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Contos-->A nona assassina - vários autores -- 30/11/2007 - 22:29 (Athos Ronaldo Miralha da Cunha) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos



A nona assassina
(Parte I - Athos Ronaldo Miralha da Cunha)

Um alvoroço tomou conta da delegacia naquela manhã. Uma senhora, uma anciã, bem vestida e com um acentuado sotaque italiano, havia assassinado o marido com quem, recentemente, completara bodas de ouro.
Dona Esmeraldina estava tranqüila e serena diante do delegado. Dr. Edgar estava pasmo, jamais soube em seus quase trinta anos de profissão de algum caso semelhante. O delegado não sabia por onde começar o interrogatório. Vários policiais permaneciam na sala, curiosos para conhecer a velhinha assassina.
E foi Dona Esmeraldina quem começou.
- Matei o cachorro doutor. - Carregava no dialeto que deixava visível sua condição de descendente de imigrantes.
- Isso nós sabemos Dona Esmeraldina. Conte-nos como foi.
- Mimosa, meu filho, Mimosa.
- Mimosa?
- Esmeraldina Mimosa Sousa de Souza. O primeiro com “S” o segundo com “Z”. – completou.
- Então Dona Mimosa, conte como a senhora assassinou seu marido.
- Doutor, há cinqüenta e tantos anos eu convivo com o cachorro. Ele sempre foi um beberrón. Desde jovem, recém-casados, ele começou com as noitadas sabe-se lá onde e com quem. Voltava sempre borracho para casa. Chuco e trocando as patas. Paciência tem limite doutore. Hoje, chegou a vez do belzebu. Agora o cachorro non vai mais me trair. Terminei com as farras do animal.
- Mas por que a senhora viveu com ele esse tempo todo? Nunca pensou em separar-se?
- A gente vai acostumando. Mas eu tenho tentado acabar com a vida do cachorro, já faz um bom tempo. Ele sempre escapava. Hoje non, mandei o guaipeca pro inferno.
- Então...
- O cachorro ia chegando, como sempre, por volta das cinco horas da manhã, fiquei atrás da porta e dei uma garrafada na cabeça dele. Espatifei uma garrafa de vinho na nuca do peste. E os cacos de vidro eu enfiei no pescoço. O cachorro não teve tempo para dizer um ai. Foi vinho misturado com sangue esparramado na minha sala. Vinho bom e sangue ruim. O cachorro gostava de bebida fina. Quebrei uma garrafa de um vinho chileno.
Na sala da delegacia todos estavam boquiabertos. Uma senhora, aparentemente inofensiva, fizera uma barbaridade para acabar com a vida do marido.
- Como era o nome do cach... do seu marido Dona Mimosa?
- Sei lá, non me lembro mais, há muito tempo que eu chamo o cachorro de cachorro. Deve ser Cachorro Qualquer Coisa de Souza. Com “Z”. – salientou o com “Z”.
- Inspetor Rolmes. Como era o nome da vítima? – perguntou o delegado ao agente de plantão naquele dia.
- Diamantino Miranda de Souza. Com “Z”. – e esboçou um leve sorriso irônico.
Doutor Edgar se levantou. Em silêncio caminhou pelo recinto. Pensativo, permaneceu alguns instantes em frente a janela de sua sala. Observou a rua naquela manhã ensolarada de domingo. Pensou que a vida poderia ser diferente. “Como é a vida, estou aqui nessa espelunca, com uma velha doida chamada Esmeraldina, que matou o marido Diamantino com uma garrafa de vinho chileno. O meu melhor detetive é um cara que se chama Rolmes Cluzô dos Santos Silva, que vive dizendo ser parente do presidente. E minha mãe colocou meu nome de Edgar Alan sonhando com um grande escritor na família”. - E ainda faltam sete anos e três meses. – falou em voz alta.
Voltou e sentou em sua mesa em frente a Dona Mimosa.

A nona assassina
(Parte II - Tânia Lopes)

O Delegado com um olhar e, um aceno de cabeça, mandou a cambada se espalhar.
Tanta coisa pra fazer e eles ali, olhando a velha!!
Ele estava numa sinuca: – não tinha acomodações para recolher a assassina... Não podia pôr a velha junto com os outros detentos e, também, não podia irresponsavelmente soltá-la, pois a família da vítima podia querer se vingar.
Mas o fato é que a criatura tinha residência fixa, não apresentava perigo para a sociedade e, sem antecedentes, feito os trâmites legais, tinha o direito de responder em liberdade...
Mas precisava tomar uma atitude firme porque a dita podia fazer escola... O que tinha de “chuco” na cidade não era pouco. Vamos que o mulherio inventasse de dar o fim nos companheiro! Ia ser uma mortandade! Sorriu, ante seu pensamento.
E o “desinfeliz” como diria o inspetor, gostava de vinho bom! Ora, ora! Assim a produção local não ia pra frente!... Azar dele, morrera com uma garrafada de vinho chileno, bom demais para chuco descendente de italiano...
- Mas e daí, dona Mimosa? E seus parentes? A senhora tem filhos?
- Tenho... Mas já se foram mundo afora. Diz que para estudar, mas pra mim, de vergonha do cachorro! Ele vivia dando escândalo, puteando todo o mundo em casa, e uma vez, eu peguei ele apertando a maior num canto... Acho que queria arrombar a pobrezinha... Que nem fez comigo, quando a gente casou... Eu tinha só quinze anos... - Cachorro! Bruto! - Vociferou baixinho. - Mandei ela pra casa da madrinha na capital, e um a um os outros dois foram indo de “veis”. Tem um que é estudado, o Diamantino! – falando isso, tirou do bolso lateral da saia ampla, um rolinho de linha de crochê, uma agulha e deu continuidade ao guardanapinho já começado.
O Delegado lembrou de um colega metido que vivia dizendo: – Quando eu me formar os bandidos vão correr miudinho!
Pois, sim! Quando se entra pro serviço é que se conhece o que é sordidez. Em todo o lugar a corrupção que vai pondo abaixo toda a boa intenção...
Dona Mimosa ali, tranqüila, os olhos miúdos e vivos, observando tudo: “Ma que sujeira questa delegacia! Bem que precisava de uma “arrumaçón”... E o assoalho num encardume que só!” – pensava.
Tinha mania de limpeza. Sua mãe lhe ensinara: - Tem alguma coisa te incomodando, faz limpeza, cansa o corpo e lava a alma!
O Delegado coçou a barriga. A fome estava apertando e o carcereiro que entendia de comida caíra de cama com dengue... As asinhas de galinha que comprara estavam na geladeira velha, fazendo companhia a uma cabeça de cebola, a um potinho de margarina e a massa que comprara para fazer...
- Tá com fome dona Mimosa? Tem alguma pessoa que possa lhe mandar alguma comida? Eu estou meio desprevenido, só tenho a mão umas bolachas Maria... - e isso dizendo alcançou o pouco que restava do pacote.
- No, no, non, obrigado...E não io quero incomodar ninguém...
O Delegado levantou e foi falar com um ajudante:
- Baixa aquele colchonete e ajeita na salinha do almoxarifado... Daqui a pouco a velha vai ter que dormir...
O almoxarifado era atulhado de coisas pequenas que eram roubadas, recolhidas e ninguém aparecia para reclamar. Por essa noite, o assunto estava resolvido.

A nona assassina
(Parte III – Antonio Cândido Ribeiro)

Porém, intrigado com a personalidade da velhota homicida, e como se quisesse descobrir algum motivo oculto, escuso, e ainda inconfessado, o Delegado, mostrando solidariedade, voltou à carga, inquirindo-a.
– Dona Mimosa, pelo que nos contou, a senhora tinha sobradas razões para atentar contra a vida do seu... seu, do seu...
– Cachorro!
– Sim, sim, do seu falecido marido cachorro, ou cachorro marido. Pois então, disse-nos a senhora ter flagrado seu... seu cachorro dando, digamos, um forte amasso na própria filha, com intenções libidinosas.
– Libidi... o quê?
– Com intenções de manter conjunção carnal com a menina.
– Mas dotore, vamos falar um português claro, capisci?
– Capisco, dona Mimosa, capisco! Nasci em Nova Palma! Quero dizer que o falecido do seu cachorro queria fazer sexo com a própria filha.
– Ecco, dottore, o safado queria isso, queria, come eu já disse, arrombar a guria, trepar com ela, tava na cara. Mas se me faz isso, a guria me vira uma putana sem futuro...
– Por que, na época, a senhora não denunciou o depravado, digo, o seu cachorro?
– Denunciar pra quem, dottore?
– Para a polícia, dona Mimosa!
– Não brinca, dottore! Naquela época, não é como agora, que a gente pode confiar na polícia. O cachorro era amigo dos policiais, bebia e farreava com um monte deles. Tinha até um que ia lá em casa buscar o cachorro para sair pras safadezas. Se denuncio, me mata. E quem ia acreditar em mim ou na guria? E não tinha, dottore, essas coisas modernas de delegacia da mulher, dos bambinos e não sei mais o quê. Nem tinha essa lei que falam na televisão e no jornal, a tal Lei Maria da Rocha.
– Lei Maria da Rocha?
– Ecco, essa que protege, as mulher.
– Ah, a Lei Maria da Penha?
– Essa. Me confundi dottore! Mas penha e rocha não é tudo a mesma coisa? Li, outro dia nas palavra cruzada do jornal, que faço quando me sobra tempo, no intervalo das novela.
– Sim, sim, está bem, dona Mimosa, mas se não confiava na polícia, a senhora poderia recorrer ao Ministério Público ou à Justiça.
– Eu gosto do senhor, delegado, é um homem bem humorado. Esse ministério – esse público – é novo, é mais um do Lula?
– Esqueça, dona Maria da Penha, digo, dona Mimosa. Ministério Público são os Promotores de Justiça, os guardiões da lei.
– Mas, como lhe disse, dottore, era tudo a mesma coisa: polícia, justiça, promotor. Se eu não confiava num, porque havia de confiar nos outros? E, já lhe disse, eu sentia ódio do cachorro, entende? Forjei minha coragem e minhas força no ódio que eu sentia do desgraciado, chorando baixinho pelos cantos da casa, limpando, lavando, passando, cozinhando pro cachorro. Minha casa, dottore, não é como esta delegacia, era um brinco, dava para lamber o chão. Só relaxava um pouquinho, dottore, de noite, assistindo uma novelinha, onde até dava para aprender umas maneira de matar aquele filho de um porco, que, quando chegava de madrugada, e não vinha do chinedo, não respeitava meu cansaço e me abria as perna à força e me babava a cara e os peito com aquele bafo nojento. O cachorro ficava satisfeito, caía pro lado e roncava como um porco e eu ia pro banho e me esfregava com uma bucha ensaboada até quase “arancar” a pele, até sair o fedor daquela gosma nojenta misturada com minhas lágrimas. E eu só agüentava porque tinha certeza de que um dia eu acabava com a vida dele, como acabei. Por isso, estou aliviada e não me “arependo” de nada. O desgraciado agora deve de estar no Inferno abraçado ao pai dele.
O Delegado só então se lembrou dos direitos constitucionais da velha e perguntou-lhe se tinha um advogado que quisesse chamar. Em caso contrário, o Estado lhe indicaria um, porque mesmo que não fosse permanecer detida, ela precisaria de um profissional que a representasse.
– Avoccato, dottore? São tutti ladri. Uma corja!
– Que isso, dona Mimosa? Há muitos bons profissionais, sérios e competentes. Aliás, a maioria deles...
– Eu estava brincando, dottore. Meu filho do meio é avoccato em São Paulo. E, aqui, conheço um, era vizinho nosso e até me emprestava uns livros policiais, com umas boas histórias de assassinatos. É o dottore Georges Simenon Fernandes de Oliveira. O senhor conhece?
O Delegado, que conhecia, sim, o advogado Simenon, chamou Rolmes e pediu que ele trouxesse o telefone sem fio da outra sala, pois o da sua mesa, para variar, estava quebrado.
Dona Mimosa que durante todo o tempo mantivera as mãos ocupadas, em frenética movimentação com guardanapo que confeccionava (sua mãos pareciam ter vida independente dela), finalmente parou, recolhendo as agulhas e a pequena e delicada peça de crochê ao bolso da saia. E, olhos perdidos no vazio acinzentado do teto da sala, perguntou:
– Dottore, aqueles biscoito, as bolacha Maria? Posso provar uma?

A nona assassina
(Parte IV – Pedro Brum Santos)

Com a ponta dos dedos da mão esquerda, o delegado reúne os farelos espalhados pelo pires. Ao mesmo tempo, com a mão direita faz círculos com a xícara que guarda um resto do café com leite já frio. Quando engole tudo - o café e a bolinha feita dos restos esfarelados - seus olhos levantam do jornal e se distraem ante a bunda fornida da dona que compra algo no balcão. Fica observando as coxas grossas que, envoltas no collant preto, se revelam para fora do vestidinho amarelo e sugerem promessas diluvianas em uma tarde de primavera.
Onde moram, para onde vão essas mulheres bonitas que cruzam nosso caminho? Há um poema que fala disso. Os versos não se recompõem na sua cabeça, mas a idéia é essa mesma. É a pergunta sem resposta de um homem embasbacado diante da beleza anônima que o atrai na medida mesmo em que lhe foge do controle, da possibilidade do contato e do conhecimento. Os versos serão do Bandeira? Não, não, Bandeira não. É por demais filosófico. Deve ser Drummond. Sim, com certeza, é Drummond.
Absorto nos trejeitos da moça, Edgar pensa de repente que faz tempo que não pega um bom livro. Tem estado perdido em meio a inquéritos, relatórios, compêndios jurídicos, leis, decretos, boletins. Saudade da boa literatura, vontade súbita de reler seus poetas preferidos. Precisa cuidar disso. Mexe no paletó até encontrar a caderneta de anotações. Depois, num bolso interno, apalpa em busca de caneta.
A dona vira-se e vem até o caixa. Edgar retoma o jornal e dá uma olhada na contracapa. Olha apenas, porque os sentidos estão todos na moça em movimento. O rosto é gracioso. Os dentes alvos sorriem para o atendente enquanto fala alguma coisa e espera o troco. A xícara repousa no canto direito da mesa de Edgar. Ao lado, o pires. Sem farelos. A moça desincumbe-se do caixa e toma o rumo de sua direção. Ele observa numa expectativa divertida. Porém, é só o caminho de saída. Ela passa sem lhe prestar atenção. Edgar acompanha a bunda que ganha a porta principal e se some na rua, a esta altura já aquecida de gente e de sol.
O movimento lá fora, por um instante, lhe chama para a realidade. Confere as horas. Ainda tem tempo para um cafezinho e uma passada no jornal, antes de render a troca de turno na delegacia. Levanta o braço:
- O qué qui manda doutor?
- Um expresso, por favor.
Abre a caderneta e procura a seção providências. Corre até o final das anotações e escreve Drummond, em maiúsculas. Ao lado acrescenta: poema sobre mulheres e, entre parênteses, moça da lancheria. Vai recapitular os últimos recados, mas se distrai com o café que chega. Resolve voltar ao jornal. Antes de fechar o bloco de anotações e tornar a guardá-lo retém a palavra obnubilar, escrita em vermelho. Esqueceu de consultar o dicionário. Tenta fixar na lembrança: chegar à delegacia e ir ao dicionário. Obnubilar. Fica repetindo mentalmente palavrão, palavrão, palavrão...
- 365 na federal, doutor.
Paulinho mostra-lhe os números que se salientam de estampas coloridas. Edgar, atencioso, agradece.
- É hoje, doutor, Leva só um pedaço, a sorte está com o senhor.
- Paulinho, hoje não. Outro dia, quem sabe, outro dia...
- Passar bem doutor...
O anão se afasta e repete a oferta logo à frente. Só então Edgar percebe que o movimento aumentou. Não se dera conta da chegada dessa gente toda. Algumas mesas têm duplas que conversam animadamente e já há quem tome cerveja a esta hora da manhã. Eta mundo velho sem porteira, como dizia o Cyro Martins. Firma os olhos na propaganda luminosa de cigarro no alto do balcão do caixa. Franze a testa com ar de concentração. Não, Cyro, não. É do Erico, sim, com certeza, mundo velho sem porteira é do Verissimo.
O gole de café expresso desce reconfortante. Volta à contracapa do jornal. Esportes sem novidades. Confere a foto de três senhoras atrás de uma panela gigante. Na legenda a explicação sobre risoto beneficente. Pensa que gestos de caridade não reformam o mundo, mas se enternece ante o rosto sorridente das senhoras. A imagem dos três mosqueteiros passa rapidamente por seus pensamentos. Busca outras informações. Percorre a coluna da esquerda, ainda na contracapa. Quando toma o último gole de café, chega à manchete que está bem embaixo. Com o olhar fixo, lê três vezes a mesma coisa, antes de pensar sobre o que lê. A frase, no entanto, não deixa dúvida: “Nona que matou o marido foge da delegacia”.
Edgar levanta-se e segue rápido para o caixa. Tem o olhar decidido de um delegado de polícia em serviço. Nem quis ler a notícia. Ficou somente na manchete. Aquela velhota com cara de sonsa, hein? Espera o troco com ansiedade. Será o busílis? A expressão lhe troa nos miolos. Essa é do Rubem Fonseca. Tem certeza absoluta. Aliás, não há espaço para dúvida no sujeito que deixa o café e marcha resoluto de volta para a delegacia.

A nona assassina
(Parte V – Antonio Augusto Ferreira)

O Delegado caminha com passos rápidos, vontade de dar uma corridinha, não fica bem, delegado correndo na rua por causa de uma senhora de 65 anos, que matou um Cachorro, aliás, seu marido, que estava presa por confessar a autoria, mas não lavrara o flagrante, nunca imaginou precisar num caso desses. Que idéia, só para atormentar-se. É só perseguir pista deixada por ela e então prendê-la, dar voz de prisão, trazê-la para a DP e então lavrar o flagrante. Atenção, caderneta, letra f, flagrante, não esqueça.
Na delegacia praticamente não havia ninguém, por causa do acontecido no dia anterior, quando a Dna. Mimosa esteve lá, nenhum funcionário saiu da delegacia, a turma foi ficando, mexendo nas gavetas, fazendo de conta que trabalhavam, quando o Delegado se deu por avisado não se havia feito nada mais do que corujear o que se passaria com o inquérito do cachorro, quer dizer, da morte do cach, não é mais possível continuar com esse cachorro na cabeça, a vítima tem nome, ou melhor, tinha, e pelo jeito nem esse era gasto. Diamantino, isso, Diamantino. Mas, engraçado, nem esse nome parecia pertencer ao finado, “ao vítima”, como dissera um engraçadinho que estava na porta quando a velha Mimosa chegou naquele dia à DP. Mas, voltemos ao dia anterior, quando o Delegado teve de passar uma carraspana coletiva no seu pessoal por fazer cera em pleno horário de trabalho, pois agora tinham saído todos, agora que precisava notícias de como ela fugira, se alguém tentou impedir, essas coisas, ninguém ficou, a DP estava a bem dizer vazia. Só não digo vazia porque o banheiro denunciava porta fechada, e dava para ver a luz acesa por baixo da porta. Mas isso é assunto para outro dia.
Desde a madrugada o Delegado pensa que este pode ser caso de passar na novela das oito. Pode ter coisa aí. O escrivão não lhe lembrou de lavrar o flagrante, o corpo foi levado antes que ele, delegado, chegasse à delegacia no primeiro dia. A garrafada na nuca e o óbito daí decorrente, e com os vidros enfiados no pescoço, teria a vítima morte instantânea, levando-se em consideração que ela, a indiciada, é idosa, e admitindo-se que a vítima tenha caído para frente, nuca para cima, essa área não costuma receber golpe mortal, nem mesmo cortado de faca.
Há mais, os filhos não ligaram, nem apareceram, filhos do matador e do morto, afinal o que há aqui? Ele pensa que o próximo passo, chegando a confirmar-se a nota do jornal, é alargar a batida policial em busca da ré, trazer o corpo do cachorro com seu laudo de necropsia, porque agora o bicho vai pegar.
O delegado segue andando e pensando, mas que troço! A comitiva das possibilidades e dos questionamentos já está querendo desembarcar dentro da sala do delegado. Qualquer coisa que falhar, se a velha está mentindo, vai tudo por água abaixo. O que sobra? Da vítima não se soube nada, da ré tampouco. Coisas como a vida comum deles, como estava o casal, se havia escândalo, as finanças, os amigos, os filhos, tudo está coberto por uma única prova, a confissão da ré. “Como eu pensei”, cogitava o delegado consigo mesmo faltando confirmar-se uma só questão, se a ré mentiu, se vai a cabra com a cinta. Confissão sozinha não vale muito, e agora com a fuga não resta nem a dita confissão.
O delegado pensa com rapidez, agora para saber alguma coisa de concreto o melhor é voltar ao café, arrecadar o resto do jornal, e é pra já. Boi lerdo bebe água suja.

A nona assassina
(Parte final – Orlando Fonseca)

Ao sair da sua sala, o delegado dá de cara, novamente, com aquela mesma bunda esplendorosa do Café, o que, se não era provocação, carregava um tanto de mistério que nem Bandeira poderia vazar em versos parnasianos, de sua primeira fase – ainda lembrava do tempo em que se preparava para o vestibular de direito da Federal. Mas, porém, todavia - certeza absoluta - com a dona de tal beleza, dali a sete anos e três meses iria direto para Pasárgada. O escrivão Poarrô, do outro lado da escrivaninha indica-o para aquela esplêndida morena, que se vira em sua direção, e com um meio sorriso de lábios vermelhos e carnudos, aqueles dentes alvos de antes, mas os olhos verdes, graúdos, delineados por um rímel escuro – um pequeno acento de melancolia, permite-se o já adormecido poeta da família - cabelos em cascata castanha ondulada, que ela meneia para trás, a fim de deixar visível o olhar fatal. Ao certo, não sabe, mas jura que ouviu, numa quase súplica:
- Doutor, eu vim me entregar...
Passada a obnubilação – agora entendia o termo – inicial, recompôs-se e convidou a jovem a entrar em seu gabinete. Abrindo a porta, mão na maçaneta, ao deixar passar aquela tsunami de vestido amarelo e collant preto, conferiu os detalhes anatômicos – a sua profissão exige – e, piscando um olho para Poarrô, pediu dois cafés e um copo de água. Se era para se entregar, deveria tomar todos os cuidados para que fosse em seus braços. Convida-a sentar, diante de sua mesa, o que ela obedece de imediato, e ele se encaminha para a sua cadeira de espaldar alto, e se anuncia todo ouvidos:
- Meu nome é Ágata... – ela começa.
- Ágata Christie...
- Como???
- Deixa pra lá, é apenas um xiste.
- Não me confunda, doutor, que de confusão eu já estou por aqui.
Entretanto, ao doutor aquilo parecia mais uma interjeição: Ah gata!, mas era bem mesmo um trocadilho infame. Chegam os cafés: Poarrô – que na verdade tinha o nome de Paulo Roberto - coloca a bandeja de plástico, com os copos e uma pequena jarra com a água, sobre a mesa. Retira-se, sem perguntar nada ao delegado. A moça, depois de um gole pequeno, prossegue, grave:
- A minha mãe já deve ter vindo aqui, e dado a sua versão. Mas eu não posso deixar que a coitadinha passe por esta experiência...
- Sua mãe?
- É... Esmeraldina...
- Dona Mimosa... a fujona! Onde...
Estendendo a mão, a jovem pede, com exagerada delicadeza:
- Calma, doutor... – e recoloca o copo vazio sobre a bandeja.
- Como calma, sua mãe vem aqui com uma história, lá no IML tem um corpo que ela reconhece como o de seu pai, com a cabeça toda estropiada... – e se cala, lembrando do que ela lhe falou sobre o velho, e arrisca uma pergunta: - Você é a maior, a filha maior?
- Infelizmente sou – ela diz, usando o lenço já molhado.
Solícito, Dr, Edgar lhe entrega um lenço de papel, providência sempre à mão, por causa da rinite.
- Acalme-se, Ágata – “Ah sonoridade maravilhosa” - conte-me tudo direitinho – fala, virando-se para o teclado do computador. Pensa em chamar Poarrô, ou Rolmes, mas decide que ainda vai curtir um pouco mais aquele presente divino, um bilhete da federal premiadíssimo, que Paulinho nenhum poderia lhe vender em qualquer calçadão do mundo. Então era ela a maior que o velho amassava num canto. Não era de admirar, se naquela época ela já se anunciava como tal. “Componha-se, Edgar”, reprimia-se, “olha a Maria da Rocha, como diria a dona Mimosa, santa dona mimosa, de onde saiu tudo isso”.
- Como eu já lhe disse, eu vim me entregar, porque a mama ta baúca. Ela não fez nada disso que o jornal tá dizendo que ela fez. Pobre mama – enxuga uma furtiva lágrima, observa o delegado, que lhe estende mais um lenço. E numa arranco, antes do choro: - Eu é que fiz aquilo com o Cadelón...
- Cadelón?
- Sim, era como eu e minha irmã menor chamávamos aquele desgraçado.
- O cachorro – murmura entredentes, o atento delegado, digitando o texto. A moça continua:
- Eu esperei ele chegar em casa e fiz o serviço, não quero nem lembrar.
- Mas vai ter que lembrar – agora o dever do ofício falava mais alto – porque precisamos tomar o teu depoimento – e gritando para o escrivão – Poarrô, vem aqui!
Ágata então contou tudo em detalhes, como ela armou aquela investida, pois sabia que a mãe estava cada vez mais maluca com a situação desprezível do relacionamento com aquele ordinário. Mas insistiu que apenas ela pôs o plano em ação. Sabia que o pai se insinuaria para ela ao chegar em casa bêbado, e tentaria lhe agarrar à força. Por isso se preparou e desferiu os golpes que acabaram por levá-lo à morte. Que na raiva, ainda enfiou os cacos da garrafa no pescoço...
- Era um vinho chileno?
- Não delegado, que em casa só havia Velho Amâncio, veja só que ironia, eu gosto tanto deste vinho, que chego a levar para Porto Alegre, onde moro com minha irmã. Eu e a mana vivemos bem, eu trabalho, quer dizer, trabalhava, né, numa loja de jóias... E a mama, com certeza, não fugiu assim, ela está caduquinha, sabe...
- Bem, eu vou ter que lhe dar voz de prisão... a senhorita tem um advogado? – e, pensando em atenuantes, para um futuro glorioso em Pasárgada, ainda arrisca uma hipótese de legítima defesa... – Ele tentou, então agarrar você...




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