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Contos-->O RETÂNGULO AMOROSO -- 23/04/2008 - 13:54 (Rudolph de Almeida) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O RETÂNGULO AMOROSO

I

Nós somos um enquanto somos vários. Explico. Temos uma só essência, mas desempenhamos vários papéis. O homem, por exemplo, exerce um papel de pai, outro de marido, outro no seu ambiente profissional. Não se comporta da mesma forma diante de seus colegas de trabalho, dos vizinhos, dos amigos, dos filhos. A mulher, da mesma forma. A magnífica mulher-mãe pode ser uma esposa insuportável, uma filha dedicada, uma amante calorosa, uma colega traiçoeira, uma amiga confiável.

No fundo, somos todos atores atuando em vários filmes ao mesmo tempo. Dramas, pastelões, filmes ruins ou obras-primas. Para os outros, nós somos os papéis que representamos, pois retratam aquilo que conseguimos exteriorizar de nossa personalidade. Já nós não nos percebemos assim, de regra nos vemos com um ser uno e nem temos muita consciência de nossos os papéis e até nos confundimos com eles, perdendo nossa identidade.

II

Amanheceu, mas a luz do sol não brilha nas janelas. A manhã veste cinza escuro, muito escuro, entremeado com um azul funesto. A noite quente e úmida já fazia avisar que a manhã seria de tormenta, mas a roupa dela ainda estava seca. Ela ainda não chorara, estava esperando não sei quê, de cara emburrada. Via-se que era para logo, já já cairia em prantos.
- Beto, bota os tênis na Cris!
- Estou tomando meu café, estou atrasado ...
- Não podes me ajudar? Ainda não tomei café e também tenho que trabalhar e estou vestindo o Bruno!
- Sempre a mesma coisa! É só tirar as crianças da cama mais cedo! Já falei! Mas não, tudo na última hora, todos os dias. Vem Cris, traz os tênis aqui para o pai botar!
- E por que tu não tiras as crianças da cama mais cedo? Por que tem que ser eu? Se fizesses a tua parte, tudo seria bem mais fácil.
- Lá vem tu de novo. Eu sou mesmo um estorvo nessa casa, fonte de todos os problemas. Não resolvo nenhum e ainda crio novos. Já tu, bah! perfeição em pessoa...
- Sem discussões bestas na frente das crianças, por favor!.
Um típico café da manhã em família para Beto, Lúcia e as crianças.
- Estou saindo! Vamos lá criançada!
- Tá pai, espera, estou escovando os dentes ...
- Saco! Estamos atrasados! Corre, corre!

Lá se vão eles. Os quatro pegam o elevador até a garagem, entram no Fiesta branco e saem para mais um dia. Beto dirige, deixa as crianças na escola. Habitualmente, depois disso, leva Lúcia ao trabalho e uma hora depois chega ao escritório, às oito horas da manhã. Hoje, porém, Beto e Lú têm um compromisso. Têm hora mercada numa terapeuta de casais. É a primeira consulta. Foi sugestão da Angélica, amiga da Lú.

São quatro anos de anos de namoro, mais dez de casamento. Dois filhos, Cristine de oito anos e Bruno de cinco. E o desgaste, as dúvidas, as diferenças amplificadas pelo tempo, as mudanças de cada um incompreendidas pelo outro, a perda da própria identidade confundida com os papéis de marido, pai, esposa e mãe. O cansaço, a vontade de jogar tudo para o alto, de recomeçar, de reviver em vez de apenas sobreviver. As discussões intermináveis, as brigas. A separação. Será? É o que queremos? Porque não somos mais felizes? Podemos voltar a ser? Perguntas. As respostas a terapeuta deveria dar, ou, pelo menos, indicar o caminho. Pelo menos tentariam.

Lú acha que já nem gosta mais de Beto. Considera que ele não é a mesma pessoa com quem se casou. Ela se sente só, tem um marido, mas não tem um amigo, um companheiro. Ele não se preocupa com as necessidades dela, sua vida de casada se resume à maternidade. No passado Beto era alegre e divertido. Brincalhão. Agora vive de mau humor e não tem paciência para nada. Tem até preguiça de sair de casa nos fins de semana. E o sexo. Que sexo?

Ele ainda gosta dela, mas é um pouco só, um nadinha, reflete. Vem pensando que a relação já deu o que tinha que dar. Se não fossem as crianças ... Ela sempre se acha com a razão, pensa ele. O que ele diz não tem importância, sempre está errado. Ela não era assim no começo, era atenciosa, carinhosa e tudo mais. Quando ele quer descansar ela quer sair para algum lugar, ir no shopping, no parque com as crianças. Olhar as vitrines das lojas do shopping lá é um passeio? E fica reclamando, reclamando, reclamando ... não vale mais a pena tentar conversar.

A manhã agora está esbravejando, furiosa, com seus trovões, explosões de fúria, bombas de efeito moral. Para enfeitar a roupa, agora utiliza lindos brilhos e filetes dourados que subitamente espocam para em seguida sumirem. Aqui e acolá. Longe de conferir um aspecto menos soturno à indumentária, mais temor o artifício provoca nos humanos. Os relâmpagos parecem mágica e onde há relâmpagos há raios. E estes queimam e matam.

Beto acha uma vaga para o carro a umas cinco quadras do prédio onde fica o consultório. Enquanto estaciona, a chuva começa. Pinguinhos tímidos no início, baldes de água depois. Há um rio descendo do céu, entre bombas e fogos de artifício. Felizmente o vento é moderado, os guarda-chuvas irão protegê-los um pouco, mas isso não os impedirá de chegarem ensopados no consultório.

Saem do carro e vão andando na calçada junto aos prédios, aproveitando a proteção das marquises. Não há muita gente a pé na rua, a maioria preferiu ficar onde estava esperando a tormenta passar. Adiante, uma quadra inteira sem marquises. É uma praça e terão que atravessá-la, expondo-se a toda a fúria da chuva. Lá se vão.

Um estrondo. Um clarão. Dois corpos atirados ao solo. Três pessoas corajosas sujeitam-se ao temporal e se aproximam para ver o estado das vítimas. Estão vivas, ao que parece, mas desacordadas. Os corpos estão fumegando, envoltos num odor de cabelo queimado. Alguém corre para chamar socorro. Ele demora. Com a tormenta, o trânsito está lento. Enfim uma ambulância chega, subindo a calçada da praça. Beto e Lú vão para as macas, para ambulância, para o hospital. Lá chegando, os médicos constatam severas queimaduras provocadas pelo raio. Estão inconscientes, mas respiram sozinhos, mas seu estado piora. Ambos entram em coma. São intubados e vão para UTI. Os danos ao sistema nervoso e ao cérebro ainda são incertos e o prognóstico é indeterminado.

III

Enquanto isso, a manhã se acalmou, depois de despejar sua ira.
Sopra uma brisa fresca que vai fazendo-a mudar o tom da roupa, ainda cinza, mas cada vez mais claro. Da chuva, só restam uns pinguinhos aqui e ali. A tarde chega vestindo azul claro salpicado de pompons gris. As ruas ainda estão úmidas, com poças d’água sujas pelos detritos da cidade.

Naquela praça há duas pessoas caminhando. Um homem e uma mulher. Não se conhecem e parecem meio perdidos. Ele está parado olhando o movimento da rua. Ela sentou-se num banco no meio da praça, do qual retirou a água com a mão. Nem repararam um no outro. Ele senta-se em um banco na calçada, de frente para a rua, até que um ônibus o molha com um jato de água da chuva ainda empoçada na via. Ele se levanta, dá uma volta na praça e acaba por sentar-se no mesmo banco que a mulher. Um em cada ponta do banco, olhando para o nada, por uns quinze minutos.
- Você está todo encharcado – diz a mulher, puxando assunto.
- Ah! Um ônibus jogou água suja em mim.
- Choveu bastante, né? Até que foi bom, estava tão quente ...
- Verdade. Esta chuva veio a calhar. Qual seu nome?
- Lúcia. Ou Lú. E você?
- Roberto. Ou Beto – diz enquanto solta um pequeno gracejo – você está esperando alguém?
- Não. Quero dizer, não sei. Estou um pouco confusa – ri - , mas não é nada, nada de importante.
- Eu estou só passeando um pouco. Espairecendo. Apreciando o cheiro da terra e do asfalto molhados.
- Parece que a chuva lavou minha alma, diz Lúcia. Fico me lembrando dos banhos de chuva que tomava quando criança, ah!, coisa boa!
- Isso! Os banhos de chuva! Pena que minha mãe não gostava, dizia que eu pegaria uma pneumonia ou que um raio cairia na minha cabeça, mas as previsões dela nunca se concretizaram.
- A infância deixa saudades ... a adolescência, a mocidade ... como a gente muda com o tempo, né?
- Muda. Mas acho que agente segue mudando a vida inteira, sabe? Hoje mesmo eu estou me sentindo diferente de ontem.
- O que mudou tanto assim?
- Sei lá. Não sei bem mesmo. Parece que eu era uma pessoa amargurada e estressada, um pouco cansada da vida, mas agora me sinto leve, relaxado, curtindo cada momento. Estou aqui, sentando nessa praça, sem ter o que fazer, conversando com uma estranha, mas estou adorando tudo.
- Estranha não! – remenda Lúcia, sorrindo – eu já me apresentei! Fala aí, o que você faz?
- Sou vendedor. Difícil, muita pressão no trabalho. O salário fixo é baixo, dependo das comissões e nem sempre as vendas correm como o esperado. Tem o cumprimento das metas, o chefe estressado, a competição entre os colegas ...
- Imagino. Eu sou professora de inglês. Dou aula em duas escolas. É divertido, mas o salário também é mixaria.
- A gente se mata trabalhando para os outros e o salário é uma titica.
- Titiquinha ....

No início, nem haviam reparado um no outro. Agora tudo havia mudado. Já se haviam percebido como simpáticos e atraentes. A conversa corria relaxada entre sorrisos e olhares sedutores. Falaram sobre várias coisas. Sobre as diversões da mocidade, onde encontraram vários pontos em comum. De seus casamentos e de suas desilusões com eles. Do futuro, de seus anseios, de seus gostos e desgostos.

Já estava escurecendo e ambos continuavam ali, sorrindo, conversando, gargalhando. Beto coloca sua mão sobre a de Lúcia e ela deixa. Pouco depois, as mãos se entrelaçam e se apertam. Ele diz que a achou muito especial; bonita, inteligente, divertida, simpática. Ela, ruborizada, retruca com uma observação sobre as coincidências da vida, sobre o porquê de duas pessoas se conhecerem assim, por puro acaso, numa praça, sem mais nem menos. Beto argumenta que o melhor da vida é que nunca sabemos o que nos espera na próxima esquina ou após a próxima chuva. Ou na próxima praça, emenda Lú, sorrindo. Beto se aproxima e a beija na face, ela o abraça. Depois disso, foram só beijos e suspiros, enquanto o sol encabulado ia saindo sorrateiramente.

A praça e as ruas ao redor estavam escuras, pois a iluminação não se acendera. Talvez o temporal tivesse danificado a rede elétrica, mas eles nem repararam. Lú pergunta se Beto acredita em amor à primeira vista. Ele responde que começou a acreditar hoje. Os beijos e toques deixam de ser afetuosos para se tornarem sensuais. Mãos percorrem corpos, abrem botões e fechos, entre gemidos e murmúrios. Beto diz que já não consegue se controlar mais. Nem eu, responde Lú, lânguida. Eles vão se sentar na relva, ainda um pouco úmida, ocultos entre um monumento e um pequeno prédio utilizado pela equipe de manutenção da praça. Ali, se conhecem definitivamente e se amam completamente, como se fosses dois indigentes apaixonados.

IV

Na UTI, Beto e Lúcia ocupavam camas contíguas. Após anos de casamento, já nem tinha consciência de quem eram de verdade. Já haviam confundido a si próprios com os papéis de pai-marido e mãe-esposa. Viam um ao outro apenas nos estreitos limites dos papéis que desempenhavam. A mãe-esposa Lúcia não amava o marido-pai Roberto. Já nem se lembrava de quem era mesmo Roberto, o autêntico, mas sabia quem era seu marido e o pai de seus filhos e já estava enfastiada dele. Roberto, da mesma forma, pouco se lembrava de Lúcia, aquela moça adorável que conhecera anos antes. Sua mulher era uma chata, sem dúvida. Não era mais uma mulher-amante, uma fonte de carinho e poço de compreensão, era somente uma qualquer que havia se tornado sua esposa. Ambos estavam cansados de seus papéis e da péssima representação do outro cônjuge.

Beto foi o primeiro a abrir os olhos, fazendo um esforço imenso para levantar o enorme peso de cada pálpebra. Permaneceu fitando o vazio por bastante tempo, sem se mexer. Enfim, consegue mover lentamente a cabeça e ver Lúcia na outra cama. Seus olhos mortos renascem. Não compreendia o que se passava, o que havia acontecido, o pensamento estava desorganizado, perdido.

Cerca de uma hora depois, foi a vez de Lúcia despertar. Vagarosamente, foi tomando consciência de onde estava, sem compreender também. Ela vê Beto, os dois se olham carinhosamente, esboçando um sorriso espontâneo.

Após dois dias, ambos vão para um quarto. Agora, eles já sabem o que ocorreu e que estiveram à beira da morte. Na primeira oportunidade, Beto se levanta, com enorme dificuldade, dirige-se à cama de Lú e a beija afetuosamente. Diz que a ama. Sou louca por ti, responde Lú.

Em poucos dias receberam alta e voltaram para casa. Consta que não é incomum pessoas atingidas por raios apresentarem alterações de comportamento. Por conta disso, os amigos e familiares do casal não estranharam tanto o fato de que agora eles pareciam recém-casados. O tratamento era afetuoso o tempo todo. As brigas haviam cessado e não corriam nem mesmo pequenas discussões. Alguns atribuíram a mudança de comportamento do casal ao fato de terem estado tão perto da morte.

Independentemente da causa, o fato é que Beto e Lú haviam voltado a se amar como nos primeiros dias. Amavam-se e admiravam-se como eram e não confundiam as funções de cônjuge e pais consigo próprios e com o outro, embora nem tenham se aparecebido disso. Durante o coma, as almas de Beto e Lú de algum modo haviam se reencontrado, posto que estivessem perdidas uma da outra há anos.

Uma semana depois do retorno, a secretária da terapeuta liga para a casa deles e Lú atende. A secretária informa que como a consulta não havia sido desmarcada, teriam que pagá-la, ainda que não houvessem comparecido. Lú explica brevemente o ocorrido, para espanto de sua interlocutora, que comenta ter lido a respeito nos jornais, mas que jamais poderia imaginar que seriam eles as vítimas. Pede desculpas pela cobrança e questiona se Lúcia não quer aproveitar para marcar nova consulta. Lú responde que não, que não é mais necessário. Na verdade, ela já nem se recorda direito por qual motivo haviam marcado a consulta, talvez o esquecimento se devesse ao acidente. A secretária diz que tudo bem, que a doutora permanece à disposição, quando quiserem é só ligar. Lú agradece e se despede.

De lá para cá o casal tem vivido muito feliz. As crianças estão muito bem e a família está cheia de planos para o futuro. A parte ruim e difícil dos últimos tempos de suas vidas foi calcinada por um raio e o que sobrou foi o amor resgatado das cinzas, qual fênix rediviva.


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