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Contos-->O sorriso de Olga -- 04/11/2007 - 19:16 (Athos Ronaldo Miralha da Cunha) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


O sorriso de Olga
Athos Ronaldo Miralha da Cunha

Estou com 70 anos e sou apenas um leitor. Um velho contumaz e obsessivo leitor. Leio e estudo, é só o que me resta nesse fim de vida. É o que faço nessas últimas três décadas. Foi o que restou de pedaços de aventuras de um tempo remoto.
Vivo na companhia dos meus livros e de uma enfermeira que não esquece a hora dos meus remédios. E no final da tarde me acompanha até a praça para eu sentir um pouco o gosto da vida.
Minhas vistas não são mais as mesmas, mas minha vontade e perseverança são maiores que a minha deficiência visual. Assim, reviro páginas após páginas. Como o pêndulo de um relógio no tique-taque dos anos.
Então, sigo sobrevivendo na companhia dos livros, pois os livros derrubam os nossos inconscientes alambrados e põem abaixo os muros da insensatez. Não há fronteiras que resistam ao vai e vem das folhas de um livro. Hoje, viajo pelos livros, mas já fui um viajante. Andei e andei por essa América. Andei pelos caminhos de Che Guevara por toda a América Latina.
Em meados dos anos 70 eu era um viajante solitário com uma motocicleta. Para celebrar os 10 anos da morte de Che eu desbravei esse mundão sofrido e descuidado. No final das minhas andanças eu tive mais sorte que o comandante Che Guevara. Não encontrei um exército para me capturar, mas encontrei um deserto que me derrotou. Pelo menos sobrevivi e tornei-me um ancião que não ultrapassa, sem ajuda de uma dedicada enfermeira, as fronteiras da sua sala de estar. Conto os dias desde o dia 16 de junho de 1977. E já se vão mais de trinta anos.
Nesse início de século XXI viajo com a leitura. A leitura me transporta para um outro mundo. Um mundo que até pode ser melhor, mas parodiando Pablo Neruda, nas minhas viagens pela América, confesso que vivi.
Com os livros desvendo novos olhares e ouço cânticos de outras primaveras. Tenho uma única paixão: os livros. Porque os livros me libertam da solidão. Nos livros eu encontro o aconchego dos amores verdadeiros que nunca tive.
O livro representa a liberdade para o recluso no quarto de um apartamento, que num lusco-fusco de um estranho recanto, folheia lentamente, horas a fio, as páginas brancas de isolamento.
Nas folhas dos livros ouço os urros errantes de quem está na iminência de ser jogado na fogueira medieval. Sinto saltarem das páginas os berros de homens e mulheres apavoradas caminhando ao encontro da morte na câmara de gás. Observo um semblante sereno de um guerreiro em frente ao pelotão de fuzilamento. Vejo faces cansadas rogando clemência ao torturador e olhar de ódio nos instantes que precedem a degola. Ainda ouço os soluços de melancolia na oração silenciosa no altar da gruta da santa milagrosa.
Com os livros, livro a minha mente e viajo pelo tempo e no espaço. Tenho, claramente, em minha memória os cantares líricos de saudosos barítonos e de revoadas de pássaros sobre campos verdejantes de uma Roma antiga. Um tropel de baguais na pampa gaucha do século passado. Vejo a alegria do menino que pulou a fogueira de São João e fez os seus três pedidos estrela cadente.
Os livros já me colocaram na mesma caravela de quem gritou lá de cima. – Terra à vista! Enquanto uma vela baixava diante dos olhares atentos dos índios estupefatos.
Tenho nos livros as atitudes heróicas que ajudaram oprimidos, salvaram inocentes encarcerados ou que encantaram multidões em passeatas pela liberdade. Brota das páginas brandas a vida como ela é, como ela foi e como ela será. Pelas páginas dos livros tenho a vida vivida intensamente no salto de pára-quedas a mil metros de altura ou mansamente desfrutando um palheiro debruçado na porteira da estância.
Já li nos livros tudo sobre a vida, a morte e a vida depois da morte. E o sonho em mudar o mundo mudado. Nos livros eu sinto presente as saudades dos que se foram antes de termos nascidos, dos que estão exilados, distantes ou perdidos e dos que tombaram na luta por terra e pão na mesa.
Quando rodei solitário com uma velha moto por essa América Latina, não imaginava que algum tempo depois seria, apenas, um viajante pelas páginas alvas dos livros. A minha viagem foi obstruída bruscamente no dia 16 de junho de 1977 e até hoje não sei explicar por quê. Tenho vagas lembranças das minhas viagens. A minha memória não atende a minha dedicação e perseverança. Alguns amores fortuitos de chilenas fogosas. Caloteiros e vigaristas pelo meio do caminho. Lembro dos miseráveis e andarilhos que sequer pude ajudar pelas trilhas da Bolívia e do Peru.
Pela pampa Argentina, pelos Andes e pelo deserto do Atacama no norte do Chile eu era um Che sem revolução, um Che sem Cuba, sem ideologia, apenas, com um coração aventureiro e léguas de América pela frente.
Desbravei como Che desbravou todos os becos e ruelas das vilas e povoados. Vislumbrei vales e montanhas e vi como é belo esse pedaço de chão chamado América. Fui amante de prostitutas em bordeis de quinta categoria e participei de carpetas em bodegas de beira de estrada. Em Machu Picchu beijei uma índia que, após todos esses anos, sou capaz de lembrar o gosto de amora de sua boca. A única lembrança doce de minhas andanças. Em Santa Cruz de La Sierra fiquei amigo de um indiozinho que me presenteou com umas folhas de coca. E lembro que naquela noite eu descansei de uma longa e fatigante jornada.
Numa tarde de sol forte eu varava o deserto do Atacama em alta velocidade quando, de repente, tudo se tornou um silêncio absoluto. E, hoje, mal-compreendo como estou aqui e não ter virado pó no deserto. Não sei quem me resgatou e nunca mais soube onde foi parar a minha motocicleta. Sei, apenas, que estou aqui. Lendo e rememorando passagens de uma vida aventureira.
Acabo de ler o livro O nosso homem em Havana de Graham Greene e dou-me conta que nunca fui homem de ninguém, a não ser de Olga, a minha enfermeira.
Aliás, agora vou tomar um banho. Quero estar pronto e acomodado na cadeira de rodas para passear com Olga. O sorriso de Olga me rejuvenesce. Um pouco de vida além das fronteiras da minha sala de estar me causam um enorme conforto. O sorriso de Olga é a fronteira da minha clausura com a minha liberdade. E com a desmedida aventura de passear na praça sem fazer o esforço de rodar as rodas de minha cadeira.




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