Usina de Letras
Usina de Letras
295 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62171 )

Cartas ( 21334)

Contos (13260)

Cordel (10449)

Cronicas (22531)

Discursos (3238)

Ensaios - (10349)

Erótico (13567)

Frases (50576)

Humor (20028)

Infantil (5423)

Infanto Juvenil (4756)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140791)

Redação (3302)

Roteiro de Filme ou Novela (1062)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1959)

Textos Religiosos/Sermões (6182)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Contos-->A ilha -- 17/12/1999 - 12:01 (Dioclécio Luz) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A I L H A

E

ventualmente surgem baleias na praia. Baleias azuis. Saem do mar até a areia. Rastejam feito serpentes, em bandos descuidados, sacudindo os corpos brilhosos, e depois se aquietam debaixo das palmeiras, onde comentam a vida alheia. Os cetáceos pegam o sol da tarde, rolando montanhosas umas sobre as outras, e quando a tardinha chega é hora delas voltarem para as águas marinhas, onde nasceram, onde tudo nasceu. Somem no horizonte, engolidas pelo lumioso do sol que se enterra dentro d’água.
É nessa hora que ele costuma passar por aqui. Tem um bigode fino, o rosto redondo, olhos puxados, e um terno cinza. É um corretor de imóveis e vive nesta ilha entre os unicórnios e as salamandras, à vontade, com seu sorriso feio, expelido entre dentes grandes e saltados. Tem um hálito forte, misto de ressaca e mentira que distribui entre os poucos habitantes desta ilha. Somos um bando de deserdados, eu entre os nativos, comedores de peixes e alucinações, fantasmagorias. Ele abre a pasta, exibe prospectos em papel couchê e policromia, abre o melhor sorriso e diz, hospitaleiro, espalhando sua saliva marinha na varanda da minha casa de palha, entre os ventos e o barulho do mar: “hoje faremos bons negócios, meu amigo, apesar da crise, da excassez de peixes e do bom senso neste nosso aprazível local, este delicioso balneário, paraíso perdido nos mares do sul”.
Entre clichês e salamaleques desfila sua verborragia e sua papelada bela e inútil. O que construir nesta ilha? Como? Somos só gente, areia e golfinhos, com isso edificam-se sonhos mas não mansões à beira mar, marinas, condomínios fechados. Ele insiste. Diz que volta amanhã para continuar a conversa. Meus argumentos, na sua opinião, não importam muito diante do que pode ser um grande investimento para o futuro. "Pense nos filhos, nos netos, no dia de amanhã", diz ameaçador, sempre sorrindo. E sai com sua gravata azul de bolinhas bege, seu corpo imenso fedendo a maresia, entre dunas de areia e ciclones que se confundem com a noite e as estrelas.
Estou na ilha há menos de um ano. Aqui é o meu paraíso, e meu inferno. Minha prisão e meu exercício de liberdade. Nos dias em que chove tenho vontade de morrer; quando faz sol me transformo em sol e viro Deus.
Amanhã escreverei uma carta à minha filha contando sobre a ilha. Vou falar dos unicórnios, estes equídeos de pele branca e chifre marrom que os nativos usam para transportar peixe, camarão e carangueijo. Aqui são criados soltos e o sol costuma encontrá-los alvorecendo na beira da praia, banhando-se nas águas quentes; às vezes cobertos de algas, brincando, em simulacros de luta.
Os unicórnios são seres dóceis e se dão bem com os habitantes da ilha. O mesmo não acontece com os lobisomens. Há algo no sangue ou no odor dos seres licantropos que afugentam as pessoas, deixam-nas ariscas, agressivas, até...
Não. De que estou falando? Se revelar isso à minha filha, ela não irá acreditar. Vai pensar que enlouqueci. Eu, nesta ilha, metido entre seres irreais... Mas irreais que têm realidade? E tampouco posso contar das mulheres desta ilha - à noite se transformam em panteras, mulheres-panteras, íncubos deliciosos perambulando entre o vento e a areia fina nas densas noites locais...
Filha, não estou a inventar. Esse povo existe. A ilha existe da mesma forma que eu existo e você também, e sua mãe, essa puta que lhe gerou num raro momento de amor. Eu sei, ao seu lado, presença demoníaca, ela vai insistir no meu desequilíbrio mental. O louco não sou eu, filhinha. Loucos são os outros. Eu estou numa ilha gozando de saúde enquanto os outros se degladiam em torno de papéis, televisão com controle remoto, coca-cola com hamburguer, o cheiro da burguesia, essas merdas todas que os fazem viver tão felizes quanto o salto alto da manequim.
Eu queria ser escritor entre os daí. Mas não é verdade que essa ilha e esse povo, e esse mar, e os unicórnios, e essa vontade bizzarra de que eles existam e mordam a gente quando vem a noite, seja criação minha. Eu existo, eu penso, eles existem.
Não bebo mais.
Mentira. Ainda há pouco encontrei uma garrafa de vinho. Achei-a numa caverna na montanha menos escarpada, no lado leste da ilha, aonde ainda aportam piratas. Entre seus despojos havia essa garrafa de vinho tinto. Não estou embriagado. Minha lucidez é tão real quanto esses animais fantásticos e essa ilha, minha ilha, perdida nos mares do sul. Por quê nos mares do sul? Não sei. Acho bonito. Tem mais calibre. E o meu amigo corretor insiste no endereço. Ele sabe do que fala, presumo.
A verdade é que as vezes nem sei se estou numa ilha ou no velho apartamento da esquina da São João com a Boa Vista, no coração fedorento de São Paulo, aguardando a catástrofe nuclear - ponto final neste mundo e no meu sórdido trabalho como publicitário: coca-cola, hamburguer, televisão colorida... Essa ilha talvez seja só aquela fotografia velha pregada entre teias de aranha e buzinas no meu quarto sujo. Ou, talvez, o sonho de uma moça que não é deste mundo.
Ainda ontem caminhava perdido sobre as dunas, aqueles lençóis se agitando, açoitados pelo vento, quando encontrei um homem que não era daqui, um estrangeiro. Falava uma língua estremecida.
- Eu não vim, fui trazido. Sou um pedaço de pau jogado ao mar que veio dar nessa praia. Há algo maior que isso? - perguntou na sua alucinação de estrangeiro.
Então eu falei dos lobisomens e do corretor de imóveis, meu amigo. Falei dos unicórnios, constantes e fogosos, fazendo amor na beira da praia, admirados pelas mulheres da vila. Comentei que a rotina da ilha costuma ser sacudida por acontecimentos lúgubres - sangue humano era distribuído em taças nas noites de lua cheia, servidos por vampiros e feiticeiras que chegam do além mundo, dos tempos inquisitoriais, ainda com os peitos e o ventre chamuscados do fogo da expiação católica.
O visitante balançou a cabeça pesaroso e refletiu que, infelizmente, talvez aquela não fosse a ilha que buscasse. "A verdade é que nunca sonhei, não creio que resista ao encontro com seres desta natureza. Minha vida é mansa, entende? Minha metafísica é sem adornos, de pouca estatura".
Na época em que morava na metrópole também eu tinha uma vida mansa. Um bom apartamento, um bom carro, uma boa família, um bom cão de guarda. Meus dias de vida e prazer entreguei-os ao trabalho e ao lazer com a família e os amigos e às viagens. Eu era tão feliz quanto um monge na minha santa limitação. Mas eu tinha um preço. Todo mundo tem, ora. E o meu era alto; afinal sou, digo, era, um profissional de publicidade. Eu era uma puta bem paga. Quer vender merda enlatada, ou o sonho de uma vaca holandesa, ou titica de galinha como desodorante?... Pague e eu vendo. Vendo até minha ilha. Esta ilha em que vivo agora entre fantasmas e outras figuras imaginárias, onde tenho tempo e ousadia para escrever um romance, um livro de contos, poesias tantas quantas as andorinhas que existem aqui.
Mas não sou escritor. Se fosse não estaria aqui, acossado por unicórnios, lobisomens, pescadores, fadas e gnomos. Essa gente, esses coisas, esses issos, sem pele animal ou vegetal, imunes à minha máquina de datilografia. Rebeldes, não se dobram à gramática, tampouco à ciência, ao saber ou à vontade dos homens de letras. A virtude deles é a inconsistência. São impalpáveis, imensuráveis, ilimitados como uma obra de arte. Carangueijos, pássaros, gente e bicho, têm na pele o sinal e o bronzeamento da infinitude divina - vejo-os mas não apreendo-os. Certo dia - e isso foi bem antes de vir parar nesta ilha - imaginei uma história que começava assim:
Moro numa ilha dos mares do sul onde seus habitantes vivem da pesca e da intimidade com seres imaginários. Eventualmente ele passa por aqui. Tem um bigode fino, o rosto redondo, olhos puxados, e um terno cinza. É um corretor de imóveis e vive nesta ilha entre os unicórnios e salamandras.


Do livro "GENTE SOBRENATURAL"
Publicado em novembro de 1997, Brasília....

Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui