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Contos-->O testamento de um mendigo -- 05/05/2009 - 10:02 (GIVALDO ZEFERINO) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O testamento de um mendigo

Um mendigo e um senhor de idade protagonizavam uma cena incomum na calçada de uma igreja cujo padroeiro era São Francisco de Assis. Este senhor estava dizendo ao mendigo, sentado em um banquinho de madeira, com a mão direita estendida, na expectativa de que alguém ali depositasse alguma moeda que ele guardava imediatamente numa sacola de pano pendurada no pescoço:
- Queres ganhar uma casa?
O mendigo, esquecendo a mão estendida, surpreendeu-se com estranha oferta, e respondeu:
- Senhor, a minha vida tem sido muito difícil. Hoje, sou compelido a pedir tudo o que minha necessidade reclama. Dependo, unicamente, dos que esquecem algumas moedas no bolso, e das boas senhoras que me reservam deliciosas sobras de comida. Por sua postura, adivinho que não está brincando comigo. O senhor, realmente, me pergunta se eu quero ganhar uma casa?
- Certamente. Há mais de um ano, eu comprei uma lá no Norte, mas fui transferido para cá, e decidi doá-la a alguém. Amanhã, entregar-te-ei toda a documentação, providenciarei a tua passagem, e partirás daqui a quinze dias, a fim de assumires o que estou te dando.
Nessa noite, o mendigo não dormiu, nem sentiu as picadas dos insetos noturnos que o atormentavam, no quartinho de lona onde morava. Uma alegria incomensurável invadia seu peito: habitaria numa casa de verdade, abrigar-se-ia contra o sol, contra a chuva, estaria protegido contra as intempéries, ninguém mais haveria de importuná-lo nas suas noites mal dormidas e sofridas. Além do mais, a casa seria propriedade sua, com toda a documentação legal.
No outro dia, o homem regressou.
- Entre os documentos exigidos para que tu possas embarcar, terás de redigir um testamento para fins legais, na hipótese de pereceres durante a viagem.
O mendigo respondeu:
- Mas, senhor, como poderei redigir um testamento se não tenho nada para legar, nem ninguém como herdeiro?
-Sem esse documento, não poderás viajar. Conseqüentemente, não receberás a moradia, retorquiu o doador.
O mendigo postou-se pensativo. Os únicos bens que ele possuía era a roupa esfarrapada e fedorenta que vestia, as sandálias que calçava, o saco onde guardava o que ganhara durante o dia, um cobertor (velho e rasgado), e um bastão.
Prosseguiu o doador:
- Não disponho de muito tempo. No espaço de dois dias, estarei de volta, e tu deverás inteirar-me do andamento da documentação. Caso contrário, doarei a outro a vivenda que foste incapaz de ganhar.
O pobre velho viu desmoronar-se o castelo, tão rápido quanto surgira. Não tinha ninguém por si nem de si, não construíra um lar porque, para tal, jamais teve condições financeiras. Vivera de biscates, ora como carregador de fretes, ora como ajudante de pedreiro, ou lavador de carros, e outros serviços pesados. Seus membros enfraqueceram e não tinham mais forças para o trabalho. Para sobreviver, só restou-lhe a mendicância. Acomodou-se com tais circunstâncias e esqueceu que o teto em questão já constituía um elemento testamental, além dos seus poucos pertences, o que haveria de satisfazer as exigências do doador.
No derradeiro dia do prazo que lhe foi concedido, o doador regressou, mas o posto do mendigo estava vazio. Esperou-o em vão. Inconformado, desistiu e retirou-se a considerar consigo mesmo: "Há gente que merece a miséria que vive. Sairei em busca de outro que seja capaz de satisfazer os requisitos da minha doação".

Uma pessoa que presenciara a cena concluiu com pesar: “há pessoas que, habituadas a só receber, esquecem-se totalmente de dar”.
Eis aí, talvez, a base do egoísmo. Ao mendigo, alguém ofereceu uma morada, exigiu dele um testamento transmitindo a posse da mesma para outrem, no caso de sua morte. O mendigo não entendeu a proposta, e respondeu que nada possuía, nem havia ninguém a quem legá-la. Portanto, faltava um documento postulado pelo doador. O mendigo, acostumado a nada possuir, ignorava o que era posse; acostumado a sempre receber, desconhecia o que era dar, e isolou-se em seu minúsculo mundo.
E a mesma pessoa refletiu: "Nem sempre entendemos o que os outros esperam de nós. Às vezes, é tão pouco e simples, e se torna tão complicado!"

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