Era uma tarde chuvosa e fria. No pátio da enorme obra em construção, os pesados caminhões espalhavam a lama pegajosa e a enxurrada desmanchava os montes de areia. Os trabalhadores que precisavam fazer serviços do lado de fora estavam sentados no chão, debaixo da cobertura provisória.
Brito, o encarregado civil, fumava tranqüilamente, recostado no pilar e olhando para o pátio, pensativo. Cheguei até ele e puxei conversa.
Brito, hoje vai ser um dia perdido, não?
Poxa! Se vai!
O Severino já sarou? Vi que ele veio trabalhar hoje.
Já. Está ainda meio fraco; dei pouco serviço pra ele.
Você estava preocupado com ele, continuei.
É! Gosto desse menino; mas é muito desorientado, só no mundo.
A família está espalhada por todo canto.
A família é grande, mas cada um foi prum lado.
Você esteve onde ele mora, é ruim o lugar?
Muito! É um fundo de casa, perto do córrego - construção de tabua - uma favela.
Não quer ficar no alojamento da obra?
Não. Prefere ficar onde está. – Aqui, no alojamento, corre muita bebida e não tem jeito - já falei com o Engenheiro para reforçar a vigilância, mas tudo continua como está. – Severino tem um fraco pela bebida e fica bêbado com pouca coisa.
A chuva não dava trégua. A água penetrava pelas partes em construção ainda descobertas e descia por entre as formas de concreto, molhava as escoras de madeira e lavava as escadas incompletas. Severino vinha caminhando em nossa direção, carregando um balde no ombro. O capacete de proteção estava enlameado, seu uniforme com manchas de barro. Caminhava, sem pressa, desviando das pilhas de tijolos, pulando por cima das resmas de caibros e dos montes de pedra britada.
A história desse rapaz era comovente. Corria até uma anedota de que tudo que é ruim no mundo cai na sua cabeça. Já se perdeu em São Paulo e passou a noite dormindo na rua; já foi preso por engano; levou um surra de uma turma de desordeiro; teve uma namorada que o abandonou por outro; o pai morreu e a mãe ficou louca; seus irmãos viviam cada um em uma cidade diferente e ninguém sabia o endereço de ninguém.
Brito cuidava dele quase como se fosse um filho. Vi muitas vezes os dois conversando; Severino ouvindo os conselhos e movendo afirmativamente a cabeça.
Havia faltado no trabalho, três dias, pois tivera uma gripe muito forte. Mas estava de volta.
Aproximou-se, sorriu levemente para mim, e perguntou ao Brito onde deixaria o balde de impermeabilizante.
Deixe no almoxarifado; não vou precisar mais disso, hoje.
O rapaz afastou-se e eu perguntei:
Ele já arrumou outra namorada?
Creio que não. Ele gosta de ir ao puteiro da Juanízia e lá tem uma moreninha que adora arrancar dinheiro dele, coitado.
E ele não se queixa disso?
Ela faz uns carinhos, leva pra cama e ele fica extremamente generoso.
Limpa ele?
Pior que limpa! Na última vez que recebeu o salário, obriguei-o a me dar três partes do que recebera e saísse só com o necessário para tomar uma cerveja e deitar meia hora com a safada.
Concordou?
Não deixei escolha. No outro dia devolvi o dinheiro e falei para que procurasse pagar as dívidas.
O que disse?
Ficou agradecido; ele sabe que não pode gastar o salário do jeito que gasta, mas não tem juízo.
O engenheiro apareceu e chamou Brito que o seguiu pelo pátio, debaixo da chuva. Fiquei por alguns minutos parado, ali,olhando a movimentação, os trabalhadores carregando madeira, acionando os guinchos, empurrando carrinhos de massa de cimento. Uma meia dúzia de pessoas continuava sentada no chão, conversando. Dois deles sentaram numa pilha de blocos de concreto e examinavam um pequeno rádio.
No final da tarde, Brito apareceu no meu improvisado escritório e convidou-me para irmos à lotérica fazer uma fezinha.
Saímos em direção do portão principal. A chuva havia cessado e apenas a lama permanecia no pátio, sujando as botas dos que transitavam por ali. Na saída, encontramos o Severino que perguntou aonde íamos. Resolveu nos acompanhar e também fazer o seu joguinho preferido.
Dois dias depois vi o Brito, caminhando sorridente. Parou à minha frente.
Adivinhe o que aconteceu?
Não!
O Severino ganhou na loteria!
Verdade?!
Sim! Foi ao banco sacar parte do dinheiro.
Quanto ganhou?
Ganhou 200 milhões de cruzeiros!
É. Dá pra comprar um bom apartamento de classe média, comentei.
Vai me dar dez por cento, porque diz que eu é que dei sorte pra ele.
Deixe de ser fominha, Brito. Deixe ele com a grana.
Que é isso! ´Tá falando em dar dinheiro até pra a moreninha do puteiro, justificou.
Ele vai embora, então?
Vai. Quer pedir a conta e ir pro nordeste, cuidar da mãe que é doente.
Mas, não é muito dinheiro; se sair gastando, não vai durar nada.
Depois dessa conversa, não vi mais o Brito por uns dois meses. Quando voltei à obra, esta já estava em fase final, com pintores e maquinas de limpeza trabalhando a todo o vapor.
Brito estava almoçando no refeitório, acompanhado pelos outros encarregados. Quando me viu, chamou.
Como está? Perguntei.
Estamos bem, e ócê?
Estou bem. Tem noticia do Severino?
´Tá na terra dele, cuidando da mãe; comprou uma casa na cidade, um carro e diz que vai trabalhar de chofer de madame.
Espalhou muito dinheiro por aí?
Um pouco, mas foi esperto - até me surpreendi – não procurou nenhum irmão. Pra putinha deu uma boa grana que a deixou toda feliz.
Acho que a sua fase de azar acabou; que ele não precise nunca mais voltar para cá, comentei.
Despedi-me do pessoal, dei um abraço no Brito, desejando-lhe boa sorte e me afastei em direção do pátio do estacionamento. Suspirei contente, sem saber porque. Talvez por continuar vivo e ter grandes amigos.