As festas de fim de ano, o reveillon principalmente, são tradicionais no Brasil. No Rio de Janeiro a badalação é ainda mais monstruosa. Reportagens por cima de reportagens para incentivar mais a festança.
Isso começou a tomar maior corpo a partir da década de oitenta, mesmo com a tragédia do Bateau Mouche, ocorrida em 1989, quando muita gente morreu com o afundamento daquela embarcação. Antes desta época, talvez por conta da televisão a festa não era tão divulgada, embora já fosse tradicional.
Milhares de pessoas do Rio de Janeiro e de outras partes do país acorrem às praias, principalmente, à Praia de Copacabana; todas com os mais diferentes interesses. Umas para jogar flores à Iemanjá; outras para fazer oferendas de comidas. Umas para se banhar nas águas da praia no primeiro dia do ano para ter sorte; outras somente para ver a festa. Uns à espera de descuidos; outros para assaltos pesados. Enfim, milhares e milhares de pessoas com os mais diferentes propósitos.
Nisso tudo, entretanto, o sincretismo prevalece. Eu, particularmente, não acredito que a mudança de uma página do calendário, ou de um dia para outro possa modificar alguma coisa, somente porque mudou o ano. Mas, fazer o quê se as pessoas acreditam. Até acho que muitos nem acreditam, ou melhor, não param para pensar sobre o assunto, levados que são pela propaganda comercial da festa.
Porém, não é sobre isso que quero falar, mas de uma destas festas que tive oportunidade de participar, há anos, com alguns amigos.
Como era muito jovem fui. Participei da bebedeira, mas não propriamente daqueles rituais. Hoje, provavelmente, nem fosse lá. Provavelmente não. Não iria. Como nunca mais fui. Nem lá, nem em outro lugar. Passo quase sempre o fim de ano na minha cidadezinha do interior. Vou à praça, como todo mundo, mais por ir, como sempre vou quando estou lá. Não porque seja fim de ano, mas porque costumeiramente, com não há muito o quê fazer, vou para a praça conversar com os amigos e beber cerveja.
A festa que me refiro foi em Copacabana na década de 1970, por volta de 1977, 1978. É. Foi num desses dois anos. Tempo em que o carro nacional mais moderno era o Corcel II, aliás ano de lançamento daquela maravilha. Fusca a febre do país. E fomos à festa. Seis pessoas dentro de um velho fusca. Três homens e três mulheres. Na ocasião não havia o Código Nacional de Trânsito, e dentro de um carro podiam ir tantas pessoas quanto possível. Cinto de segurança, nem pensar, eram os peitos mesmo.
Saímos cinco lá do Bairro de Fátima e fomos até o Leme encontrar a namorada do dono do fusca. Já havíamos bebido muita cerveja. Quando chegamos no apartamento dela, ela nos presenteou ainda com um garrafão de cinco litros de vinho. Vinho não era bebida consumida normalmente com hoje. Somente em ocasiões especiais e nem todos podiam beber. O preço era alto. O mais barato mesmo era cerveja. Entramos no fusca e fomos pela Avenida Nossa Senhora de Copacabana em busca de um lugar para estacionar o carro e assistirmos à festa.
O engarrafamento era monstruoso. E olha que foi ainda na década de 1970. E para piorar ainda mais a situação, de vez em quando o fusca dava o prego. Parava e nós, eu e outro amigo, tínhamos que descer para empurrar o carro, pois a mulheres não faziam força, apenas desciam para aliviar o peso. Com o trânsito totalmente engarrafado, e nós dando nossa grande parcela de colaboração, irritávamos ainda mais os motoristas de trás, que impacientes metiam o dedo nas buzinas para sairmos do meio.
Um daqueles meus amigos chamava-se João César, a quem o motorista do fusca chamava de Júlio César. Não sei se por quê. Se por não ter entendido direito o nome do sujeito, embora o conhece há tempo, por gozação, ou por conta da bebida. Assim quando o fusco dava o prego, e olhe que não foi somente uma vez no pequeno trajeto que fizemos, nós descíamos para empurrar e começavam as buzinadas, nosso motorista, já bastante embriagado, descia do fusca, abria os braços e falava:
- Porque vocês estão buzinando? O Imperador, Júlio César, está empurrando o carro sem reclamar e vocês que não são porra nenhuma estão achando ruim!
Quando o carro pegava, seguíamos nosso itinerário, mais na frente novas paradas para empurrar. Finalmente, depois de muitas paradas e xingamentos, chegamos. Descemos e fomos para a beira da praia.
Lá nos instalamos, ou seja, nos sentamos perto de uma grande barraca onde várias e várias pessoas rezavam e faziam oferendas à Iemanjá, e aos deuses do candomblé, da macumba, da quimbanda, sei lá, às diversas entidades do culto deles. Bebidas em profusão de diversas qualidades. Desde a nossa cachaça ao champanhe. Comido de muito também. Farofa e galinha assada principalmente. Cigarros, charutos, velas, imagens, uma série de coisas ligadas à seita.
Ficamos ali por perto observando tudo. Umas pessoas rezando. Outras tomando passes dos pais-de-santo. Outras fazendo oferenda, enfim cada uma que ali se encontrava praticava seu ritual.
Dentro da tenda, desde quando chegamos, um sujeito era assistido por um pai-de-santo. Pois segundo eles, o sujeito estava atuado, ou seja, recebera uma entidade há muito e de quem ninguém conseguia livra-lo. E tome reza, passe e tudo mais que existia para exorcizar espíritos.
Muito tempo depois, já exaustos os pais-de-santo largaram o sujeito de lado, sem tirar o santo, e ele saiu correndo para o mar e lá se jogou, onde ficaria se nós, eu e meus amigos não tivéssemos ido acudi-lo. Pois, o pessoal da tenda não estava nem aí pro cara se afogando.
Finalmente, depois de muito trabalho tiramos o cara do mar, que continuou atuado, com santo e tudo. Aí, nós mesmo resolvemos dar uma de exorcista, ser pais-de-santo e tirar o encosto do sujeito. Começamos a inventar umas orações, rezava tudo o que sabíamos e o que não sabíamos, na falta de reza tome palavrões. Rodávamos o sujeito de um lado para outro e fomos improvisando. Coisa de bêbados e garotos. Depois de algum tempo deu certo. Funcionou. O cara voltou ao normal. Não sabemos se estava fora do normal ou somente embriagado, só sei que ficou tranqüilo e se juntou aos demais companheiros da tenda.
Tirado o santo do sujeito, vamos voltando para o local onde estávamos antes. Aos passarmos perto de um grupo, uma mulher pergunta a outra quem éramos nós. A outra respondeu que não sabia, contudo achava que éramos umas personagens grandes da macumba, como ela falou, e comentou sobre o sujeito atuado há mais de três horas, cujo santo ninguém conseguira expulsar dele e nós havíamos conseguido.
Ouvir aquilo, foi o suficiente para termos a idéia de dar passes nas pessoas,que logo fizeram filas para receberem nossas bênçãos.
Foi só organizar a fila. Demos início ao atendimento, que de imediato seria apenas para as mulheres. Logo a fila estava enorme. Tome a gente dar passe nas mulheres, que gostavam e nada reclamavam. Roda pra cá, roda pra lá, passa a mão da cabeça aos pés, jogando fora as impurezas e estamos fazendo o maior sucesso.
De repente, não sei por que, mas uns caras, que estavam esperando para tomar passe, acho que enciumados, cismaram conosco. Talvez por que as mulheres deles, muitas delas estavam por lá, eles não gostaram de vê-las sendo alisadas por nós e ainda por cima gostando, enquanto nós não mostrávamos nenhum interesse em atendê-los, muito menos encerrar o atendimento feminino.
Aí se junta um bando de caras enfurecidos que parte para cima de nós para nos quebrar na porrada.
Mesmo estando num atendimento feminino muito prazeroso, o jeito foi deixamos nossa sessão de macumba para tratar de nos livrarmos da pisa que levaríamos se ficasse ali. Fizemos carreira e os caras atrás. Corremos de Copacabana a Ipanema com eles no nosso encalço. O efeito do álcool passou rápido, e no meio daquela multidão toda, conseguimos despista-los.
Não sei como não nos perdemos uns dos outros e ainda conseguimos voltar ao lugar onde tínhamos deixado o fusca.
Foi a última vez que me meti a ser pai-de-santo.