Estamos no tempo dos circuitos universitários pelo interior, na década de 70.
Shows de intérpretes famosos da MPB, de cidade em cidade, reunindo público predominantemente estudantil, num clima bem descontraído.
O show de hoje promete. É aguardado com muita expectativa e cercado de cuidadoso planejamento.
Famoso e respeitado, o principal nome do espetáculo já está na cidade.
Assim, logo pela manhã preparo o equipamento e vou ao seu encontro, para uma daquelas entrevistas em que o próprio artista fala do evento, confirma sua presença e responde algumas perguntas do repórter.
A entrevista irá ao ar no noticiário de meio-dia, na Rádio Alvorada.
No hotel, localizo o apartamento onde ele se hospeda. A porta está entreaberta, mas prefiro tocar a campainha.
A voz vem lá do fundo, pedindo que eu entre.
Dou uns passos e paro. Não vejo ninguém.
-- "Bom dia, amigo. Podemos conversar?", pergunto, sem conseguir localizá-lo.
-- "Entra pra cá", responde.
Dou mais uns passos em direção à suíte, o único lugar onde ele poderia estar. Examino o ambiente e não vejo ninguém.
-- "Estou aqui. E você, onde está?", pergunto, já imaginando que alguém está de brincadeira.
-- "Chega mais".
-- "Sim, onde você está?", insisto.
-- "Vem pra cá, estou no banheiro".
Êpa, espanto-me em silêncio. No banheiro?
-- "Não, não. Fique à vontade, eu espero..."
-- "Vou demorar aqui. Pode chegar, não tem problema, podemos conversar aqui mesmo", explica o artista.
A situação parece-me estranha. Um ídolo está ali no banheiro, diz que vai demorar e me pede para entrevistá-lo lá mesmo.
O problema é que, se eu não fizer isso, nem haverá tempo para apresentar a matéria ao meio-dia.
Então, façamos do banheiro a sala de visita.
Avanço, ainda indeciso, e logo sinto um cheiro forte. Não, nada insuportável.
É o cheiro de um charuto, fumegando no banheiro.
Há uma banheira com água límpida quase até a borda. Dentro dela, um homem pelado. Tem o charuto em uma das mãos. Um copo com algo parecido com uísque está ao seu lado. À sua frente, um suporte apoiado nas bordas laterais e, sobre ele, uma pequena máquina de escrever.
Ali está, em carne e pêlos, o ídolo que logo mais brilhará no palco.
Vinícius de Moraes pode ser um pouco excêntrico, mas na intimidade me parece gentil e atencioso, além de desinibido.
Vamos lá. Ligo o gravador e começo o bate-papo.
Mas, ao contrário dele, não estou à vontade.
Afinal, diante de mim está uma celebridade em franca nudez a desconcertar minha crônica sisudez.
Contudo, o que mais me incomoda é o eco dentro do banheiro. Isso não fica bem na gravação. Acho que os ouvintes irão notar algo estranho e não sei se devo explicar o motivo do eco na reportagem.
Bem, a essas alturas não há mais o que fazer.
Conversamos sobre o circuito universitário, sobre suas recentes apresentações em países vizinhos, as atuais parcerias, etc.
À noite, acontece o esperado: o show é um sucesso. Vinícius canta e fala durante horas, o tempo todo com bebida ao alcance das mãos.
Enquanto o calor do público embala o poeta, o verão do interior, regado com bebida forte, não lhe faz nada bem.
Resumindo: ao final do show, sai do palco diretamente para a emergência do hospital.
Quem diria, aquele inofensivo copo na banheira, pela manhã, dera início a um porre que acabaria na Santa Casa.
Uma vez internado, quer o paciente permanecer ali por mais uns dias, para um checape periódico.
Assim, pede ao médico que avalie minuciosamente os problemas com o cachorro.
-- "O quê? Que cachorro?", pergunta o médico.
A resposta tem pouca poesia e muita filosofia:
-- "Doutor, nunca lhe disseram que o uísque é o melhor amigo do homem? Ele é o cachorro engarrafado. A questão é que, de vez em quando, preciso ver se esse cachorrão não está atacando minha saúde..."