Dia desses de chuva. Tão nublado quanto um coração opaco. A mulher nem consegue se lembrar da sinfonia multialegre dos dias coloridos de sol. Ela é a própria chuva; chove por dentro qual antiga cachoeira.
Pelo retrovisor do apertado automóvel, ela acompanha o tumulto no banco detrás. As crianças.
Um grita, outro berra. Da menor vaza um líquido quente que lhe empapa as calças. Escapou. Sempre escapa.
─ Cuidado com o banco! ─ Agora, quem berra é a mulher. ─ Põe qualquer coisa debaixo dela, uma camiseta, o agasalho da escola serve, façam alguma coisa, pelo amor de Deus! Vocês não vêem que eu estou dirigindo?
As crianças se agitam. Há um corre-corre no banco detrás. A filha mais velha providencia um “tapa-calamidades”. E, em seguida, momentaneamente, todos três já se distraem vendo o circo ao longe, com suas luzes a piscar.
Querem saber da mãe se eles vão lá. Claro que não! Tem graça. Se já foram uma vez, basta. E foram mesmo, logo após a estréia. Há duas semanas, a família em peso lá esteve e riu com os palhaços e irritou-se com a falta de educação de algumas velhas antipáticas e, até, esquivou-se do vômito alcoolizado de um homem, que se instalara numa cadeira bem atrás da cadeira da mãe. Más lembranças... e o cheiro nauseante da cerveja mal-processada pareceu, de repente, querer entrar pela fresta da janela do automóvel.
Que trânsito! É correto que caminhões quilométricos entupam assim os cruzamentos? Ninguém consegue sair do lugar. Primeira de novo. Agora parece que vai. Vai nada. Primeira outra vez.
“No fogão, está o frango já grelhado. No forno, a couve-flor com molho branco e queijo ralado, só falta gratinar.” ─ O pensamento da mãe tenta se ocupar.
No banco traseiro, novo tumulto. A chupeta da menor foi lançada pela janela da mãe. Ficou lá atrás no asfalto.
─ Quem jogou? ─ A mulher vira-se em estado de cólera incontida.
─ Foi a Denise. ─ O filho apressa-se em entregar.
A Denise, a dona da chupeta, chora inconsolável porque quer a chupeta de volta. Quer, quer, quer.
Abriu o sinal. A desavença no banco detrás continua, mas a mulher consegue engatar uma segunda e uma terceira. Deslancha. O carro sai do congestionamento e entra numa ruazinha.
A couve-flor... o carro precisa de gasolina. Pensamento ajustado. O caminho para o posto de gasolina já planejado. Tudo bem.
Foi então que ele surgiu. Um cão vagabundo, pêlo ralo, cara suja, perebento e só. Muito só. Com fome e frio, provavelmente. Zanzando com seu ar de desamparo. Um medo qualquer o fez correr, de repente, na direção do carro da mulher. O atropelamento foi inevitável.
O grito interior da mulher foi tão intenso, que ela chegou a sentir os olhos marejados.
“Matei o cão! Deus, o que eu fiz?” ─ Ela desceu trêmula do carro.
Dentro do automóvel, as crianças silenciaram perplexas. Fora, uma pequena multidão principiou a se aglomerar.
─ Pobre cão! ─ Os olhos da mulher buscavam os olhos do animal desconjuntado.
Mas os olhos enevoados do bicho pareciam dizer: “Sem essa, eu sabia que qualquer dia isso iria acabar acontecendo comigo.”
Um homem aproximou-se:
─ A senhora vai ter que arrumar um veterinário pra ele.
─ Só que eu não conheço nenhum veterinário... ─ Ela tentou se justificar, enquanto pensava no posto de gasolina, no frango grelhado e na couve-flor esperando para ser gratinada.
─ Desse jeito é que o bicho não vai poder ficar. ─ O homem se achou no direito de argumentar.
A mulher sentia uma forte vontade de alisar o animal, de ampará-lo naquele momento de dor, mas ele estava tão sujo... Depois, ela teria que segurar a Denise nos braços. Não, não alisaria aqueles pêlos de jeito nenhum.
O cão, num esforço exacerbado, tentou se sentar. Conseguiu e deixou que um filete de sangue começasse a minar de seu corpo.
─ Ih, sangue, dona! A senhora estourou o bicho por dentro, coitado. ─ Era o homem de novo.
A mulher sentiu-se em plena inquisição. Olhos acusadores penetravam em seu corpo como agulhas. Já havia sido condenada, sabia disso. Onde estaria a fogueira para queimar aquela Joana D’Arc de última hora?
Que fazer? Um médico para aquele cão de nada adiantaria. A mulher sofria dentro uma revolução de proporções absurdas e ninguém se dava conta disso. Ninguém ligava realmente, ela que se danasse.
O cão. Esse implorava com seus olhos enevoados, que ela tomasse uma atitude. Ele parecia impaciente, quando ganiu seu lamento fúnebre em dado momento.
“Está bem.” ─ A mulher pareceu despertar.
Diante de olhos estupefatos, ela entrou no carro e deu marcha à ré, mirou depois o corpo do cachorro e acelerou. Gritos foram ouvidos de todas as direções, mas ela nem pensou em abortar a missão.
Sobre o corpo esmagado do cão, ela ainda deu marcha à ré mais uma vez e também mais uma vez seguiu para a frente.
O burburinho ao redor tornou-se um protesto e o protesto tornou-se agressivo. Era hora de retirar-se. Ela não conseguiria explicar àquela gente que sua atitude era pura compaixão. O tiro de misericórdia. Eutanásia.
Antes que a turba a linchasse, ela acelerou seu automóvel e desapareceu daquele lugar. Estava livre. Ela só fizera o que o cão havia lhe pedido no lamento triste de seu ganido.
Enquanto tentava ajustar seus pensamentos novamente, seus olhos chocaram-se com três pares de olhos nada infantis no espelho retrovisor. E, sem saber explicar bem o porquê, ela se sentia invadida, de repente, por uma saudade prematura da inocência perdida de seus três filhos.