somente o que eu tenho. Nesse traquejo que venho não vou durar muito tempo. Nesse mundo que é ingrato eu quero romper com elas. Vou viver do lado delas uma vida de alegria. Dia e noite, noite e dia. Vamos ser afortunadas. Minhas filhas são dotadas de talento e inteligência. Vão ocupar a gerência de uma empresa importante. Aguardem só um instante que vou falar de todas elas. Não digo que são donzelas, mas são puras que nem flor. Eu já senti muita dor. Mas de agora em vante não vou ser mais descuidada. Não vou deixar passar nada. Juro por este sol brilhante.
Um rico comerciante por Maria se afeiçoara. Era um homem próspero que na cidade se instalara. Uma empresa, um capital. Pronto para progredir. Seu grande negócio ele montou. Com seu carisma Maria logo o conquistou. Para ela se desenhava um futuro promissor. Até que enfim, Grande Deus, para minha família olhou.
As meninas de Maria cresciam tal qual bananeira. Lindas, ágeis e prestativas. Cuidadosas e criativas não se atinham em asneiras. Sete Marias, sete jóias lapidadas as quais requerem assistência para não serem extraviadas. Para não cair em desdita, Maria, a mãe sempre aflita. As Marias estão crescendo e a beleza despontando. Aparecida com treze anos a puberdade vem anunciar-lhe a mocidade. Maria da Anunciação ainda não tem idade. Com Maria dos Prazeres nina Maria das Graças. Maria da Glória com ciúmes belisca Maria do Desterro. Deixá-las sozinhas é um erro que Maria, a mãe não comete mais. Por isso leva ao colo a pequena Maria da Paz.
A vida é como um rio em leito acidentado. Ora flui em corredeiras, ora em terreno aplainado. Pois o caso de Maria é assim pronunciado. Tinha alcançado, no entanto, certa estabilidade. O homem que conhecera, cheio de prosperidade. Com certeza, desprovido do mínimo de falsidade. Garantiu que assumiria por toda vida Maria. Amou-a e toda noite com ela a bailar saía. As filhas que eram muitas nem sempre com eles iam.
Maria Aparecida já mocinha é muito bela. Os moços da vizinhança todos são loucos por ela. Simpática e atraente tem personalidade singela. Namora ela a um rapaz que veio de outro lugar. Maria, a mãe lhe diz: cuidado, para dos limites não passar. O marido se intromete, dizendo: deixe os meninos. Deixe-os namorar, se beijar e trocar mimos. A vida foi feita mesmo de delícias e de carinhos. Apesar de estar bem a mulher sente agonia. As filhas que ela pariu andam muito arredias. Será que aquilo tudo é um castigo p’ra Maria? Ela é que muito sabe: é em pessoa o sofrimento. Representa as mulheres sob o vasto firmamento. As dores do mundo lhe atingem e ninguém se apraz do seu lamento. Maria Aparecida anda fora do normal. É bem provável que tenha mudado o seu astral. Com a idade, é claro, há de vir outras idéias. Ninguém espera que o mundo se torne uma panacéia. Mas não se fica toda a vida com o mesmo trivial. Mudanças são rotativas e próprias de cada idade. A mãe não quer que as filhas seja um escândalo para a cidade. Não quer ter o nome delas ligadas a qualquer maldade.
O tempo é um catavento: não espera por ninguém. Quem quiser se atropelar é só embarcar nesse trem. Se não viajar a seu modo vira carne no moquém. Com tanta coisa má e boa que Maria tinha passado ainda não entendera qual era o significado. Quis forçar às suas filhas a viver sempre a seu lado. Maria Aparecida emitiu um grito de medo. Disse que dentro do quarto alguém lhe passou o dedo. Daquela noite em diante não teria mais sossego. O marido de Maria seduzira a enteada. A garota casta e bela foi por ele assediada. Entretanto, Maria, a mãe ficou muito encafifada. Julgou ser de Aparecida toda a provocação. Disse que fazer injúria é uma coisa sem perdão. Caso grave não se inventa de um honesto cidadão.
Decepcionada Aparecida dali desapareceu. Apanhou algumas roupas, nenhuma notícia deu. Disse para uma amiga que ali não mais voltava. Falou também para ela não dizer onde estava. Então o lar de Maria virou uma ebulição. A próxima a rebelar-se foi Maria da Anunciação. Anunciou que faria uma longa excursão. Onde é que vais, menina? Quis saber a mãe Maria. Tu não és religiosa p’ra seguir a romaria. Aliás, nem rezar sabe para acompanhar a homilia. Mas quem respondeu por ela foi Maria dos Prazeres. Jogou a louça para um lado, deixou todos os afazeres. Disse: com prazer ou dor eu vou deixar todo o temor, vou-me embora, podes crer. E de sopetão entrou a linda Maria das Graças. A mãe já estava em desgraça por causa da má criação. Ela sem hesitação disse: mãe eu também vou. Aqui é uma casa de horror! Eu já estou por aqui, sem graça para sorrir. Sem vontade de viver. Sei que saindo daqui é que podemos aprender. A senhora é nossa mãe, mas não sabe nos compreender. A pobre Maria já estava com um lapso de memória. Eis que dentro de instantes entra Maria da Glória reclamando com a mãe sobre a vida irrisória. Também disse que queria sumir daquela morada. Para glorificar seu nome seguiria longa estrada. Pegou seus poucos pertences e partiu em debandada. Só faltavam para Maria as suas filhas menores. Também revoltas com ela dariam golpes maiores. Pois vão se ver comigo, vejam senhores e senhoras. Maria da Paz estava num canto com Maria do Desterro. Cochicharam bem baixinho: não vamos cair em erro. Quando mamãe descuidar, como não há outro lugar, fugiremos pelo aterro.
Maria estava inerte, exposta ao intemperismo. As filhas todas banidas entregaram-se ao ostracismo. Um soluço profundo é expirado do peito. Chora e se lastima, cai trêmula no leito. As filhas fizeram tudo que ela já tinha feito. Será castigo, meu Deus?! Oh, minha Santíssima Virgem! Sofre uma rápida vertigem e o marido a consola. As menores nem dão bola e vão saindo de fininho. Tomam um oculto caminho e longe tentam a sorte. Se for vida ou será morte saberemos num instantinho.
Todas as pragas rogadas pelo marido, o primeiro, caem como um corisco. Rolam como uma pedra atirada ao despenhadeiro. Só se ouve o ruído do marulhar incandescente. Um frio silêncio cortante e uma cantiga dolente. Todas as dores do mundo Maria agora sente. Parece que os pecados todos ela cometeu. É como a história de Cristo que um dia padeceu. Morreu pregado numa cruz que ele nunca mereceu. O fato é que as máculas p’ra quem faz são sem efeito. Quando se comete um erro não se percebe direito. Para o pecador ele é o indivíduo mais perfeito. Essas coisas são vistas pelos outros, por terceiros. Quando se vai dar conta formou-se um nevoeiro que envolve o caráter e interfere no paradeiro. Maria fez mais bramuras do que possa ser pensado. Por uma vida inteira tentou estar de um lado. Porém, o barco em águas revoltas pelo vento é açoitado. P’ra manter o equilíbrio é preciso estar atento. Olhar se há tempestade, p’ra que lado sopra o vento. Orientar-se com os justos. Vigiar-se a todo o tempo. Mas Maria não podia estar à parte de toda a gente. Não que fosse desleixada ou mesmo incoerente. Ela sentia todas as coisas que toda criatura sente. Maria procura o ouro como todo o mundo procura. A vida é uma porfia de busca e de aventura. É evidente que às vezes se comete uma loucura. A pedra filosofal ou pelo menos uma terça. Maria se fez ousada para que o bem lhe aconteça. Sucedeu-se que a pedra lhe acertou a cabeça.
Maria Aparecida não deu mais sinal de vida. Dez anos correram e ela ficou desaparecida. A mãe vivia acabrunhada, com a alma aturdida. Um dia anunciaram que Maria da Anunciação se convertera ao Islã indo p’ro Afeganistão. Envolta em uma burka defendia o Corão. A Maria dos Prazeres desprazerosa saltou de uma colina muito alta, de um enorme platô. Foi cair dentro do mar. Ninguém jamais a encontrou. Foi o prazer dos narcóticos que a deixou viciada. Não queria estudar. Não queria nada, nada. Porém quando se deu conta já estava dominada. Final não menos fatídico foi de Maria das Graças. Dava-se com todo o mundo, era amiga de todas as raças. Porém não avaliou mesmo conservando o amor a vida tem ameaças. No Xingu tornou-se amiga de um cacique caiapó. Ia colher frutos no mato, tomar banho no igapó. Quando menos se deu conta já estava no xodó. As esposas do cacique acharam um desaforo. Uma branca enxerida ficar naquele namoro. Não seria permitido que ela roubasse o ouro. Além de tudo Das Graças o índio manipulava. A tribo assistia a tudo, porém de nada gostava. Decidiram sem demora acabar com a patacoada. Maria da Glória casou-se com um político importante. Curtiu a vida, gozou da glória. Teve ouro e diamante. Mas o marido a matou no dia em que a flagrou junto com seu amante. A história foi injusta p’ra Maria do Desterro. Foi desterrada da vila bem no dia do enterro do homem que mais amava. Aquilo foi mesmo um erro, ela nunca imaginava. Atribuíram a ela a morte do seu marido. Mas a suspeita infundada não tinha qualquer sentido. Quem tinha matado o homem era seu melhor amigo. Desterro foi p’ra cadeia e pagou o que não devia. Pela justiça ser cega dali ela nunca sairia. Foi a sorte fatídica de mais uma filha de Maria. A guerra não foi evitada pela Maria da Paz. Conheceu um marinheiro, ia esperá-lo no cais. Se ela não aparecia. Não demorava nem um dia que ele ia atrás. Um dia ele aportou com vasto carregamento. A federal já sabia que aquilo era armamento. Os traficantes do morro dariam seqüência ao tormento. Vai Da Paz segura aqui este fuzil de responça. Aponta e manda fogo, segura a geringonça. Sei que és minha mulher, mas sei que também não quer que eu vire uma bolsa feito o couro de onça. Era só tiro que se ouvia às margens da Guanabara. Uns feridos, outros correndo com as mãos sobre a cara. E Da Paz sem entender parecia um Che Guevara. Ao cabo de alguns minutos Da Paz ‘tava esticada. Tinha mais de cem balaços e a guerra continuava. Tiros no morro e no asfalto. E apenas o Redentor no seu pétreo clamor pedia paz lá do alto.
A trajetória de Maria é repleta de empecilhos. Porém, nada foi capaz de arrancar o seu brilho. Embora em solavancos ela pisou firme no trilho. Nunca esperou que as pragas que o marido lhe rogara tivessem o poder de feri-la. No entanto, um dia notara: quem joga pedras na lua, elas cairão na cara. Reconheceu que a vida lhe tinha sido amarga. Suportou por muito tempo uma pesadíssima carga. Um soluço a sufoca, sua garganta embarga. As sete Marias, no entanto, sumiram no firmamento. As suas filhas jamais sairão do pensamento. Ficou apenas em sua memória um triste e eterno lamento.
Uma forte expectativa inspirou-lhe alegrias. Foram sete dores de parto, sete fortes agonias. Imaginou ser feliz com suas sete Marias. Maria foi condenada pelo destino das filhas. O mundo a enclausurou numa isolada ilha. Virou beata e cobriu o rosto com uma mantilha. A remissão p’ra seu erro era a conversão a Jesus. Não refletiu que um passo errado a um abismo conduz. É preciso ter à mão sempre um facho de luz. Além disso, a conversão apenas a castigaria. Era somente uma mulher, apenas mais uma Maria. Entretanto, não sabia colher todos os filhos seus. Era progenitora de cristãos, muçulmanos, budistas, afros e judeus. Porém viu que o futuro não indica um roteiro. Desde que o mundo existe o porvir é corriqueiro. A mulher que amamenta quer proteger sua cria. Reza por sorte e felicidade como qualquer Maria.

JOEL DE SÁ
02/11/2007.
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