O tiro acertou em cheio a têmpora esquerda do garoto.
Não fora um disparo dado por um bandido já acostumado a matar por uns trocados ou por qualquer objeto de valor. Fora sim, um crime cometido por uma criança frágil e assustada, que mal conseguia suportar o peso da própria arma, e da própria vida.
A tocaia se dera em uma esquina do centro da cidade. Talvez a agitação do trânsito tenha precipitado a cena, no momento em que aquele carro preto reluzente parou, em obediência ao semáforo vermelho. Tudo aconteceu em poucos segundos. A menina maltrapilha, visivelmente transtornada, aproximou-se da janela do condutor do veículo gritando para que lhe passassem dinheiro e relógios. Em sua aflição, demonstrava dificuldade em manter uma mira para o cano do revólver engatilhado. Tanto que, ao disparar, a arma escapou-lhe das mãos trêmulas, caindo no interior do veículo.
Pouco antes, ela havia notado que o menino, elegantemente vestido, sentado no banco dianteiro direito tentava, com um gesto afoito, entregar um objeto metálico dourado ao pai.
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Lágrimas serpenteavam pelas bochechas redondas da criança, cujos olhos, negros como jabuticabas, examinavam com compaixão, apesar do desespero, o corpo franzino e alquebrado da mãe deitada à sua frente.
Sentada no chão num canto do barraco, abraçando as pernas encolhidas, Maria, agora com doze anos de idade, soluçava e tentava entender as razões de tanta desgraça que se abatera sobre o seu lar nos últimos meses. A mãe, outrora sadia, responsável por boa parte da renda da família por prestar serviços de faxina em casas de classe média, estava agora incapacitada, gemendo e contorcendo-se de dores reumáticas sobre um colchão surrado e imundo.
Com o pai desempregado e bebendo de maneira descontrolada, as dificuldades naturais de se viver em uma favela haviam se agravado consideravelmente nos últimos tempos.
Lembrava-se, com mágoa, da última vez em que estava fazendo seus deveres escolares, mantendo uma rotina que lhe permitia, pelo esforço e dedicação, ser a primeira aluna da classe e alimentar a esperança de, um dia, tornar-se uma advogada. Sua concentração, naquele início de noite, fora bruscamente interrompida quando seu pai abriu violentamente a porta e adentrou o casebre, completamente bêbado e transtornado. O pai pediu dinheiro à mãe, em meio a gritos e palavrões, pois imaginava que ela ainda dispunha de algumas economias guardadas. Em face da negativa, passou a espancá-la com socos e pontapés, até que Maria interviu em socorro da mãe, quando, então, as atenções do pai se voltaram para a filha. O primeiro gesto foi esbofeteá-la e, a seguir, dizendo que a menina já tinha idade suficiente para trazer dinheiro para casa ao invés de dar despesas com bobagens, pegou seus cadernos, rasgou-os e atirou os pedaços na lata de lixo. Ainda alucinado, agarrou-a pelos braços e arrastou-a até o botequim no final do quarteirão, onde a ofertou à prostituição por alguns trocados.
A partir daquela noite Maria não voltou mais para casa. Seus sonhos se esfacelaram e tudo mudou radicalmente... Passou a viver nas ruas, dormindo debaixo de pontes com seus colegas de infortúnio e praticando, de forma gradual, todos os atos inerentes à marginalidade.
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É provável que, pelo fato de ser filho único, João tivesse sobre si as atenções redobradas naquela casa. Acabara de completar quatorze anos e a adolescência, via de regra fase polêmica e conflituosa na formação dos jovens, não havia, até então, modificado em nada seu comportamento sempre exemplar. As pessoas de seu convívio, tanto os familiares como os amigos, devotavam-lhe um carinho especial ao acompanharem e testemunharem sua esmerada educação.
O chefe da família, médico conceituado e de renome internacional, exercia uma natural influência sobre o menino. Tal fato passou a ser notório desde o ano anterior, por ocasião do congresso sobre cardiologia em que ambos, pai e filho, estiveram na cidade de Punta del Este, no Uruguai. Como espectador privilegiado, João sentou-se na primeira fila e pôde assistir, com indisfarçável orgulho, a brilhante apresentação do pai, que motivou sua firme decisão de tornar-se, também, um cardiologista no futuro.
E este futuro João podia antever claramente agora através dos reflexos provocados na superfície metálica da medalha que trazia nas mãos, quando o carro do pai passava sob os postes de iluminação das ruas. Ainda emocionado pela cerimônia em que acabara de participar, acariciava o troféu que lhe havia sido entregue pessoalmente pelo Governador do Estado por ter concluído o ensino fundamental em primeiro lugar.
Aquela sessão solene era digna de uma comemoração, e, portanto, nada mais justo do que atender ao pedido do homenageado para um jantar de gala em um restaurante de sua escolha. Abrindo um precedente especial pela ocasião, a mãe cedeu, em caráter excepcional segundo suas próprias palavras, seu lugar ao lado do marido e sentou-se no banco de trás.
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Um gemido angustiante da mãe despertou a menina de seus devaneios, e agora, diante de uma realidade ainda mais cruel comparada ao dia em que abandonou o lar, viu apagar dentro de si a pequena chama de esperança que vinha tentando manter acesa.
Completamente desorientada, sem conseguir obter o amparo procurado junto à mãe, em face de seu sofrimento cada vez mais desesperador, Maria voltou para a única escola que lhe abria as portas naquele momento: as ruas.
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A alegria tomava conta daquela pequena família até o momento em que o veículo parou em um sinal de trânsito e uma menina de olhos negros, suja e mal vestida, surgiu na janela do motorista empunhando uma arma.
Momentos depois, abraçado ao filho morto, o pai desesperado e em estado de choque, viu em seu colo dois objetos manchados de sangue: uma medalha dourada e um revólver.