A cidade está enlouquecida, o trânsito caótico, a população aglomerada nos pontos de ônibus; o moto-táxi brinca com os veículos e, num zigue-zague de causar enjôo, cruza o infinito. Painéis com promoções de grandes magazines reluzem...
A São Paulo do dia adormece com os derradeiros raios solares e uma outra, exuberante, de uma essência que vicia, de um brilho que hipnotiza, resplandece no horizonte, e como deusa, desfila pela imaginação capitalista, fazendo morada nas almas mais ingênuas...
O relógio luminoso, no centro da avenida, marca 22 horas e 14 graus. O vento frio levanta a poeira, invade as casas, balança as árvores... As folhas, desatadas dos galhos, voam pelo alto; parecem pipas desorientadas, em mãos de garotos pequenos. Não demora, a garoa cai, transforma a poeira em barro, causando a comoção em dois idosos, que sentados na cama, vêem, pelas frestas da janela, o mau tempo se levantar... Cobertos por um fino manto de lã, relembram o passado, época em que o bonde cortava a cidade, as meninas pulavam amarelinha e as bicicletas concorriam, com os poucos carros, as avenidas...
Ao longe, uma família de migrantes, recém chegada do Nordeste, abriga-se do frio embaixo de caixas de papelão. O bebê chora de fome no colo da mãe, que nada pode fazer se não suplicar por misericórdia aos transeuntes, que, acostumados àquela cena, ignoram o fato. O pai, cuja barba atinge o peito, olha para a criança e apenas lamenta pela decisão de ter trocado o interior pela cidade grande na falsa esperança de uma vida melhor. Consegue reunir algumas poucas madeiras, de galhos envelhecidos, e taca-lhes fogo, na tentativa de se aquecerem. Outro filho, um garoto raquítico, de uns quatro anos, dorme sobre as malas. Seus lábios estão roxos e ressecados.
Por eles passa uma bela limusine cinza, que pára a alguns metros. Nela está um senhor de idade avançada, com o celular em mãos.
_Abra a porta, Ronaldo! – pede o homem ao chofer.
Ao sair do veículo, o velho caminha, com a ajuda de uma bengala, até a pobre família, como se intencionasse salvá-la da tragédia social em que vive. O pai das crianças, desconfiado, afasta-se ao poucos, escondendo os filhos atrás de si.
_Acalme-se, homem! Não lhes farei mal! – solicita o senhor, com a mão direita estirada até a altura do rosto, sinalizando serenidade. Vim apenas lhes trazer um balde de sopa... Estão com fome, não estão?
O homem balança a cabeça em sinal de afirmação. Com o balde de sopa nas mãos e alguns pratos de plástico, o chofer aguarda a autorização do senhor para entregar o alimento. O velho, atraído pelo choro do bebê, aproxima-se dele, toca-lhe a face, depois recua alguns passos, dizendo ao chofer:
_Leve todos para um hotel!
_Co-co-mo???- pergunta, atônito, o motorista. O senhor quer que essa gente vá para um hotel? Mas...
_Você não me ouviu, Ronaldo? Leve-os para o mais chique dos hotéis da cidade, dê-lhes comida, roupas e tudo mais o que precisarem... Tudo por minha conta!!! Não lhes deixe faltar nada; se não fizer o que estou mandando, prometo, em nome do mais distinto santo de barro, que lhe demito.
Devido à intimidade de anos, Ronaldo puxa o senhor pelos braços até o carro, mais uma vez, lhe inquire:
_O senhor está bem? Tem certeza do que está fazendo? Eles... eles...são...
_...miseráveis? É isso que quer me dizer?
O motorista, plenamente contrariado, nada responde.
_Sim! Eles são mesmo miseráveis... por isso lhes estendo as mãos...Quem olhará essa gente? Aquele “vindo” do povo, cuja única ação é distribuir cargos aos mais chegados e esmolas aos menos assistidos? Quirelas...Deixe de preconceito com esses que também são seus irmãos, ou você deixou de ser cristão? – os olhos do velho engolem o chofer, que, desatinado pela atitude, nada pronuncia. Faça o que eu mando... e agora! – determina.
_ E desde quando o senhor faz parte da ordem que segue a doutrina de Madre Teresa de Calcutá? – arrisca Ronaldo, num misto de ironia e temor.
Mesmo diante da “piadinha”, o homem mantém a classe, optando pelo silêncio.
_Vamos, tenho de levá-lo antes, senhor! – diz o motorista, substituindo a face de sátira por outra de constrangimento.
_Leve-os primeiro!
_Mas...
_Obedeça-me, Ronaldo!
_Mas... o senhor ficará aqui sozinho? Estamos numa zona perigosa, senhor! Temo...
_...Sei me cuidar! – entrecorta-lhe o velho.
E assim, aos poucos, o homem auxilia o motorista a conduzir a pobre família à limusine. Antes mesmo de fechar a porta, a mãe das crianças pergunta:
_Por que está nos ajudando? Por acaso é algum tipo de...
_...de amigo? – interrompe o homem. Sim! Sou um tipo de amigo, agora vão...
_Obrigado! Que Deus lhe pague por essa bondade... – diz a mulher, com as lágrimas descendo a face.
_Deus lhe ouça, querida! – diz, comovido, retirando a última lágrima que corria o rosto da mulher.
E assim eles partem, ficando o velho para trás. Algumas quadras adiante, Ronaldo, ainda perplexo com a atitude do patrão, pára o carro. Com a cabeça sobre o volante, tenta encontrar uma resposta para tudo aquilo, quando lhe vem à mente um envelope entregue dias atrás ao seu patrão. Envelope este já aberto e dentro do porta-luvas. Pegando-o, retira duas folhas cujas palavras elucidariam todo o mistério:
“Paciente: DOUTOR RUBEN MÉDICI, BANQUEIRO, PORTADOR DE CÂNCER CEREBRAL, TEMPO DE VIDA ESTIMADO DE UM MÊS...”
Já a segunda folha guardava o último desejo do velho: “... todo o meu dinheiro deverá ser doado àqueles que tanto necessitam. Uma forma sutil, talvez ingênua mesmo, de um banqueiro ordinário como eu tentar se redimir ante ao Criador, pelos males causados a muitas gerações e a milhões de clientes, que roubei sem piedade, através de juros e tarifas, levando-os a trilharem os mesmos caminhos: a bancarrota e o suicídio! Isso que agora também pratico, após doar tudo o que consegui, almejando o perdão por tantas desgraças e mortes de todo modo...”
Ronaldo resolve voltar com a família para aquele viaduto, seu coração quase lhe foge pela boca. Antes de parar o carro, avista estirado ao chão, a poucos metros, com a face ensangüentada, o corpo do doutor Ruben e, em uma das mãos, uma pistola calibre 38.
_Ele se matou!? – grita o pai das crianças.
Ronaldo, aos prantos, abre a porta e corre ao encontro do patrão, a quem muito estimava pelos bons momentos, independentemente de sua conduta como banqueiro.
_O que será de nós agora, mãe? – pergunta um dos filhos do casal, aproximando-se, assim como toda a família, do corpo do velho.
_Terão a sociedade aos seus pés, assim como teve esse homem... -diz o motorista, em soluços.
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