Sessão de autógrafos (*)
Athos Ronaldo Miralha da Cunha
Sou um modesto e perseverante escritor.
Publico alguns textos em jornais e num site que poucas pessoas acessam, hoje, estou autografando o meu segundo livro de contos nessa contagiante e festiva feira.
Tenho uma longa trajetória nesse oficio, mas com poucas publicações e um reconhecimento aquém do que imaginava. Com muito esforço estou aqui, nessa movimentada feira do livro de uma pequena cidade interiorana.
Em minha frente uma fila de exatos sete pretendentes a um autógrafo. São poucos. Serão sete os leitores que folharão essa despretensiosa publicação.
Um senhor, já idoso, cabelos grisalhos, se aproxima e me cumprimenta cordialmente.
− Li o seu primeiro livro e gostei do conto Laranja – comentou sorridente.
Então, afirmei que aquele conto era autobiográfico.
Na minha tenra e distante infância eu morava em um pacato vilarejo banhado pelo encontro das águas pardas de dois rios e cortado pela estrada de ferro. Possuía um depósito da Viação Férrea e uma agitada Estação. Cresci com o barulho dos vagões pelos trilhos de minha infância e pelo sino da estação anunciando a chegada ou partida dos trens de passageiros.
Naquele tempo eu estudava em um colégio municipal. Cursava a quarta série do ensino primário. Uma humilde escola com quatro salas de madeiras carcomidas pelo tempo e quatro dedicadas professoras consumidas pela idade. A modestíssima escola ficava a poucos metros dos trilhos. Da nossa sala de aula podíamos ver e ouvir a Maria-Fumaça e sua tropilha de vagões. E o seu enorme rabo de fumaça quando cruzava vindo da fronteira.
Para freqüentar o colégio eu caminhava muito, umas dez longas quadras, e tinha que cruzar pelos trilhos da Viação Férrea. Minha mãe sempre recomendava muita atenção ao passar pelos trilhos, deveria olhar para os dois lados. Ela tinha uma preocupação exagerada. Afinal, era compreensível, eu contava com apenas nove anos de idade.
A vida estudantil era tranqüila, aprendia fazer contas, estudava tabuada e gostava de inverter as orações. Era o que eu melhor fazia nas aulas de Linguagem. Certa feita, em uma prova de geografia, eu cometi um erro que até hoje não esqueci. E que me marcou muito. Respondi que os únicos países da América do Sul que não faziam limites com o Brasil eram o Chile e a Bolívia. A malvada e insensível professora que hoje só lembro o sobrenome, Machado, não deu sequer um meio acerto.
Mas o fato é que em uma tarde de sol fraco e vento forte, diante da linha da Viação Férrea, eu ouvi o baralho peculiar da Maria-Fumaça se aproximando. Então, como recomendado, sentei em uma enorme rocha e aguardei a passagem do trem.
Era o trem de passageiros que vinha de São Borja. Poucos viajantes, mas um deles chamou atenção. Um senhor, talvez um ferroviário, cabelos volumosos e negros. Tinha em uma das mãos uma laranja que, decerto, estava prestes a descascar para saboreá-la antes de chegar ao destino. Vendo um guri sentado à beira da estrada de ferro contemplando a passagem do trem, o senhor de volumosos cabelos negros fez menção de atirá-la como quem diz – Ei garoto, queres uma laranja?
Evidente que sim. Fiz sinal de positivo com a mão. E a pequena fruta voou em minha direção. Corri e apanhei a poucos metros de onde estava. Foram questões de segundos. Não tive tempo de agradecer a gentileza do viajante. E muito menos de fazer um aceno, pois o trem sumia na curva antes da ponte.
E foi uma das últimas vezes que eu presenciei a passagem do trem por aquela via férrea. Em alguns meses nos mudaríamos de cidade. E o vilarejo, a escola e a velha Maria-Fumaça seriam apenas recordações em um conto.
Ao chegar em casa contei para minha mãe que havia ganho de um viajante. Minha mãe descascou a fruta e sorvi em gomos com algumas pitadas de açúcar que era como eu gostava de saborear as laranjas.
Esses gestos simples, essas pequenas atitudes marcam a vida das pessoas, principalmente, de um guri sentado a beira de uma estrada de ferro de uma remota década de um vilarejo sumido no mapa.
No meu primeiro livro transformei essa singela passagem da infância em um conto sem grandes pretensões. Apenas, pelo fato de colocar numas breves linhas um marcante relato de um guri.
Agora, eu estava, ali, autografando o livro para um senhor que gostou de um dos meus contos. Justamente o conto Laranja. O bom dessa vida é que a gente se surpreende a cada publicação, a cada contato com os leitores, mesmo que sejam poucos como os meus.
Quando vou agradecer pelo seu prestígio, ele simplesmente comenta.
− Eu sou personagem de seu conto. Eu era o senhor de volumosos cabelos negros. Eu estava naquele vagão.
(*) Classificada no 6º concurso de contos Luis Jardim.