Sete horas da manhã, toca no rádio relógio a célebre musiquinha “Vambora, vambora, tá na hora, vambora, vambora...
- Sete e cinco!
- Repita...
- Sete e cinco!
Vozes estereofônicas o acordam. Ainda meio tonto, vê o lugar ao seu lado vago, frio e desarrumado. Levanta e repara, pela porta da cozinha, na esposa preparando o desjejum. Um cheiro forte de queijo quente e de café fortíssimo. Bom dia, ela diz. Ele só balança a cabeça. Passa pelo quarto dos filhos, uma correria para ir para escola. Aquilo era o que ele menos desejava. Ver aquela confusão. Precisava de paz.
- Pai, preciso de dinheiro para tirar umas cópias e para comprar o mate...
- Hum... – num olhar fulminante para a filha, que se escondeu atrás do prato de sucrilhos.
- Eu também pai, pois tenho que comprar um livro de bio...
- Tá. – o filho olha para mãe sem entender. Ela só meneia a cabeça, devagar.
- Você tá me ouvindo pai? – teima o filho
- Pega a carteira ali!
As reclamações da mulher, o bate-boca matinal por causa do encanamento que sempre está vazando, os vizinhos já passam olhando nossa casa, temos que trocar o piso pois a fulana tem um piso lindo e esse nosso já está gasto e velho, e olhe para mim, não me deixe falando assim, arrume essa gola, eu passo e repasso suas camisas para isso...
Numa marcha, as palavras percorrem o grande corredor que vai de um ouvido ao outro. Ele coloca a gravata, arregaça as mangas pelo calor infernal das sete e trinta e três da manhã, pega a pasta e sai, batendo a porta atrás dele. Parte em direção da estação de metrô, que fica a dez minutos da sua casa, correndo para não perder o de costume, o metrô de dez para as oito.
Na rua as árvores assobiam e farfalham como num gargalhar, gozando da condição daquele homem que sempre lutou para ter paz, sossego e uma vida tranqüila. Em seus passados trinta e cinco anos tinha chegado ao ponto de não querer ouvir ninguém, nem ao menos seus filhos. E as árvores riam da sua cara, os pássaros se divertiam com o cenho franzido e as costas curvadas daquele homem que parecia mais estar indo para a forca do que indo para o trabalho. Qualquer semelhança...
Para piorar as coisas, a Divina Providência manda dos céus mais uma provação para a sofrida vida do homem. Bosta de pombo. Exatamente no seu ombro esquerdo, escorrendo verde pelo peito na altura do coração e caindo dentro do bolso no qual estavam suas mais queridas canetas.
- Caralho, maldita pomba, maldita. Que eu fiz para merecer isso, meu Deus. Me dá uma luz... – as árvores param, nesse momento, de balançar, o vento bom que o confortava sumira.
Chegara ao metrô, doze minutos para as oito. Olha o relógio e torce para estar correto. Se sente cansado e ainda tenta limpar a bosta de seu ombro. Já limpara as canetas e as guardou na pasta rapidamente. O mundo em sua volta não é mais o mesmo, tenta abrir os olhos com firmeza, mas não consegue. Tonto, porém ainda lúcido ao ponto de enxergar a catraca, põe a mão esquerda no bolso para tirar o bilhete. Está próximo a uma pilastra grande, cinza, de concreto do metrô, onde geralmente se afixam cartazes com avisos ou propagandas. Ele está parado procurando o bilhete quando ouve o tilintintar de uma moeda. Seu corpo gela. Sua visão some de repente. Sente que não pode se mover, nem um dedo, nem um piscar.
Quando a visão volta, tenta olhar para os lados para saber se caíra, se desmaiara, mas percebe que está em pé. Duro. Uma estátua de sal, simpática com a mão no bolso, aparentemente esperando alguém para ir para o trabalho. Todos que passam olham e dão um sorriso amarelo, como se compadecidos com aquela situação. Ele tenta gritar, tenta pular mas é inútil. Não consegue, um bolo na sua garganta prende tudo que pode porventura sair dali, e seus braços já não fazem parte de seu corpo debilitado. Não os sente, simplesmente é como se ele estivesse fora daquele corpo.
- Meu Deus, o que está acontecendo? - perguntou a si mesmo o homem – Eu aqui, estático e ninguém me ajuda. Ah, já sei o porquê... – ele olha no cartaz do metrô afixado no mural próximo a ele no qual está escrito, sobre um papel laminado que imita um espelho, a frase “A pessoa mais importante para nós”. Seu rosto tem uma expressão plácida, um sorriso pequeno nos lábios, algo quase imperceptível, mas simpático. Entra em profundo desespero quando percebe que todos olham e retribuem esse pequeno esgarçar de boca. Uma senhora passa e sorri, um homem de bigode levanta sua sobrancelha e acena com a cabeça, os guardas, mesmo achando estranho, olham o homem como se estivesse esperando alguém.
Já são 9h30 da manhã, a essa hora o ritmo no trabalho já estava a mil: relatórios cuspidos pela barulhenta impressora que não deixa ninguém ouvir nada, nem quem está ao lado, telefones tocando a todo minuto. Os três telefones da sua mesa devem estar deixando a secretária maluca. A essa hora a gravata já está no joelho, 30 copos de café no cesto de lixo e a baia já está fervendo. Dez horas e sente um alívio, pois esse é o momento da reunião e ele está ali, parado, sentindo-se indefeso, como se nu estivesse e todos ali olhando. Os guardas esqueceram dele e foram ver o que os pivetes estavam fazendo na escada da estação, e os últimos correram com seus saquinhos de cola na boca, puxa, solta, puxa, solta.
Onze horas. Estranho, não há fome, não há sede. Nada dói, e ele já está ali há 3 horas na mesma posição, mão esquerda no bolso e pasta na direita, encostado na pilastra cinza e olhando o mural colorido pelos cartazes institucionais e pelas propagandas dos produtos do metrô. Um mosaico do qual ele já se sente parte, uma peça sem cores e sem graça nas obras de arte e nas esculturas da estação. Diferente das outras peças que vão e vêm, a toda hora, todos os dias, hoje ele foi impedido de participar do grande balé no meio do aço, a grande corrida pelo melhor lugar, o grande esforço para entrar no próximo vagão. De certa forma estava feliz por estar ali, contra sua vontade claro, mas certo de que naquele momento ele estava fora do mundo real. O desespero já havia passado, a angústia findara por completo. Três da tarde, o bilheteiro já preocupado com o homem pergunta:
- Quim, e esse homem quem é? – pergunta curioso o homem do guichê.
- Sei lá Jão, tá aí parado desde as oito da manhã. Mas acho que está bem, tem um sorriso simpático no rosto e está respirando. – responde o guarda, que pegara a informação do colega do outro turno.
- Melhor perguntar se ele está bem não?
- Deixe o homem, deixe o homem... – e saiu, rindo da preocupação do amigo.
Novamente o balé se inicia, são seis horas. Mãos e olhos se cruzam, bilhetes entram e saem das catracas no seu eterno tlec-tlec, os digitais indicando quantos ainda restam, verde passa, vermelho pára, passa de novo, roda catraca, enrosca bolsa, cai celular, bate no saco, grito de dor, passa de lado, passa de frente, empurra com a mão, com a bunda, com a pasta. A fila enorme chega até o homem, que parece integrado ao balé, mas hoje ele não passa de cenário. O vai-e-vem constante distrai os transeuntes, ninguém mais se dá conta de que aquele indivíduo, cara de bonzinho, rosto suado e mancha no ombro esquerdo está passando por maus bocados. “Olhem para mim” pensa o homem, o mais alto que pode, um grito ecoa em sua mente. São nove da noite. Hora que estaria chegando a casa, vendo sua esposa vidrada na televisão com a nova novela das oito. Seus filhos, se não na rua, estariam na casa de algum amigo brincando. “Me ajudem pelo amor de Deus...” tenta chorar, mas seus olhos tão calmos não vertem nem uma lágrima. Já está cansado, mesmo não sentindo seu corpo. Tenta achar os motivos possíveis e imagináveis. Psiquiatria seria a solução? Estaria ele louco, imaginando tudo isso enquanto estava em uma cama paralisado? Não, era real demais, era vivo demais para não ser verdade.
Onze e cinqüenta e sete. As portas do metrô já estão sendo fechadas. “Estou aqui, não me esqueçam aqui”. Um guarda vem devagar em sua direção. “Real demais... real demais... Minha vida é real demais para eu estar aqui. Meus filhos, minha esposa, meu mundo. Todos que me amam, que me querem bem. Tirando meu chefe, que deve estar pulando de alegria pois conseguiu uma maneira de me demitir, todos devem estar preocupados comigo. Eu mereço viver... eu mereço viver...”
Meia-noite. O guarda toca o ombro dele. Ele dá a mão para o guarda e se despede dele com um beijo no rosto.