Hoje o sol se veio a contar-me coisas que dissera antes ao céu e às estrelas. Dissecava decerto deturpantes verdades que me trazia e mostrava crua a verdade que choca. Que fazer se os plangentes brados de desespero não se podem deixar ouvir por nada?
As cortinas se sujaram e percebi que, ao final das contas, eu era ele. Eu o vi. Não fora de fato agradável, mas eu não sentira medo, nem dor. Talvez tivesse vertido lágrimas, puras, mal posso me lembrar. Mas ele esteve lá, e sim, vi, em andrajos, desdentado e sofrido, aquele que me causara dor demais. Tanto destruíra que mal me conseguia remembrar, e às descrições antigas de desespero verti pungentes amostras de dor que profanavam pranto e alma, religião que não pudera me resguardar das mágoas. Na verdade não me magoara tanto. Apenas confirmara ironias; psicologia sux - eis que de fato a psicologia me derruba.
Mas vi que chegava ao fim. Pobre, desgraçado pela maldita regente do universo, grana. Merda. Impressionava-me onde as coisas haviam chegado.
Mas a vida chegava a um apogeu de vitórias e, como costuma ocorrer nessas ocasiões, algo ocorreu. Eu o vi. Onde estará agora? O que estará sofrendo por causa dela? Resplandece-me a vista cansada de inútil e inúteis ocupações. Relaxa-me a calma e a segurança e o saber que tudo chega ao fim. Se na esperança de expressão austera que liberta de dores abusadas de empirismo cruel os patéticos exprimem o que julgam arte, como faço, e se funciona ou resolve, então todos sejamos poetas, tentemos distinguir entre as relações as que são humanas e as que não o são, as que são reais e as que não são.
Pois bem. Eu o vi. Não sei se o que narro algum dia tocará algo, não sei se esse meu jeito prolixo e lacônico, como o de um louco que se sente cansado de sentir algo pelos outros, pode efetivar o interesse mínimo de um leitor que não almejo para que perfaça a leitura e tire das linhas mal escritas uma história, ao menos uma história, que possa contar.
Eu o vi. De fato, os anos se passaram. Não soubera nunca o que mais aconteceu a ele. Aqueles cabelos enrolados e aquela voz que assombrava a mansão de meus sonhos. Aquela sombra que se escondia nos recantos mais lúgubres daquela casa no fundo do quintal, a casa vazia e negra que guardava o terror de minha infância. Ele talvez fosse sepultado por lá. Assustaria mais.
Mais anos se passaram. Deixei que o Boneco de Tédio crescesse e se tornasse parceiro em lutas renhidas e sangrentas pela liberdade de movimentação. Ele era como um daqueles de neve. Mas era poderoso. Me fazia produzir, de fato, coisas como esse texto. Produtos causadores de vergonha e orgulho, pela carga vazia de bom gosto e cheia de não-importância.
Os últimos anos se passaram. Quando me levaram, acorrentado, para a masmorra, eu encontrei lá bem no fundo uma arca velha. As trancas, como se estiveram no fundo do mar há tantas eras, quebraram-se tão facilmente quanto eu esperava. Percebi que eu era ele. Foi nesse instante. Se eu desejei sua morte, consegui a minha. Não pensei nele; senti-me injustiçado como se fosse um órfão de uma sociedade que não era de fato a minha, mas era todas em uma só. Irônico. Eu agora era ele e morria de AIDS tantos anos depois de seu fim, na caverna escura de meu pesadelo.