No começo eu pensei que finalmente tinha encontrado o grande amor, eu ainda sou daquelas que acredita no grande amor, aos poucos, fomos cruzando nossos caminhos, contando coisas, trocando lembranças, inventando umas, escondendo outras, mostrando e escondendo o que existe de mais sagrado e horrìvel no nosso interior. No contexto geral tìnhamos a mesma perspectiva de vida, hoje compreendo que todos os apaixonados têm a mesma perspectiva de vida, o amor ofusca muitas verdades.
Ele me contava coisas do tempo que perambulava sozinho, sem uma alma sequer, para revelar os seus mais ìntimos segredos, eu relatava as minhas angùstias matinais e, aos poucos, fomos construindo algo de sòlido e duradouro. Por vezes, tinha medo, recuava, deixava-me dominar por algo incompreensìvel, mas a sua presença, seus beijos matinais, inundava de prazer e confiança toda a casa. Pela primeira vez, eu me sentia ùnica, indivisìvel, superior aos demais. Os dias nâo eram mais repetitivos, nauseabundos, enfadonhos, qualquer coisa de novo e salutar chegava sempre no final da tarde.
Nâo sei dizer quanto tempo durou este encantamento : um mês ? Um ano ? Quando se é feliz o tempo nâo pode ser cronometrado da mesma maneira. Existe qualquer coisa de intemporal, fora dos parâmetros normais que faz evacuar o tempo de uma maneira diferente. Nem sequer pensamos no amanhâ, tudo é tâo presente, tâo pròximo, tâo cheio de vida que até mesmo a perspectiva de um final nâo existe. Embora seja inùtil negar, todos sabemos, somos conscientes, de que existe um fim para tudo, nada é eterno, nem mesmo o amor.
Tudo o que nos unia foi se distanciando, assim, de repente, feito um milagre da virgem Maria, os nossos olhares se cruzavam com medo, receios, existia sempre uma irritaçâo no ar e toda aquela atmosfera de paz começava a se diluir pelos quatros cantos da casa. Existia qualquer coisa entre nòs dois que nâo tìnhamos ainda coragem de dizer. Era como se tivéssemos medo de abrir um baù e desvendar simultaneamente todos os nossos mais ìntimos desejos. Tudo estava ainda no campo do perplexo, do irreal, do inacreditàvel. Os nossos silêncios eram enormes e as nossas verdadeiras frases cada vez mais diminutas.
O silêncio foi se instalando, tomando possessâo de tudo, depois, quase no final, éramos apenas dois animais que se digladiavam inutilmente, trocando golpes, ferindo-se mutualmente, sem pensar na conseqüência nem nas frases que proferìamos. O pior de tudo é que todas aquelas frases ditas e reditas eram verdadeiras, vinham do nosso mais profundo ser, plenas de òdio, de amertume, por algo de que nunca teria uma continuaçâo. Ainda hoje me pergunto como fui capaz de ferir tâo forte e profundo alguém que amei ? Ele também me feriu, dizia coisas horrìveis, menosprezava tudo o que eu tocava ou fazia, chegava mesmo a inventar històrias repugnantes com o ùnico intuito de me ferir.
O pior de tudo é que com o transcorrer do tempo, quando tudo fica no campo do quase abstrato, as coisas que resistem, permanecem intactas na nossa memòria, nâo sâo as frases e os momentos de amor, mas todo o lixo jogado na nossa direçâo. Ainda hoje, lembro-me nitidamente, como um filme colorido, as suas cenas e suas malditas verdades. Ele nâo gritava, nem sequer levantava a voz, falava docemente, como se tivesse contando uma història, nâo se dirigia a minha pessoa, vez por outra olhava de lado, na minha direçâo, somente para ter a certeza de que eu estava realmente escutando. Tudo era no campo do hipotético, do passado, algo tirado de algum canto que nâo tinha nenhuma relaçâo comigo, embora, intimamente, eu sabia que ele estava falando de mim, estava me jogando na cara toda a sua tralha de mentiras e absurdos.
Uma noite ele diz que nâo gosta da companhia das mulheres. Pergunto o motivo. Ele nâo responde imediatamente, fica calado, pensativo, como se estivesse procurando uma reposta adequada, embora, soubesse que ele estava jogando tudo na minha cara. Quando penso que ele tinha esquecido a minha questâo, ele fala numa voz em surdina, quase inaudìvel, sem emoçâo aparente : “Durante muito tempo evitei a companhia das mulheres, na realidade, eu nunca cheguei a amar uma delas. Eu sempre as suportei, mas, na maioria das vezes, sentia òdio de mim mesmo por nâo poder me passar de suas companhias. Eu sempre as achei sujas, vingativas e supérfluas. Existia sempre qualquer coisa de falso nelas, algo que eu nâo consigo perdoar. Elas estâo sempre escondendo alguma coisa, buscando sempre uma oportunidade qualquer, algo falso e mesquinho, algo que nâo consigo explicar, mas que existe, onipresente, nìtido, intrìnsico, na maioria das mulheres. È algo impossìvel de perdoar, até mesmo a simples amizade das mulheres é coberta por interesses.”
Ele sabia ferir, esmiuçar lembranças, abrir feridas quase cicatrizadas, expor de uma forma abominàvel todo o nosso passado. Dai em diante vi que nâo tìnhamos mais nada em comum, nem mesmo sequer as lembranças do passado, você jà imaginou : um pedaço da sua vida desperdiçada, assim à toa, sem nenhuma perspectiva de reconciliaçâo.
Trecho do livro ainda inédito : Fragmentos Submersos