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Contos-->O Açude -- 02/09/2009 - 18:16 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Malemolente, a inquieta morena balançava os quadris ao ritmo do samba tocado na rádio, passando a roupa e esperando o telefonema que tardava a surgir na tarde quente de setembro, uma prévia de um verão que ela já sonhava antecipadamente. Lembrava do namorado, subia-lhe uma espécie de vibração rósea pela barriga e ela comentava entre dentes:

--Como me maltrata!

Sua memória a lançava em direção ao passado, aos dias de infância quando o conhecera ainda menino nos sertões do agreste pernambucano; lembrava-se das brincadeiras, do corre-corre entre os arbustos, do esconderijo perto do curral onde as mirradas vacas davam mal e mal o seu leite e onde raros porcos sobreviviam, isso quando ainda chovia um pouco. Lágrimas lhe vinham aos olhos, a pobreza era imensa, as dificuldades muitas e os esforços da família se concentravam na sobrevivência da família que a gerara, tanto mais que seus pais trabalhavam de sol a sol para alimentá-la.

--Você ainda vai casar comigo!!
--Mas como? Como podemos casar?
--Casando, ué!

Eram primos, seus pais se conheciam, os pais dele moravam na mesma gleba de terra, só que numa casa mais adiante. De que forma poderiam se casar? Pelo que ela sabia, sua tia era prima de seu pai e então eles seriam primos de segundo grau, ela achava.

Tinham então seus oito anos, ele era um menino pequeno, olhos astutos, cabelos crespos que mostravam sua origem e mãos espertas. Como era esperto o garoto! Lá onde viviam, a esperteza ligeira já os deixava preparados para a vida logo cedo, como os calangos que já saem dos ovos correndo atrás de presas, de insetos ou outros petiscos. Lá não tinha televisão não, seu moço, o pouco que ouviam era um rádio que seu pai tinha faz tempo, um tal de Ondas Curtas ( era assim que ele falava mesmo, com todo o respeito) que falava da capital distante de suas terras ressequidas; O poço que trazia a água para lavar a roupa e para tomar banho era longe, perto do açude e ia sua mãe todo o santo dia a equilibrar uma impossível lata de água na cabeça, duas vezes por dia. Sua heróica mãe, seu pai de pele curtida, seu primo de mãos espertas...Lembranças duras, cheias de aspereza mas também cheias de ternura, de suaves ventos à beira do açude, das preces da mãe prestimosa a abençoar a comida que vinha do duro esforço deles todos. Ela olhava de rabeira para o primo que juntava as mãos e rezava, pedindo a Deus mais um dia de trabalho e mais chuvas para abençoar a terra que era a mãe de todos.

Ela se viu mais de uma vez pedindo a Deus que a tirasse dali, para um dia poder ter maior conforto e quem sabe maiores posses. Sabia que seus pais jamais sairiam dali, ali era sua vida, ali era seu sustento. E ela se viu crescendo, estudando na pequena escola do povoado que ficava perto de sua casa; ela se viu ganhando formas de mulher e mais de uma vez viu seu primo que deixava de ser menino e ajudava o seu pai a arar a terra benfazeja e sagrada.

Um dia foi ao açude pegar água para a mãe. Pegou o latão e encheu no poço mas olhou o rebrilhar das águas ao longe do lago que se formara depois da última chuva, sentiu o calor subir em seu corpo e se deixou dominar pela imensa vontade de cair na água. Nua, completamente nua. Sem ninguém por perto, despiu sua saia de chitão que sua mãe fazia ( ela fazia as roupas de toda a família), juntou o que trazia perto da lata d`água e se lançou às tépidas águas onde seu corpo já brincara tanto. Notou o desabrochar de seus seios e se admirava como haviam crescido desde um ano até agora e ela tinha só seus dez anos. As mulheres de lá eram muito precoces, ela sabia de parentes que haviam se casado aos treze anos, haviam tido filhos aos quatorze anos... De modo que ela estava no caminho. Mergulhou o corpo na morna manta líquida e ouviu os sons debaixo da lagoa, sons que sabiam a silêncio, a enlevo... Quando brotou da superfície, esfregou o corpo com suas mãos de menina e sentiu os prazeres da auto-descoberta. Jamais imaginava que dois olhos astutos a observavam absolutamente abertos, sequiosos de mais detalhes, observando cada movimento de seu corpo, absorvendo cada detalhe de suas pernas. Ela nunca soube disto, só muito depois. Saiu da lagoa resoluta, sua mãe já devia estar preocupada, ela sempre a alertava para os perigos do caminho, as cobras que se ocultavam nos arbustos, a onça que saía da mata e vinha beber água. Ela não sabia o que era mas sentiu-se observada e assustadiça, acelerou para casa depois de se vestir rapidamente. O seu primo a seguiu silencioso, sem fazer ruído para que ela não se atemorizasse. A última coisa que queria era vê-la correr dele.

Mas a vida muda, seu moço e o tal de Ondas Curtas dizia que na cidade grande as oportunidades eram maiores ainda, as chances de crescer estavam todas ali e era só pegar, bastava tentar a sorte para se achar! Ela estudava, a professora elogiava seus cadernos, ela crescia e seu primo a olhava com outros olhos agora, afinal ela já tinha treze anos. Idade de casar! Mas sua mãe tinha outros planos para ela, de modo que escreveu para uns parentes da capital e deu um jeito dela de se mudar para a casa deles para completar seus estudos.

--Filha que é minha não vai ficar nessa vida rasteira daqui não. Quero que se forme, que dê alguma coisa na vida. Não quero que faça que nem os parentes que casaram a menina ainda nem formada!

E lá se foi a moça para a capital, mas não era qualquer capital, era a capital do mundo, era São Paulo, a capital de todos os que se sabiam gente! Era lá que moravam seus parentes, era para lá que ela ia agora e não foi sem um nó na garganta que viu sua família ficar distante enquanto o ônibus a levava da rodoviária do povoado para seu destino no mundo. Seu pai era duro mas mesmo assim lhe deu um abraço que lhe transmitiu toda a força de uma vida e lá se foi para a capital. Foi morar com uns tios distantes, uma parentada que não via faz tempo; lembrava dos olhos de seu primo, das mãos espertas do menino, do hálito fresco da manhã no açude, da lagoa cheia de peixes e rumores. Mas mulher que é mulher mesmo, na capital, tem de trabalhar e se viu trabalhando como costureira, como camareira, como arrumadeira. Já tinha seus dezesseis e já namorava; foi convidada para ir a uma festa. Ela adorava dançar desde pequena e quando viu aquele ambiente cheio de fumaça, luzes e gente, soltou o corpo como fez no açude, dando-se o prazer da descoberta de sua sensualidade, porque via os olhos compridos dos moços que dançavam com suas namoradas e parecia que só ela que dançava ali.

Ela notou um par de olhos bem conhecido. Dessa vez, ela não podia se disfarçar, porque este par de olhos a fitara como viera ao mundo. Nua, completamente, num distante ano inesquecível para ela e para ele. Ela olhava para seu namorado, distante, como que absorto numa bruma, bebericando cerveja e ela ali, dançando, sentiu a proximidade de alguém muito conhecido.

--Não acredito!
--Como?
--Existem muitos lugares no mundo e justo aqui viemos nos encontrar!
--Primo!

Ela quase desmaiou; como crescera! Alto, ombros largos, bigode bem feito, rosto enxuto, nariz largo e os olhos espertos. Dizem que os olhos são o espelho da alma. Dizem que os olhos dizem tudo, dizem que a luz dos olhos faz crescer a luz da alma.

Seu namorado desapareceu, a bruma o tragou ao esquecimento, ele sumiu como se não houvesse existido; ela e o primo sentaram-se à mesa, ele chamou duas cervejas e a conversa que os redimiu tocou solta, indo do açude ao poço de água, da professora ao jegue distante, da mãe dela ao pai dele, da distante terra agreste aos edifícios da capital que os absorvera. Ambos haviam sido atraídos pelo mesmo chamado, ele estava casado agora com uma moça que conhecera na cidade grande. Trabalhava em uma empresa de transporte de valores, era guarda ou vigilante, ela não sabia a diferença e ela lhe contou que estava trabalhando agora como camareira em um hotel onde havia sido muito bem recebida, graças aos seus tios distantes que conheciam o caminho das pedras. Lhe contou que namorava mas lhe confidenciou que o namorado sumira dali mesmo, sem deixar vestígio algum; talvez porque sentisse ciúme, talvez porque saíra com outra, o fato é que ela não se importava nadinha, sentada com o moço que havia prometido casar com ela! O coração aos pulos, convidou-o a dançar e mostrou ao mundo sua satisfação ao provocar os mesmos olhares dos mesmos moços acompanhados.

No entanto, seu moço, ela só tinha olhos para ele e depois do beijo, seu coração se entregou todo àquele que fazia o retorno às origens e foi assim que reencontrou os rumores da lagoa tépida em seu coração, explodindo de prazer nunca antes visitado. Ela agora descobria realmente o significado da palavra, em toda a sua plenitude.

Foi ali mesmo que fizeram as juras de amor; foi ali mesmo que selaram as pazes com o destino e foi lá que ele disse:

--Vou me casar com você!
--Mas como, como vamos nos casar? Você já é casado!

A sombra do olhar dele a entristeceu, mas nada que um beijo não a fizesse esquecer nem um abraço a fizesse mergulhar nas delícias da ousadia.

Agora ela olha o telefone, olhar comprido, esperançoso, enquanto passa sua roupa e a deixa engomadinha para seu trabalho do dia seguinte. Ela sabe que a espera traz a doçura do aconchego, mas pronuncia impaciente:

--Como me maltrata!

Não sei como essa história vai terminar não, seu moço. Ainda não sei mas quando ela se olha no espelho e vê seus lábios se mexerem, é o nome dele que habita seus dentes. Sei que o açude está lá, seu primo ainda vive com a esposa mas não vê a hora de fugir para os braços da amada, ela espera o telefonema e enxuga os cabelos encaracolados.

--Como me maltrata esse meu homem!
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