29 de outubro de 2006. Este seria apenas mais um domingo de primavera, não fosse por um detalhe: dia de eleição para Presidente da República do Brasil e para Governador em alguns estados do país, inclusive no RS.
Apesar das pesquisas já terem antecipado o resultado do pleito, ainda há muita expectativa no país. Naquela manhã, Ana Maria e Francisco acordam cedo, preparam o chimarrão e munidos de garrafa térmica, cuia e título de eleitor dirigem-se à zona eleitoral. Depois de votar, retornam para casa e acomodam-se frente à televisão, pois não pretendem perder nem um “lance” da disputa que está sendo mostrada para o mundo inteiro.
Na hora do almoço os filhos vêm juntar-se aos pais e o assunto é um só: política. Patrick, o filho mais velho, logo em seguida sai para votar e Thomas, o caçula, vai jogar futebol. Antes, combinam que às 18h estarão todos juntos novamente para acompanhar o escrutínio dos votos. E isto realmente acontece. Só que, às 18h e 10 min, após uns quinze minutos de vento forte, falta luz. A tela negra da televisão é literalmente a imagem da desolação para a família. O computador, finalmente tem uma folga no domingo!
Francisco apanha o boleto de cobrança da energia elétrica e telefona para a AES SUL. Depois de inúmeras tentativas é atendido. Solicitam-lhe o código do cliente, pedem que ele anote o número do protocolo e prometem tomar providências.
Ana Maria sugere um café, enquanto aguardam a luz. Pega a cafeteira, a água, o pó de café e dirige-se para a tomada. Sem energia elétrica nada feito! Ana Maria procura uma caixa de fósforos e a encontra, mofada, no fundo de uma gaveta do armário da pia da cozinha. Depois de riscar uns dez palitos de fósforos consegue acender o fogão. E já começa a acender também, velas, dentro da casa que está mergulhada na penumbra. Pede a Thomas que pegue um pacote de pão no freezer e recomenda que ele retire o lacre de metal do saco plástico, antes de descongelar o pão no forno de microondas. Thomas grita para a mãe: - Pensa mãe, pensa!
Francisco volta e meia vai à garagem, liga o rádio do carro e vem com notícias do pleito eleitoral. Ainda não tem nada definido.
A família toma café à luz de velas.
Patrick sugere que saiam que vão a algum lugar onde possam assistir televisão. O controle remoto do portão da garagem, elétrico, não funciona. Chove muito e isto dificulta a abertura manual do portão. Resignada, a família permanece em casa.
Ana Maria resolve ligar para a AES SUL. O número dá sinal de ocupado, mas, ela continua tentando, até conseguir a ligação. Então começa a tocar uma música no telefone, que fala sobre a energia, a chama que nunca se apaga! E toca uma, duas, três, quatro, cinco vezes! Ana Maria já decorou a música quando uma voz feminina atende:
- Boa noite! Regina às suas ordens!
Ana Maria responde: - Boa noite Regina! Onde está a energia, a chama que nunca se apaga? São 20h. Há quase duas horas estamos às escuras! Não sabemos nem o que está acontecendo no país. Justamente hoje! A que horas vem esta luz?
A telefonista diz que estão providenciando e pede que ela anote o número do protocolo.
Francisco volta agitado da garagem e dá as notícias de supetão:
- O presidente foi reeleito!
- O Rio Grande do Sul já tem governadora!
O silêncio toma conta da casa em sombras. Ana Maria sabe que não virão ligar a luz!
Talvez depois de encerrar a apuração, talvez depois dos festejos venham.
Francisco e Patrick iniciam uma análise sobre os resultados das eleições. Colocam na balança a ética e a fome. Ana Maria acha que eles estão sendo simplistas. Claro que muitos fatores pesaram na decisão final! Ela não concorda com a discussão. Acha que a escuridão pode obscurecer as idéias.
Ana Maria pensa alto: - Neste momento estamos aqui, às escuras, atrás de grades, enquanto milhares de pessoas, livres, comemoram nas ruas.
São 21h. Francisco liga novamente para a AES SUL e a telefonista mais uma vez diz: _ Por favor, anote o número do protocolo!
Thomas dirige-se à sala de som e toca um solo de bateria. Patrick recolhe-se ao quarto. Francisco fala que vai esperar a luz, acordado. Ana Maria abre a porta da sacada. A chuva parou. Na árvore mais alta em frente da casa, um vaga-lume dança entre os galhos parecendo uma estrelinha. A lua minguante sorri amarelo por sobre um muro de nuvens prateadas. Uma garoa suave começa a cair, juntando o seu murmúrio ao coaxar dos sapos, ao cricrilar dos grilos, ao perfume de flores do jasmineiro, ao espocar dos foguetes, formando um amálgama sobre a terra escura.
Ana Maria fecha a porta. Vai tentar dormir. Sabe-se lá quando virá a luz!